Português: 09/01/2022 - 10/01/2022

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca


 Dizeres íntimos

 
É tão triste morrer na minha idade
E vou ver os meus olhos penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!
 
E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
De brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão de morrer em plena mocidade!
 
E ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!
 
E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem-me baixinho a rir: “Que linda a vida!...”
Responde a minha dor: “Que linda a cova!”
 
            Este soneto, cuja temática gira em torno da morte, pertence à obra Livros de Mágoa, datado de 1919.

            O título da composição aponta para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais (“vou”), quer nos determinantes (“minha”).

            O primeiro verso traduz a tristeza do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde já, perante a ideia da morte como algo triste.

            Os versos seguintes parecem esboçar uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal /i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.

            Pela leitura da primeira estrofe, fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer, dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.

            Os versos 3 e 4, embora contenham vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4). A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada, em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma certeza.

            A segunda quadra abre com a conjunção coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade anunciado dentro dos parênteses.

            Após o discurso parentético, o «eu» prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias” e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no  verso 7, os dedos brancos.

            Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na morte, vai desaparecendo aos poucos.

            Por outro lado, não obstante o Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude; o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a juventude.

            O último terceto precisa a idade do «eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a vontade de viver.

            O soneto termina de forma irónica: “Dizem baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor” e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova” representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o sofrimento, a dor, a angústia terminam.

 

"You have what it takes", A-ha

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa


            Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.

            Na primeira estrofe, o sujeito poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo em que vive, que o oprime.

            Diariamente reduzida a uma coisa, um objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”) – a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito, aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição, nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma realidade que não o deixa respirar.

            A cidade, percecionada, pois, como extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e “sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.

            No final do dia, espera-o um quarto, uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia de quem pensa de modo diferente.

            Habituado a ser dirigido pelo “chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.

            No início da segunda estrofe, autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.

            Isto significa que existe um desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário. De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta de empregado”.

            Apesar de tudo, é no local de trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora), atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do “Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal encarcerado, tal como ele.

            A realidade é que, da janela do escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o quintal e distrai o dono com o seu canto.

            Domesticado como um animal numa jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso. O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver” por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do papel.

            A divisão interior que o conflito entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si mesmo.

            Cansado de não viver, mas da vida desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por razões diferentes.

            Na solidão do quarto, o funcionário “soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.

            Em suma, na segunda estrofe, o «eu» poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de “poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma lírica não participa.

            Apesar da sua condição de funcionário que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”, “namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto, beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu» faltam.

            No entanto, o sonho de libertação é impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o «eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”, sem as quais a vida se resume a nada.

            Em suma, neste poema de António Ramos Rosa, o poeta aborda a temática da opressão da sociedade de meados do século XX, em pleno Estado Novo, e denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores estatais, manifestada na alienação que o trabalho rotineiro impõe a quem dele precisa para (sobre)viver, que se manifesta na perda da individualidade decorrente do esmagamento do interior do sujeito poético, tratado como uma máquina ou peça dela. A perda dessa interioridade é denunciada nos versos que exprimem o estado de confusão mental de um funcionário que, após o final de um dia de trabalho, projeta no espaço físico que o rodeia os sentimentos e emoções que tem dentro de si e que é a realidade desconfortável que lhe resta, depois de destruída a sua humanidade numa atividade profissional que assenta na desvalorização do pensar, do sentir, do sonho e da liberdade individual.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Análise do prefácio da segunda edição de Amor de Perdição (1863)


 
1. Fontes usadas para reconstituir a história de Simão Botelho, tio paterno de Camilo Castelo Branco: os relatos da tia Rita, irmã do protagonista, as informações inscritas nos livros de registo da cadeia, uns “maços de papéis antigos” guardados em casa da irmã do próprio Camilo e o testemunho de contemporâneos do seu tio.
 
2. Efeito obtido com a referência a diversas fontes: grande curiosidade e preocupação com a verdade por parte do autor; deste modo, confere veracidade ao retrato e desperta o interesse do leitor.
 
3. Elementos que permitem a identificação entre o narrador-autor e Simão: o parentesco (tio – sobrinho) e a prisão na mesma cadeia.
 
4. Características de Amor de Perdição (segundo o próprio autor): o caráter “triste”, “sombrio” e angustiante; “a rapidez das peripécias”; a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo; a ausência de divagações filosóficas; a linguagem simples e sem artifícios.
 
5. Relação entre a rapidez da escrita da obra (quinze dias) e o estado de espírito do narrador: uma grande ânsia em relatar a história de amor trágica de Simão Botelho.
 
6. Atitude crítica do autor acerca da obra: Camilo considera que Amor de Perdição contém “defeitos” e é um “tolhiço incorrigível”.
 
7. Significado da autocrítica: ao mostrar modéstia, apontando defeitos à obra, o autor pretende captar a simpatia e a adesão do leitor.
 
8. Receção pública: a novela alcançou uma popularidade / recetividade superior a qualquer outra obra do escritor.
 
9. Causas do sucesso: a rapidez das peripécias, a concisão do diálogo, a ausência de divagações. A lhaneza da linguagem, o facto de possuir uma linguagem são e ajeitada à expressão das ideias.
 
10. Referências ao título e subtítulo
 

Título

a caracterização da história de Simão: “triste história”, “trágicas e afrontosas dores”

 

Subtítulo

as referências à família do protagonista e do autor (“a triste história do meu tio paterno”, “Minha tia […] estava sempre pronta a repetir o facto”, etc.)

 
            No entanto, em 1879, no prefácio da quinta edição, embora critique o Realismo, acusando-o de “devassar alcovas, usar calão, espremer opus das escrófulas”, considera Amor de Perdição ultrapassado em relação a uma estética atualizada, ainda que, interiormente, continue fiel ao Romantismo e, no fundo, use a ironia para o classificar. Assim, nesse texto classifica-o como:
. romântico;
. declamatório;
. com aleijões líricos;
. com desaforo de sentimentalismos;
. apresentando as lágrimas nos braços da retórica.

O «stress» sobe


     A resposta é SIM: depois de ler isto, fiquei sob grande stress.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre


            Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.

            O título do texto relaciona-o com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas composições.

            Relativamente à estrutura interna, podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão combate o medo.

            A primeira estrofe dá-nos conta de uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina, governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.

            Por que motivo terá o «eu» selecionado estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala. Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.

            Deste modo, podemos deduzir que os ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo, etc.

            A segunda estrofe mostra a atividade e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato. Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e a situação vivida.

            A última estrofe reflete o poder transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é, todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país (Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.

            Deste modo, podemos concluir que este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.

            A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Mais um verão chega ao fim

Método Científico

Análise do poema "Caminho", de Camilo Pessanha


 Caminho
 

Tenho sonhos cruéis, n’alma doente

Sinto um vago receio prematuro.

Vou a medo na aresta do futuro,

Embebido em saudades do presente…

 

Saudades desta dor que em vão procuro

Do peito afugentar bem rudemente,

Devendo, ao desmaiar sobre o poente,

Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

 

Porque a dor, esta falta d’harmonia,

Toda a luz desgrenhada que alumia

As almas doidamente, o céu d’agora,

 

Sem ela o coração é quase nada:

Um sol onde expirasse a madrugada,

Porque é só madrugada quando chora.

 
            O título do soneto remete para o olhar em frente, para o que pode vir (por exemplo, uma rua, uma estrada). De forma específica, podemos dizer que esse caminho representa a própria vida, caracterizado por sensações e sentimentos vários, como veremos pela análise.

            Nas duas quadras, o sujeito poético descreve o seu drama existencial, o seu percurso de vida (passado, presente e futuro), enquanto nos dois tercetos amplia esse sentimento ao descrever a dor como uma falta de harmonia, embora necessária aos corações humanos, demonstrando que o seu sofrimento é recorrente no percurso de outras vidas.

            O sujeito poético é um ser sofrido, consumido por uma dor existencial, que não é motivada por nenhuma razão palpável, como o amor não correspondido, a perda ou a morte.

            Na primeira quadra, o «eu» descreve a sua angústia em relação ao caminho que deve percorrer e declara-se um sonhador, embora viva um momento de dor e medo, do qual, apesar de tudo, sente saudades. A rima entre o adjetivo «doente» e o nome «presente» contribui para a construção da ideia de que o presente do «eu», embora seja passível de saudade, é um momento de sofrimento, no qual a sua alma se encontra doente, assolada por essa dor. No que diz respeito à sua trajetória, o sujeito poético afirma que tem sonhos cruéis que mantém na sua alma. Por outro lado, sente um receio que o faz caminhar com medo pelo estreito caminho que o levará ao futuro. Ao mesmo tempo em que há o medo, sente saudades do presente, no sentido de que o caminho que o levará ao futuro o faz sentir saudades do presente, que logo se transformará em passado, assim que o caminho for percorrido. Por outro lado, a rima entre o adjetivo «prematuro» e o nome «futuro» mostram que a angústia do sujeito lírico existe em todos os momentos, que o medo é antecipado, incluindo o que se relaciona com o futuro, o incerto.

            Na segunda quadra, a rima entre a forma verbal «procuro» e o adjetivo «escuro» sugere que, embora o «eu» procure libertar-se da dor que sente, a escuridão e o sofrimento constituem a sua resposta. Mais uma vez afirma que sente saudades do presente e da dor que o caracteriza, da qual se procura afastar, porém em vão. Essa dor agrava-se com o anoitecer (“ao desmaiar sobre o poente” – v. 7). O mesmo véu que cobre a noite cobre o seu coração e torna-o sombrio, tomado pela dor, pelos medos e pelas incertezas. A metáfora “desmaiar sobre poente” representa o sono, o momento de adormecer. Além do caminho que é a vida, há outros caminhos: o que transforma dia em noite, sol em escuridão.

            No primeiro terceto, o sujeito poético compara a dor à falta de harmonia, a qual se pode entender como um desconcerto, uma inadaptação ao mundo, à sociedade e a si mesmo. Por outro lado, a dor é a luz desregrada que ilumina as almas, a luz que ora é forte, ora é fraca, mas sem a qual não é possível sobreviver, como se comprova no segundo terceto: “Sem ela o coração é quase nada: / Um sol onde expirasse a madrugada, / Porque é só madrugada quando chora.” (vv. 12-14). Estes versos significam que, sem essa luz e consequentemente a dor, que gera a luz, o coração é quase nada. A rima entre «agora» e «chora» evidenciam o sofrimento que caracteriza o «eu» no presente. A escuridão e a madrugada constituem símbolos de solidão e dor.

            Em suma, podemos concluir que a mensagem do soneto é que a passagem do tempo não altera a vida do sujeito poético e os seus sentimentos de dor, solidão e pessimismo, que são parte constituinte do caminho a percorrer e do próprio «eu».

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral


             O sujeito poético aborda o tema da ausência das mulheres na História oficial e imaginária de Portugal e da Inglaterra, como fica bem evidente nos versos seguintes: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião”. Esta referência consecutiva aos reis Artur e Sebastião não é casual, dado que o mito construído em torno do soberano português se assemelha imenso ao do monarca de Camelot, na figura do rei que iria regressar para resgatar a pátria.

            Ao longo do poema, o «eu» enumera reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –, seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima – a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem, serviria para construir as naus das Descobertas.

            Por outro lado, o sujeito poético parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História, Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda, enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de Avis e da perda da independência nacional.

            A ausência da mulher assume particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).

            As rainhas deveriam ser, entre as mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos, daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de receber”.

            Voltando ao poema, a única figura feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante, neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que, através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido. Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas, graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de mandar, foi mais que homem”.

            É frequente, quando as mulheres que lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará, eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido, durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46). Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.

            Perante isto, o sujeito poético parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo), constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio (Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito recentemente.

            Note-se, porém, que num outro poema, intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada no auge da sua beleza.

 

Bibliografia:

• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.

• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.

WILLMER, Rhea, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português.
 

Análise do poema "O amor é o amor", de Alexandre O'Neill


             Este poema aborda a temática o amor, como o título indicia, em métrica irregular (que vai do verso dissílabo até ao decassílabo) e rima emparelhada e cruzada, com um verso branco ou solto (o oitavo).

            O amor é apresentado como algo intrínseco à natureza humana, algo absoluto e imaginativo, que oscila entre o mundo real e o onírico: “O amor é o amor – e depois?” – v. 1). Atente-sena repetição e interrogação presentes no verso 1, que mostram que o amor é algo natural na existência humana. Por seu turno, a repetição, no verso 3, da expressão «a imaginar» reforça a noção de que o amor é movido pela vertente emocional do ser humano.

            O «eu» poético está apaixonado e deseja o contacto físico com a pessoa amada (“O meu peito contra o teu peito, / Cortando o mar, cortando o ar”) por e com alguém que o faz sentir completo (“somos um? somos dois?”). Observe-se a expressividade da construção paralelística do verso 5, que realça o facto de o amor, para o sujeito poético, não possuir barreiras e ter uma força invencível, que é capaz de superar qualquer obstáculo, desafiando a própria natureza (representada, no verso, pelos elementos «mar» e «ar»).

            Por outro lado, o sujeito poético exalta o poder que o amor tem sobre si, distinguindo que, apesar de, fisicamente, haver dois corpos (“Na nossa carne estamos”), os seus espíritos unem-se num só (“somos um? somos dois?”). Para que este sentimento seja realizado, os amantes têm de ser livres e são-no(“Num leito / Há todo o espaço para amar.”). Atente-se na enumeração do verso 9, que realça a liberdade que existe entre o «eu» e o «tu» do poema.

            A fusão metafísica de ambos os espíritos apaixonados, depois da união física dos corpos, é perspetivada como o auge do relacionamento amoroso entre amos (“E trocamos – somos um? somos dois? / espírito e calor!” – vv. 10-11).

            Obedecendo a uma estrutura circular, o poema encerra com a repetição do verso que o inicia.
 

Análise do poema "Os dias sem ninguém", de Al Berto


 Os dias sem ninguém
 
dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
 
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
 
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
 

            Como é característico de alguma poesia contemporânea, este poema pauta-se pela liberdade formal, nomeadamente ao nível da rima (versos brancos ou soltos) e da métrica.

            O título da composição remete para a solidão, a tristeza, a melancolia e a desolação de alguém. No entanto, o primeiro verso do texto aponta numa direção diferente, isto é, essa figura já amou e se apaixonou no passado, talvez na juventude (“dizem que a paixão o conheceu”), de acordo com a informação dada por um sujeito indeterminado (“dizem”). Todavia, o presente é de solidão, ideia veiculada pela imagem “vive escondido nuns óculos escuros”, que significa que essa pessoa se fecha em si mesmo, se recolhe, se esconde de «tudo»  – sentimentos, pessoas e até de si mesmo.

            Além disso, essa figura reflete durante a noite, procurando perceber o que restou do jovem que fora, dos sonhos que tivera e do amor que vivera, do rosto adolescente que a velhice turvou. Esse ser conhece, como ninguém, coisas como a solidão, a tristeza, a melancolia e a inversão nos seus próprios sentimentos, como alguém que permanece acordado, consciente da sua posição enquanto pessoa.

            Por outro lado, sente a passagem do tempo, o avançar da idade e a aproximação da velhice, por isso olha-se ao espelho, o que pode simbolizar o olhar sobre si mesmo, uma reflexão interior, sobre a sua vida. E o espelho dá-lhe como resposta (“devolve”) o medo, que norteia a sua existência.

            A última estrofe mostra-nos que essa pessoa envelheceu pouco a pouco, consumido pela solidão, sem sentir, em nenhum momento, alegria, felicidade, ternura. Deste modo, levou uma vida entregue à solidão e, mesmo enquanto vivo, absorveu a experiência de uma morte enquanto pessoa, alguém que poderia ter tido desejos, sonhos, amores, amizades, mas não o fez / faz.

sábado, 17 de setembro de 2022

Análise do Capítulo IX de Iracema


     Este capítulo inicia-se com todos os preparativos que Iracema faz para a partida de Martim, o que é uma obrigação de hospitalidade.
    Como se vinha adivinhando, mostra-se a estreita ligação que se estabelece entre Martim e Iracema, o que se nota sobretudo no momento da despedida. A reação de ambos é semelhante.
    Há uma constante referência à tarde e à noite, que é reflexo do seu estado de espírito. A referência à noite surge como descrição do momento do dia, mas também pode ser prenúncio da fatalidade que se vai agravando progressivamente. A referência à noite tem, assim, três vertentes diferentes:
            » noite como elemento da natureza:
            » prenúncio de fatalidade;
            » reflexo de um estado de espírito.

Análise do Capítulo VIII de Iracema


     Iracema acorda triste e Martim dá conta do que se passa. Há uma constante referência a elementos da natureza brasileira.
    Vemos novamente a diferença entre Iracema, perfeitamente consciente da sua posição, embora dividida entre o amor que sente pelo guerreiro branco e o preço que terá de pagar pela sua atitude, e Martim inconsciente daquilo que o rodeia. É aqui que a figura feminina lhe vai revelar o seu segredo: "Guerreiro branco, Iracema é filha de Pagé e guarda o segredo da jurema. O guerreiro que possuísse a virgem de Tupã morreria."
    A reação de Martim mostra um certo orgulho. Ele, perante o sacrifício que faz Iracema, podia ter outra atitude, mas recua quando sabe o preço que tem de pagar. Por isso, decide partir. Todos estes factos vêm em função de uma caracterização positiva de Iracema e de uma caracterização negativa de Martim.

Análise do Capítulo VII de Iracema


     Iracema encontra Irapuã e entre ambos trava-se uma violenta discussão. Irapuã está despeitado, porque Iracema escolheu um guerreiro que não era da sua tribo e quer vingar-se de Martim, e ela procura defendê-lo. Apesar de Irapuã ser um jovem guerreiro que defende a sua tribo, ele aparece como vilão e como principal obstáculo ao amor de ambos.
    Iracema sente que está cada vez mais próxima de Martim, mas a par desta certeza surge a inquietação causada pelo perigo que está a decorrer. Isto leva-nos a realçar que, quanto mais consciência se tem do perigo que se está a passar, mais valor tem o seu sacrifício. É o que se passa com Iracema, pois esta consciência do perigo e a sua resolução de ir em frente são aspetos positivos na sua caracterização.

Análise do Capítulo VI de Iracema


     Neste capítulo, encontramos a análise psicológica de Martim e Iracema. Embora a ligação de ambos tenda a tornar-se mais forte, Martim revela-se um herói romântico, mostra-se dividido entre a saudade do seu povo e o desejo de Iracema. Essa saudade engloba de certa forma a mulher branca, por que Iracema pergunta a Martim. Ele abandona então os seus pensamentos e volta para Iracema. Isto provoca uma grande instabilidade, o que advém do facto de o herói não conseguir ser fiel nem à saudade nem à atração por Iracema. São dois apegos fortes que ele não consegue distinguir. Iracema representa um papel contrário: está tão decidida que lhe revela o segredo de que é guardiã, tendo consciência de tudo o que faz e da dualidade que invade Martim.
    O motivo da sombra também aqui aparece; aliás, ele é uma constante ao longo da obra. A sombra serve como correspondente do estado de alma a uma natureza sombria.
    O capítulo termina com uma suspensão do que vai acontecer a seguir: "Súbito, a virgem tremeu; soltando-se rápida do braço que a cingia, travou do arco."

Análise do Capítulo V de Iracema


     As figuras de Iracema e Martim estão afastadas. O capítulo trata de um conselho que se destinava a decidir sobre a guerra. Surgem então duas posições: uns, chefiados por Irapuã, defendem a guerra; outros, como Andira, irmão de Araquém, não aceitam a guerra. Temos a oposição entre Irapuã com todo o seu ímpeto de guerreiro novo e Andira com toda a sabedoria adquirida com a idade; este pensa no melhor para a sua tribo; aquele pensa apenas no seu valor como guerreiro. Perante esta situação, a posição de Martim vai-se tornando mais insuportável.

Análise do Capítulo IV de Iracema


     Em todos os romances do Romantismo, há sempre um herói e um vilão. O mesmo acontece aqui: Martim é o herói e Irapuã é o vilão.
    Desde o início vai-se evidenciando uma série de elementos que separam Martim de Iracema, mas apesar disso há entre eles uma ligação que se vai estreitando e tornando mais forte. Os elementos contra são vários:
        » raça: Martim é branco; Iracema é índia;
        » condição: ele é guerreiro branco; ela é sacerdotisa de um deus da sua religião: Tupã;
        » amizades: ela é da tribo dos Tabajaras e ele é amigo dos Pitiguaras, inimigos dos
            Tabajaras.
    A questão da amizade é muito importante, porque se vai encontrar sempre a oposição entre as duas tribos que se chegam a guerrear. Elas representam dois elementos opostos: Pitiguaras simbolizam o mar e os Tabajaras a terra. É o mar dos Pitiguaras que caracteriza Martim e é a terra dos Tabajaras que caracteriza Iracema. Contudo, apesar de tudo, a ligação deles vai-se acentuando no meio deste conflito.

Uma narrativa sobre pinguins, hotéis e família

 Os pinguins e o otel e a familia

    Os pinguins e a familia viajaram para o otel de casas e quando chigaram lá gostaram da surpresa e a familia foram para o café e o filho. Esta noite os pinguins viajaram popé da familia e todo juntos ficaram feliz e conte e ficaram impresiodados e muitos pensadores. Quando apareceu o pinguim ficaram todos felizes e contente quando ele apareceu quando o ape as coisas da mãe a mãe disse não fás mal filho adorado e ficaram contentes quando apareceu o filho adorado e tavam impresionado e quando ficaram felizes já era de noite e foram rápido a jantar para ir a vestir o pijama para ir dormir na quama descansado para amanha ir a escola.

    Mais do que calinada ou motivo de riso, este escrito deveria ser causa de reflexão, mesmo tendo em conta que se trata de 2.º ano de escolaridade e de uma prova de aferição. Ao fim de quase de dois anos de escolaridade, o(a) aluno(a) em questão está neste estágio no que diz respeito à escrita.

Análise do Capítulo III de Iracema


     Encontramos neste capítulo a descrição do costuma da hospitalidade índia, com formas de cumprimento específicas: "Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho Pagé apagou o cachimbo e falou: - Vieste? / - Vim -respondeu o desconhecido."
    Constatamos o afastamento do caráter poético que imbuía o texto, porque a ação tem de avançar, o que é típico do romance.
    Vai-se também acentuando um clima de mau augúrio; espera-se que algo de mau aconteça, porque há várias indícios de fatalidade, que vai acontecendo e que se acumula. Há da parte do Pagé uma progressiva adivinhação de algo mau, o que se acentua quando Martim refere a sua amizade com os Pitiguaras, inimigo do povo de Iracema, os Tabajaras. Isto é mais um indício da impossibilidade da relação de Martim com Iracema.

Conclusão dos três capítulos iniciais:

        » Abertura poética: criação progressiva de um determinado clima: o comportamento de Iracema; alusão a acontecimentos que permanecem obscuros; uso de metáforas e imagens; a natureza tem um caráter fundamental. Este caráter poético vai-se restringindo ao discurso do narrador e à fala das personagens, porque a intriga tem de progredir.

        » Cor epocal: elemento essencial do Romantismo. É necessário dar a noção da cor epocal, porque é um ambiente que se situa no passado e, logo, é desconhecido, tornando necessária a caracterização da sociedade. Os elementos usados são os seguintes: notas do autor, toda a introdução feita ao ambiente do Ceará: descrição das personagens; descrição da natureza, adivinhação que o narrador faz do que as personagens pensam e sentem; a fatalidade que se anuncia e o uso de metáforas e imagens.

Análise do Capítulo II de Iracema


     Começa com uma analepse, que só termina no último capítulo. O tempo das formas verbais é agora o pretérito perfeito.
    Começa a descrição de Iracema através de elementos de uma natureza bucólica e exótica: "Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira."
    Segue-se a narração da cena do banho, que é uma cena que vem já da literatura clássica, de Ovídio. É a mulher que sai do banho sedutora e atraente, dando origem à cena do enamoramento.
    Ao contrário de Iracema, a descrição do herói, Martim, tem por base uma natureza marítima: "Diante dela... está um guerreiro... Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das águas profundas."
    Isto representa uma dualidade entre ambos e que irá indiciar a impossibilidade da sua ligação a Iracema. Ele é o herói romântico; ela representa o apego à terra. Daqui vem o caráter indianista da obra, pois o narrador é o eco do pensamento de Iracema, o que mostra que tem um modo de pensar índio: "Diante dela, e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta..."
    Apesar do clima poético das descrições e do discurso do narrador, temos neste episódio já uma progressão da intriga: temos uma situação de paz com o banho de Iracema, que é perturbada pela chegada de um elemento estranho - Martim. A reação de Iracema é negativa, mas logo a seguir temos a restauração da paz inicial.
    Neste capítulo, temos assim uma progressão na ação e uma descrição de Iracema com elementos que se opõem aos que são usados para descrever Martim.

Análise do Capítulo I de Iracema


    Este romance tem um fundamento histórico, apesar de toda a idealização do índio com que deparamos.

    Neste início do romance, há aspetos que ressaltam desde logo à vista: lembra um poema; vocabulário romântico e presença constante da natureza.
    A apresentação do tempo e do espaço, das personagens e da ação é o que é típico da abertura de um romance. Mas aqui não é isto que acontece. Temos apenas vagas referências ao espaço: Ceará, terra natal do autor. Não há especificação do tempo, por que todos os verbos estão no presente. Não há a noção do tempo, apenas quando quebra o discurso que vinha fazendo para dizer: "Uma história que me contaram nas lindas várzeas, onde nasci à calada da noite...". Logo a seguir retoma o mesmo tipo de discurso poético e vago.
    Também a referência às personagens é vaga de tal modo que ignoramos o papel que vão ter na narrativa: cão, criança e um guerreiro branco. O narrador mantém sempre o mesmo tipo de discurso, quebrando-o apenas uma vez. Esta quebra liga-se à importância da oralidade, fator relevante no Romantismo.
    Ao nível do discurso, o texto parece um poema em tom de memória e saudade, de melancolia da «doce suavidade», o que favorece o tom poético, que é dado pela linguagem, pelo discurso do narrador e pela forte seleção do vocabulário. Temos ainda uma sensação de suspensão: tudo é referido, mas nada se descobre.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Vida e obra de José de Alencar


     José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, Ceará, a 10 de maio de 1829. Fez os seus estudos elementares e secundários no Rio de Janeiro e, em 1843, foi para São Paulo, onde se formou em Direito. Regressou depois ao Rio e iniciou a atividade de jornalista e advogado. Faleceu em 1877.

    A sua produção literária é vastíssima e insere-se em vários domínios: romance, poesia, história, teatro. Dentre as suas obras, destacam-se Cinco Minutos (1860), As Minas de Prata (1862), Diva (1864), Iracema (1865), O Gaúcho (1870), Senhora (1875), O Sertanejo (1875).

    Foi um escritor que gerou muita polémica: uns julgam-no genial, magistral; outros fazem dele um secundário contador de patranhas de índios e vaqueiros. Uns elogiam o seu estilo e amor à "língua brasileira", outros irritam-se perante a exuberância das imagens. Se os comentários negativos são maus, os positivos correm o risco de o transformar num contador de histórias para adolescentes, o que tem criado a imagem de um romancista que não se pode levar a sério.

    Mas, na verdade, Alencar está para a prosa romântica como G. Dias está para a poesia: é o mais importante ficcionista do Romantismo brasileiro, quer pela sua vasta obra, quer pela variedade dos temas versados e pelo estilo. É um marco na tradição literária brasileira e foi o primeiro escritor a devotar-se integralmente à sua obra, mesmo nos momentos em que era um político.

    No prefácio a Sonhos d'Ouro, Alencar discute o período orgânico da literatura brasileira, dividida em três fases:

  • uma fase primitiva ou aborígene, que são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada (ex.: Iracema);
  • a segunda fase é histórica: representa o consórcio do povo com a terra americana (ex.: Guarani);
  • a terceira fase começa com a independência política e espera escritores que formem o verdadeiro gosto nacional (ex.: Gaúcho).
    Isto mostra que Alencar tinha consciência de ter tratado, nos seus romances, os aspetos fundamentais da realidade brasileira. Apesar dos vários domínios que abraçou, é na prosa de ficção que mais se destaca. Aqui, há sempre um elemento fundamental, que é o índio, como protagonista das lendas e factos históricos.

    Dentro do romance alencariano, podemos destacar alguns tipos:

        -» Romance urbano ou citadino, fruto de uma breve experiência jornalística, de uma observação da sociedade fluminense e da fantasia. Temos neste grupo romances como A Viuvinha, Diva, Senhora, A Pata da Gazela, etc. Obedientes ao figurino romântico, empregam os mesmos expedientes narrativos. Romances de intriga, entretenimento e namoro adolescente giram em torno do conflito de duas forças poderosas: amor e dinheiro, podendo surgir um terceiro membro que é a honra. O caso de Aurélia, heroína de Senhora, mostra perfeitamente este duelo de interesses e sentimentos, numa trama em que o dinheiro atribui à mulher o direito de esconder qualquer nódoa do passado e equiparar-se ao homem amado, a quem o dinheiro dá o direito de se render à evidência dos factos e tornar-se merecedor da mulher amada.
    Tais conflitos podiam dar-se apenas no domínio da burguesia, o que seria uma crítica; mas a forma como está organizado contém é uma apologia dessa classe, gozadora de ócios quase sempre néscios, preenchidos com algum negócio, forma de ação social que inclui o amor. Uma forma de pelintras, passando os dias a tentarem resolver o que chamavam de magna questão: sentimento amoroso que devia desembocar no casamento. Tudo se passa em ambientes burgueses, mesmo quando a história decorre em lugares não citadinos.

        -» Romance indianista: na linha de G. Dias, Alencar concebeu uma trilogia que abarcava o «modus vivendi» do indígena brasileiro: o Guarani retrata o encontro de um índio - Peri - com a civilização branca e portuguesa; em Iracema, temos uma intriga oposta: um europeu, Martim, descobre a vida primitiva do índio por meio da heroína que dá o nome ao romance; em Ubirajara, analisa os silvícolas no seu habitat natural. Nos três casos, o índio é visto com lentes cor de rosa, envolto num véu místico.
    Ser místico, o índio de Alencar é cheio de qualidades em flagrante contraste com o branco. Para os silvícolas vão todas as simpatias, aos brancos fica reservada a pior parte no contexto geral: batem-se em lutas fratricidas ou desconhecem os bons sentimentos dos nativos. A explicação para a idealização do índio reside na possível influência do pensamento de Rousseau, filtrado pela poesia de G. Dias e no facto de Alencar não conhecer de "visu" os heróis de suas narrativas. Quando muito teria convivido na infância com pessoas que lhe teriam contado lendas a respeito. A imaginação fizera o resto.
    O gosto de idealizar, que deliciava os românticos ávidos de exotismo paisagístico, eis o que se vê em Alencar. Quer pela ação, quer pelo código moral, os seus índios são talhados pelo molde dos cavaleiros medievais. Possuem apenas virtudes e chegam a superar os brancos nos mesmos valores de caráter que o Romantismo lhes atribui: autênticos cavaleiros andantes. Torna-se evidente o núcleo da resignada paixão de Iracema. Entrega-se a um branco num desprendimento natural; dá-lhe um filho: Martim regressa à pátria e a infeliz morre. É o quadro típico de um romance de cavalaria, onde o trato amoroso obedecia aos impulsos da sinceridade.
    Se virmos o respeito que o índio mostra pela religião cristã, fica desenhada a fisionomia medievalesca do indianismo de Alencar. Peri converte-se como bom cavaleiro à fé de Ceci e com isso descobre a explicação para o seu comportamento trovadoresco de subserviência mística à mulher. E Iracema morre de amor por se ligar ao branco. Sua morte simboliza a redenção do «pecado» de amar incondicionalmente. A morte recoloca-a no seu mundo original.

        -» Romance histórico, onde o medievalismo de Alencar ganha plenitude: As Minas de Prata, Guerra dos Mascates, Alfarrábios. Aqui põe-se à vontade, sem realizar, porém, o melhor da sua obra, pois pesavam-lhe a sombra de W. Scott e o exemplo de Herculano. O ficcionista esmera-se em situar os dramas numa geografia, para que a natureza sirva de pano de fundo e interlocutora. Ora, o romance histórico dispensa o diálogo com a natureza, porque desloca o eixo da efabulação para o facto documentado, a ação que a efetiva e a personagem que o realiza.

        -» Romance regionalista: O Gaúcho, O Sertanejo, O Tronco do Ipê e Til. O primeiro e o segundo passam-se respetivamente no Rio Grande do Sul e no Ceará. A ação dos outros decorre na baixada fluminense e na "confluência do Atibaia com o Piracicaba". Diferencia-os a geografia.
    Alencar quer, assim, oferecer um retrato das particularidades regionais do Brasil, das tradições e costumes ligados ao folclore. Ao longo dos romances históricos e indianistas apresenta as metamorfoses histórico-étnicas sofridas pelo país; agora ensaia um panorama dos vários aspetos do Brasil.
    No cerne deste tipo de romance temos a mesma visão do mundo presente dos anteriores, a demonstrar o truísmo da unidade na diversidade; os dados exteriores e a cenografia mudam sem comprometer o núcleo primitivo. Mas no regionalismo, Alencar pretendia-se realista.
    Como explicar a unidade na visão do brasileiro? De um lado, Alencar descobriria uma essencialidade imutável; de outro, seria incapaz de ver as diferenças entre os vários tipos de brasileiro. Isto reduz-se a um ponto: o encontro de um arquétipo brasileiro que mostrasse unos a respeito das variedades regionais, históricas, etc. Mas Alencar não pretendeu nem podia determiná-lo. Alencar era de um idealismo absoluto: "idealiza tudo, homens e cousas, não em virtude de uma estética preconcebida, mas porque é isso inerente à sua constituição artística."
    Daqui se pode deduzir que os romances regionalistas são ainda históricos, embora duma história contemporânea: fazem uso dos mesmos ingredientes narrativos presentes nos outros tipos de romance e não fogem à estereotípia medievalesca. A imaginação de Alencar socorre-se de um modelo fixo de protagonista, como se bastasse a verosimilhança do cenário e do enredo.
    Alencar movia-se na esfera do onírico e do fantasioso, não raro articulado aos mitos da infância. Implicando uma visão estacionária da história, tal apego à meninice leva-nos a formular uma hipótese de génese literária que também vale para os restantes românticos. A visão que Alencar tem do Brasil ofende os intelectuais brasileiros, porque ele reduz o brasileiro do campo ou da cidade: se homem, a Peri; se mulher, a Ceci. Isto é uma marca da herança portuguesa.

            Estilo de Alencar

    Ele é poeta na essência de sua cosmovisão e vestia o homem e a natureza de maravilhoso e concebia uma harmonia de paraíso para o mundo. Ao dizerem que Iracema é um poema em prosa, os críticos apenas apreendem uma parte da sua mundividência: poesia.
    Ele pinta a natureza com a imaginação, numa subjetividade em que o «eu» mais se contempla na paisagem do que observa, num idealismo de quem apenas encontra no universo as forças mágicas da infância. Ainda quando despido de recursos poéticos, é lírica a sua visão do mundo. A musicalidade é a característica essencial do seu estilo. Alencar concretiza-o pela utilização de ritmos poéticos e metáforas polivalentes.
    Alencar inaugura uma etapa na história do escritor brasileiro: com ele sai-se de uma atividade literária ocasional e diletante e inicia-se o processo de dignificação do homem de letras brasileiro. Nele se configura, pela primeira vez, a noção de literatura como forma de conhecimento da realidade brasileira e veículo de emoção estética superior.

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