Português: 05/02/23

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Análise da cena 10 de Frei Luís de Sousa


 
A cena abre com D. Madalena a dar instruções a Mirada no sentido de o criador ir esperar o bergantim, para a avisar da sua chegada e, consequentemente, do marido.
 
 
De seguida, à semelhança do que sucedera na cena II do primeiro ato faz novas referências temporais que funcionam como indício de desgraça: “Não há vento e o dia está lindo. (…) Mas a volta… quem sabe? O tempo muda tão depressa…”. Com estas palavras, D. Madalena alude à instabilidade do tempo, que está calmo, mas rapidamente pode mudar, e da própria vida (até ao momento aparentemente calma), constituindo um indício das mudanças grandes que se aproximam. Ou seja, a desgraça pode chegar de um momento para o outro, sem avisar, tal como o mau tempo num dia de sol. Será isto que acontecerá com as personagens: após um período de acalmia aparente, a sua vida desmoronar-se-á.
 
 
Localização temporal da ação
 
▪ A ação localiza-se no dia 4 de agosto de 1599:

dia e mês da batalha de Alcácer Quibir (1578)

D. João foi procurado durante 7 anos;

D. Madalena e Manuel de Sousa estão casados há 14 anos;

logo, passaram 21 anos.
 
 
O dia fatal
 
            Todas as personagens desnecessárias para o imediato desenrolar dos acontecimentos são afastadas para Lisboa com razões plausíveis e óbvias: Manuel de Sousa, por “negócio de importância no Sacramento” (II, 4); Maria, para “ver a tia Joana de Castro (ibidem); Telmo, para acompanhar Maria e por ordem expressa de D. Madalena: “Telmo que vá com ela; não o quero cá” (II, 6). D. Madalena fica, portanto, só, naquela casa assombrada, com os fantasmas de sempre:

“Sexta-feira! (aterrada). Ai que é sexta-feira!” (II, 5);

“Logo hoje!... Este dia de hoje é o pior… se fosse amanhã, se fosse passado hoje!...” (II, 5);

(abraçada com a filha) Oh, Maria, Maria… também tu me queres deixar! Também tu me desamparas… e hoje!” (II, 5);

“E tua mãe, deixa-la aqui só, a morrer de tristeza (à parte) e de medo?”.

            É, todavia, mais adiante, já depois da partida dos familiares para Lisboa, que se explicita, com mais clareza, a natureza e as razões dos terrores de D. Madalena (II, 10): “Hoje… hoje! Pois hoje é o dia da minha vida que não acabe sem muito grande desgraça… É um dia fatal para mim…”.
            As suas razões baseiam-se nas inquietantes coincidências acumuladas naquela sexta-feira, um dia já de si aziago, na superstição popular. Assim, D. Madalena aponta os motivos que a levam a considerar aquela “sexta-feira” um “dia fatal”:

▪ é sexta-feira;

▪ casou pela primeira vez (com D. João de Portugal);

▪ ocorreu a batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578, por hipótese também uma sexta-feira), da qual se celebra o 21.º aniversário;

▪ desapareceram D. Sebastião e D. João de Portugal (igualmente há 21 anos);

▪ viu pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho, por quem se apaixonou (o amor paixão, amor à primeira vista, ainda em vida de D. João, é considerado crime e pecado por ela própria;

▪ é o 14.º aniversário do seu casamento com Manuel de Sousa.

            Assim se compreende o estado de espírito de D. Madalena e a obsessão com aquele dia em concreto, que a leva a repetir oito vezes o advérbio de tempo “hoje”. De facto, e pelo exposto, ela sente-se culpada por se ter apaixonado por Manuel de Sousa assim que o viu, ainda casada com D. João, tendo, portanto, pecado em pensamento. Além disso, vive atormentada e aterrorizada pela dúvida que a persegue desde o início da peça, ou seja, que o primeiro marido ainda está vivo e que, por tudo isso, Deus a castigue. Deste modo, D. Madalena atribui um caráter fatídico àquele dua e pressente uma desgraça iminente.
 
 
Deste modo, a cena dá-nos a visão completa da hybris de D. Madalena, que é anterior à ação.
            Na cena II do segundo ato, D. Madalena abriu o coração perante Frei Jorge, numa espécie de confissão, na qual evoca o que se passou no íntimo da sua alma, desde que viu pela primeira vez Manuel de Sousa, ainda em vida de D. João de Portugal:
amor à primeira vista, ao modo romântico;
paixão súbita, fatal, considerada um «crime».
            E acrescenta:
esse “pecado” estava-lhe no coração;
dentro da alma já não tinha “outra imagem senão a do amante”;
guarda a D. João, bom, generoso marido, apenas “a grosseira fidelidade” física.
            Porque é que essa paixão, nascida no coração de D. Madalena, é por ela própria considerada “crime”? A paixão surge espontaneamente e é independente da vontade da personagem. A própria D. Madalena reconhece noutro passo (I, 2) que o amor “não está em nossa mão dá-lo, nem quitá-lo”. Não tem ela consciência de que essa paixão, instintiva e avassaladora, não obedece à razão, nem se submete ao poder da vontade? Por que razão diz, logo a seguir, que o “pecado” lhe estava no coração, que dentro da alma já não tinha “outra imagem senão a doa amante?” E que já não guardava a seu marido “senão a grosseira fidelidade “ física?
            Por outras palavras, se nesse momento o adultério ainda não estava consumado, por que motivo é que D. Madalena fala de “crime” e de “pecado”?
            Dentro dos limites da tragédia grega, espelho de uma sociedade pagã, a hybris manifestava-se pela escolha voluntária da alternativa delituosa. O momento decisivo da escolha de atos contra a ordenação das leis dos deuses, das leis naturais, das leis da cidade, constituída a crise. E só depois, pela consumação de tais atos, se verificaria o crime (crise e crime são, aliás, palavras da mesma família etimológica).
            Numa tragédia, como Frei Luís de Sousa, em que há uma mundividência e uma vivência cristãs, em que as personagens estão submetidas a um código moral assente no Evangelho, e em que a ação é predominantemente psicológica, há que ir mais longe e mais atrás, penetrar mais fundo na alma humana.
            Pecado, na ordem da Graça, é a infração da Lei de Deus, expressa no Decálogo, Lei que aponta para o Amor de Deus e para o Amor do próximo, que condena os atos físicos (6.º Mandamento), mas igualmente os atos interiores da vontade (9.º Mandamento). São Marcos explicita-o claramente: “É do interior do coração dos homens, que saem os maus pensamentos, prostituições, roubos, assassínios, adultérios…”.
            Nesta fase, que vai do momento em que pela primeira vez viu Manuel de Sousa, até à data da batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578), D. Madalena vive em pecado de adultério: “O pecado estava-me no coração” (II, 10). É um adultério consentido, vivido escondidamente, no segredo da sua consciência, na profundidade do seu foro íntimo, a que só ela e Deus têm acesso.
            Presa por laços indissociáveis do matrimónio cristão, que só a morte poderia quebrar, enleada na paixão e cega pela imagem do homem que completamente a empolga, consome-se intensamente entre a razão e o dever, por um lado, e o sonho impossível, por outro, talvez sem um remorso, sem um rebate de consciência, sem um anseio de libertação. Guarda, é certo, a “grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quási mais deve a sai do que ao esposo”, quer dizer, conserva as aparências, mas está mais atenta às reservas pessoais do pudor e às conveniências sociais, do que aos ditames da razão, às exigências do código moral da religião cristã, à piedade familiar no cumprimento dos seus deveres de estado.
            É nesta situação moral e passional que a vem surpreender a noticiada batalha de Alcácer Quibir funesta para D. Sebastião, para a flor da gente portuguesa e para D. João de Portugal.
            Até este momento, D. Madalena vivia duas vidas, confrontadas conflituosamente na penumbra misteriosa da consciência: por um lado, as vivências do amor-paixão, dominadas pela imagem de Manuel de Sousa, o «amante», como ela lhe chama na presente cena; por outro, o desejo de exteriormente salvaguardar as aparências de “respeito, devoção e lealdade” para com D. João, na frase de Telmo (I, 2). Por isso, até que ponto a presumível, mas não provada morte de D. João teria mesmo sido uma tentação, para pôr aprova o caráter de D. Madalena?
            Um intervalo inicia-se com essa data crucial do desastre de Alcácer Quibir: com 17 anos apenas (I, 2), D. Madalena fica viúva. Jovem, bela, nobre, alvo das simpatias de todos, aureolada pelo clarão crepuscular do sacrifício de quem lhe era caro, ela chora a perda do marido, respeita a “sua memória”, durante sete anos o “faz procurar” por toda a parte, gasta “grossas quantias”, assegura valimentos de “embaixadores de Portugal e de Castela”, influências e serviços de padres da Redenção, empenhados em reunir cativos, informações de religiosos e de mercadores (I, 2): D. João de Portugal não aparecia, nem vivo, nem morto. Gastos de dinheiro, diligências concertadas ou avulsas, oficiais ou particulares, não levaram a outra conclusão, senão a de que o primeiro marido desaparecera, e para sempre.
            Passados esses sete anos, acontece o inevitável, consumando-se a vontade de D. Madalena, até então ainda não manifestada: “Eu resolvi-me a casar com Manuel de Sousa; foi do aprazimento geral das nossas famílias, da própria família do meu primeiro marido, que bem sabeis quanto me estima, vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos” (I, 2).
            De facto, aparentemente, tudo está em ordem: D. João desaparecido para sempre, morto para a esposa, para a família, para os amigos (exceto Telmo), apodrece nos areais no Norte de África; a viúva, depois das lágrimas protocolares e do respeito cerimonioso dos primeiros tempos, refeita e remoçada a olhos vistos, aparece agora, como flor desabrochada, no viço dos seus vinte e quatro anos, na esperança, ou até na certeza, de em breve satisfazer a paixão que a domina. De resto, quem poderia legitimamente opor-se a que uma viúva jovem, bela, nobre, rica, voltasse a casar, e desta vez com o homem a quem sempre mais quis sobre todos, nas palavras de Telmo (I, 2)? Resolve-se, por fim, D. Madalena a casar com Manuel de Sousa, um casamento de amor, fruto da paixão tão reclamada pelos românticos. Mas será um casamento “santificado e bendito no céu”, na expressão de D. Madalena? Por outras palavras, será um casamento lícito e válido, sem mancha de pecado? Com este matrimónio, celebrado junto dos altares, perante Deus e perante os homens, afinal tornados cúmplices ou, pelo menos, comparsas, D. Madalena viola a Lei divina e as leis humanas, consuma, portanto, a hybris, pela acumulação de atos culposos:
mentira consciente (perjúrio);
profanação de um sacramento (sacrilégio);
bigamia;
impiedade.
            Por isso, restam imensas dúvidas sobre esta segurança de consciência, sobre esta paz de espírito e sobre esta felicidade de vida, nesses catorze anos de matrimónio. D. Madalena ter-se-ia esquecido do que em voz alta pensara e dissera, quando estava só, a contar consigo própria e com Deus? Recordemos a cena inicial da obra: “Oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que vivo… este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh! que amor, que felicidade… que desgraça a minha!”. Daqui nascem todos os seus conflitos de D. Madalena: consigo própria com Telmo Pais, com Manuel de Sousa, com a filha, com o romeiro – D. João de Portugal.


O longo desabafo-confissão de D. Madalena a Frei Jorge (confidente privilegiado na dupla perspetiva de irmão de Manuel e sacerdote) que constitui esta cena é desencadeado pelas palavras aparentemente despretensiosas do frade, em resposta aos receios de D. Madalena: “Não, hoje não tem perigo”.
        Ora, estas palavras são ambíguas: na boca de Frei Jorge, referem-se ao presumível bom tempo que fará para o regresso de Manuel de Lisboa; mas D. Madalena interpreta-as em sentido oculto, claro do seu ponto de vista: Hoje era o dia de maior perigo para ela.
        Repare-se, ainda, que a palavra hoje se repete 9 vezes só nesta cena, com uma insistência mórbida e inquietante, durante toda a confissão de D. Madalena. E é no preciso momento em que, por fim, esta evoca a sombra e o nome de D. João que Miranda interrompe a confissão para lhe trazer um “estranho recado” de um estranho romeiro.
 

O discurso de D. Madalena, à semelhança do que sucede desde o monólogo inicial da peça, reflete o seu estado de espírito. Assim, sempre que fala no seu passado, ela revela os seus medos e terrores ao recordar o tempo relacionado com D. João de Portugal e com o momento em que, estando ainda casada com ele, se apaixonou por Manuel de Sousa, com quem viria a casar vários anos depois. Na esteira do Romantismo, o estado de alma de D. Madalena reflete-se no seu discurso em frequentes interrupções e hesitações, daí a presença das reticências e de frases inacabadas. Outros recursos presentes no discurso da personagem são as repetições (“Hoje… hoje!”), as exclamações e as interrogações.
 
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