Português: 29/04/12

domingo, 29 de abril de 2012

Episódio das Corridas de Cavalos

     Este é outro episódio que se insere na crónica de costumes.

1. Objetivos
  • Novo contacto de Carlos com a sociedade de Lisboa, incluindo o próprio rei.
  • Visão panorâmica da sociedade lisboeta (masculina e feminina) sob o olhar crítico de Carlos.
  • Tentativa frustrada de igualar Lisboa às capitais europeias, sobretudo Paris.
  • Criticar o cosmopolitismo postiço da sociedade;
  • Possibilidade de Carlos encontrar novamente a mulher que viu à entrada do Hotel Central.


2. Caracterização do ambiente geral

     2.1. Largo de Belém:
  • tosca guarita de madeira, armada de véspera -> improvisação;
  • monotonia;
  • tristeza e silêncio;
  • pasmaceira (o trabalhador com o filho ao colo e a mulher);
  • desinteresse (o garoto apregoando o programa das corridas que ninguém compra, a mulher da água fresca sentando-se na sombra a catar o filho);
  • o trintanário que fora comprar o bilhete de Craft demora-se em discussão com o bilheteiro, que não tem troco de uma libra; Craft apeia-se para ir resolver o problema e é insultado;
  • as pessoas em trajes domingueiros;
  • traços realistas: a descrição do calor, do colorido, dos sons e dos costumes de uma cidade estagnada. 
  • falta de motivação e entusiasmo pelo fenómeno desportivo em causa;
  • provincianismo.

     2.2. Entrada do hipódromo:
  • «... abertura escalavrada num muro de quintarola...»;
  • primeira desordem / discussão:
  • motivo: um sujeito queria entrar sem pagar a carruagem, porque o sr. Savedra lho tinha prometido;
  • o engarrafamento de dog-carts e caleches de praça;
  • os insultos dos ocupantes;
  • a intervenção deselegante da polícia;
  • o grande rebuliço e a poeirada;
. falta de organização
. pelintrice
. falta de educação
. provincianismo


     2.3. Descrição do hipódromo:
  • situado numa colina, sob a aragem vinda do rio, provoca uma sensação de frescura e paz;
  • a gente apinhada;
  • as precárias condições das tribunas e do espaço envolvente:
  • a tribuna real forrada de uma baetão vermelho de mesa de repartição;
  • as tribunas públicas com o feitio de traves mal pregadas - o hipódromo parecia um palanque de arraial - mal pintadas e com fendas;
  • o recinto da tribuna fechado por um tapume de madeira; 
  • as pessoas não sabem ocupar os seus lugares: «... havia uma fila de senhoras quase todas de escuro encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadas permanecia deserto e desconsolado...»;
. a improvisação
. o remendo apressado
. a iniciativa sem base sólida
. os retoques sem gosto


     2.4. Durante as corridas:
  • fuma-se e fala-se baixo -> falta de à-vontade;
  • as pessoas pasmam -> pasmaceira;
  • dois brasileiros queixam-se do preço dos bilhetes e consideram as corridas uma «sensaboria de rachar»;
  • a chegada do rei é saudada com o «Hino da Carta».

     2.5. Descrição do bufete:
  • instalado debaixo da tribuna;
  • pobreza: «... o tabuado nu, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor.» - assemelha-se a uma taberna;
  • falta de higiene e aspeto nojento: «... dois criados, estonteados e sujos, achatavam à pressa as fatias de sanduíches com as mãos húmidas da espuma da cerveja.»;
  • a animação fictícia, com hurras a Clifford e a Carlos.

     2.6. As corridas

     . 1.ª corrida: a do 1.º Prémio dos «Produtos»:
  • os dois cavalos «passavam num galope sereno»;
  • os assistentes não sabem quem ganhou e, mal a corrida termina, regressam ao silêncio, à lassidão e ao desapontamento;
  • o desinteresse pela corrida confirma-se na atitude dos que se encontram de costas voltadas para a pista, fumando e contemplando as mulheres;
  • o provincianismo bacoco dos homens que ficam parados e embasbacados a admirar Clifford;
  • a ausência de apostas;
  • a falta de autoridade e de respeito para com o rei, cuja proximidade não impede a desordem;
  • a corrida termina com uma cena de insultos e pancadaria por causa de uma burla (segunda desordem):
. quebra do verniz de civilização e requinte social que a sociedade pretendia ostentar, 
deixando emergir o provincianismo
. grande incultura e grosseria
. inadequação do ambiente cosmopolita das corridas à vivência social portuguesa
  • «Isto é um país que só suporta hortas e arraiais...»;
  • «Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada.»;
  • «Do que gostamos é de vinhaça, e viola, e bordoada...».
          SER          =/=          PARECER
     (provinciano)                   (civilizado)
 
«Aquela corrida insípida, sem cavalos, sem jóqueis, com meia dúzia
de pessoas a bocejar em roda...»
«... tudo aquilo era uma intrujice...»
porque era «... um divertimento que não estava nos hábitos do país.»

     . 2.ª corrida: a do Grande Prémio Nacional:
  • alguns sujeitos examinam o «Rabino», «com o olho sério, afetando entender», entre os quais se einclui Carlos, que também admira o cavalo, mas nota-lhe o peito estreito;
  • finalmente, aposta-se:
  • estão quatro cavalos inscritos na corrida;
  • o favorito é o «Rabino» e todos querem tirar o bilhete deste;
  • Carlos, por «divertimento» («... gostara da cabeça ligeira do potro, do seu peito largo e fundo...») e «... para animar mais aquele recanto da tribuna, ver brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres.», decide apostar tudo em «Vladimiro», apesar do potro ir em último lugar na corrida;
  • todos os outros decidem apostar contra Carlos, procurando «aproveitar-se daquela fantasia de homem rico...»;
  • contra todas as expectativas, «Vladimiro» vence «Minhoto» por duas cabeças, o que permite a Carlos ganhar a poule e provoca a irritação dos restantes, que perderam;
  • finalizada a corrida, o torpor volta a instalar-se enquanto as pessoas se dispersam:
  • «Mas uma indiferença, um tédio lento, ia pesando outra vez, desconsoladoramente...»;
  • os rapazes bocejavam, com um ar exausto;
  • a música desanimada;
  • «As senhoras tinham retomado a imobilidade melancólica...»;
  • «E sujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam...».
Conclusões - Intenção crítica de Eça:
  1. o oportunismo e a cupidez dos que se pretendem aproveitar de Carlos apostar no cavalo menos favorito;
  2. o desejo português de ser o primeiro em tudo;
  3. a tendência de as pessoas se aperceberem do que é óbvio e de se colarem ao vencedor, evidenciada pelo facto de mesmo os que não haviam apostado no «Minhoto» o aplaudirem, pois esperavam que fosse ele o vencedor;
  4. o patriotismo provinciano que vê em jogo, numa corrida de cavalos, o prestígio do nosso país: como «Minhoto» era um cavalo português, a sua vitória seria um ato patriótico;
  5. o cansaço rápido que se apodera de nós e que permite que outros venham, de seguida, colher o fruto do nosso esforço desordenado: o jóquei inglês deixou primeiro que «Minhoto» se cansasse, para depois o vencer facilmente;
  6. o não saber perder, patente na reação das personagens quando o cavalo em que apostaram perdeu:
  • «... o adido italiano (...) empalideceu...»;
  • «... atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas...»;
  • «... a vasta ministra da Baviera, furiosa...»;
  • «... o secretário lento e silencioso...».

     . 3.ª corrida: a do Prémio de El-Rei  um cavalo solitário atravessa a meta, sem se apressar, num galope pacato, e só muito tempo depois chega um outro cavalo, uma pileca branca arquejando, num esforço doloroso, numa altura em que o jóquei do cavalo vencedor se encontrava já a conversar com os amigos, encostado à corda da pista.

     . 4.ª corrida: a do Prémio da Consolação:
  • todo o interesse fictício desaparecera e regressa a indiferença geral;
  • junto à meta, um dos cavaleiros caíra;
  • já à saída, o Vargas, bêbedo, esmurrara um criado de bufete  «... tudo é bom quando acaba bem.».

     2.7. As personagens

          2.7.1. Os jóqueis:
                    . 1.ª corrida:
                              -» o Pinheiro - montava o «Escocês»
                              -» um sujeito - montava o «Júpiter»
                    . 2.ª corrida:
                              -» um jóquei - montava o «Rabino»
                              -» um jóquei espanhol - montava o «Minhoto»
                              -» um jóquei inglês - montava o «Vladimiro»
                    . 3.ª corrida:
                              -» um gentleman - montava um cavalo
                              -» um jóquei roxo e preto - montava uma pileca
                    . 4.ª corrida:
                              -» jóqueis sem identificação

          2.7.2. Os homens
  • O Visconde de Darque:
  • dono do «Rabino», o favorito, considera a sua participação um sacrifício;
  • «... não podia apresentar um cavalo decente, com as suas cores, senão daí a quatro anos»;
  • não apurava cavalos para «aquela melancolia de Belém», para aquele «horror»;
  • quando há qualquer problema ou dúvida, requisitam-no de imediato: «Eu sou o dicionário...».
  • El-Rei: sorridente.
  • Alencar:
  • elegantemente vestido;
  • sempre cortês e bem penteado nesse dia, beija fidalgamente a mão de D. Maria da Cunha;
  • encontra nas corridas «... um certo ar de elegância, um perfume de corte...».
  • O barão de Craben, pequenino, aos pulinhos.
  • Craft, que apresenta Clifford a Carlos.
  • Sequeira:
  • «... entalado numa sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapéu branco...»;
  • considera uma «sensaboria» «... aquela corrida insípida, sem cavalos, sem jóqueis, com meia dúzia de pessoas a bocejar em toda...», «... um divertimento que não estava nos hábitos do país...».
  • Clifford: «... parecia achar tudo aquilo ignóbil...», acabando por retirar a «Mist».
  • Steinbroken: aposta sem conhecer os cavalos.
  • Conde de Gouvarinho e os seus dislates e ignorância: «... todos os requintes da civilização se aclimatavam bem em Portugal.»; «O nosso solo (...) é um solo abençoado!».
  • Teles da Gama, encarregado de organizar as apostas.
  • Eusebiozinho, acompanhado pela Concha e pela Carmen.
  • Dâmaso:
  • o seu «chique a valer»;
  • a gabarolice, a falta de educação e de respeito para com as mulheres, traduzida numa linguagem rude: «... tinha estado (...) com uma gaja divina...»;
  • a queixa da troça que o seu véu provocara.

          2.7.3. As mulheres
  • Em geral:
  • as que vêm no High Life dos jornais
  • as dos camarotes de S. Carlos
  • as das terças-feiras dos Gouvarinhos
                     
  • não sabem ocupar os seus lugares
  • vestem-se ridiculamente de escuro («vestidos sérios de missa»)
  • peles murchas, gastas e moles
                     
                               «... canteirinho de camélias meladas...»

  • Em particular:
  • As duas irmãs do Taveira (diminutivos irónicos);
  • magrinhas;
  • loirinhas;
  • corretamente vestidas.
  • A viscondessa de Alvim: nédia e branca.
  • Joaninha Vilar:
  • cada vez mais cheia e com um quebranto cada vez mais doce no olhar;
  • lânguida, parece oferecer o seu «apetitoso peito de rola!».
  • As Pedrosos, banqueiras, interessando-se pelas corridas.
  • Condessa de Soutal: desarranjada, com lama nas saias.
  • D. Maria da Cunha:
  • desenvolta, ousada, foi a única com atrevimento suficiente para se vir sentar junto dos homens, porque «... não aturava a seca de estar lá em cima perfilada, à espera da passagem do Senhor dos Passos.»;
  • bela, apesar da idade;
  • muito à vontade, era a única a divertir-se;
  • considera ridículo o «Hino da Carta», porque dá às corridas um ar de arraial;
  • casamenteira, apresenta Alencar à sua amiga Concha e, depois, procura aproximar ainda mais Carlos e a condessa.
  • A menina Sá Videira:
  • petulante e pretensiosa;
  • filha de um rico negociante de sapatos de ourelo;
  • abonecada;
  • «... com o arzinho petulante e enojado...»;
  • «... falando alto inglês...».
  • A ministra da Baviera, a baronesa Craben:
  • «... enorme, empavoada...»;
  • muito gorda: «... com um gluglu grosso de peru...»; «... feitio de barrica, deixando sair o sebo por todas as costuras do vestido (...)»; «... a insolente baleia!»;
  • altiva, insolente e sobranceira.
  • A Condessa de Gouvarinho:
  • elegantemente vestida;
  • sensual e audaz;
  • é admirada por vários homens;
  • no dia seguinte, partirá para o Porto para comemorar o aniversário do pai e quer que Carlos a acompanhe, congeminando um plano para levar a cabo os seus intentos.

     Em suma, neste episódio, o narrador critica e caricatura uma sociedade que aplaude a organização das corridas na sua ânsia de imitar o que de melhor há «lá fora», sobretudo em Paris, modelo de civilização. Porém, como em Portugal não havia a tradição nem o hábito de realização de tais eventos, em vez de um grande acontecimento mundano, assistimos a um grande fiasco, a mais uma manifestação do gosto pela aparência e pelo postiço, em detrimento daquilo que seja autêntica e genuinamente português.
     Os alvos visados por Eça de Queirós são, basicamente, dois:
  • a Monarquia, pela falta de autoridade que o Rei demonstra, pois a sua presença não consegue impedir as várias desordens;
  • a alta sociedade lisboeta:
  • a incivilização;
  • o fracasso total dos objetivos da corrida;
  • a falta de decoro e de educação;
  • a incultura;
  • a grosseria;
  • o desinteresse;
  • o caráter mimético;
  • a improvisação;
  • o atraso generalizado;
  • o provincianismo: a organização das corridas, que pretendia emprestar-lhes um toque de civilização, acaba por pôr a nu o quanto há de postiço e de reles no decoro solene da assistência:
  • «... desmanchando a linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro...»;
  • a «... massa tumultuosa (...) empurrando-se contra as escadas da tribuna real, onde um ajudante de el-rei, reluzente de agulhetas e em cabelo, olhava tranquilamente...»;
  • os gritos de «Fora! Fora!», «ordem» e «morra»;
  • a reação agressiva do Vargas;
  • a fuga espavorida das «... senhoras com as saias apanhadas...».
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