Português: 22/01/24

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Análise da 1.ª e 2.ª partes da crónica 1 de Assassinos da Lua das Flores


    Grann dá início à sua obra com duas histórias de perda, uma de caráter pessoal e outra de natureza comunitária, o que signifique que a intenção do escritor passar por associar o desaparecimento de Anna Brown com a vida tensa do seu povo, os Osage, uma tribo nativa norte-americana, cujas terras tradicionais incluem as que, atualmente, formam os estados do Missouri, Oklahoma, Arkansas e Kansas. A sensação com que se fica desde o início é que nem Anna nem o seu povo estão onde pertencem. Ao detalhar o contexto da morte de Anna, o registo narrativo muda, indo dos acontecimentos de uma única família até aos julgamentos da nação Osage. Ambas as histórias precisam de ser contadas, sugere o livro, e só podem ser totalmente compreendidas quando narradas em conjunto.

    Convém nunca esquecer que o livro não é uma obra de ficção, mas a primeira secção por vezes lembra a estrutura romanesca. Grann relata eventos históricos e retrata atores, mas dá vida robusta às personagens, imaginando os seus sentimentos e reações, chegando até a recriar os seus supostos diálogos. Quer isto dizer que o autor pede emprestadas à ficção algumas das suas técnicas narrativas características, no sentido de preencher algumas lacunas que se verificam e que se relacionam com o facto de estarmos na presença de um registo histórico que, ocasionalmente, é parcial e com os imperativos típicos de uma narrativa longa. Caso contrário, estaríamos perante um texto árido, uma espécie de relatório descritivo de um acontecimento brutal e trágico.

    Nestas duas primeiras partes, o palco pertence quase por exclusivo a Mollie e são as suas experiências, emoções e ações que dominam o texto. Assim sendo, não é de estranhar que o leitor não veja Anna na vala onde foi entrada, pois tem apenas acesso ao conhecimento de Mollie dos acontecimentos: a organização da festa, o crescer da ansiedade decorrente do desaparecimento da irmã, etc.

    Mollie é uma mulher que vive entre culturas. Criada de acordo com as tradições dos Osage à medida que aumentava a pressão de relocalização e assimilação, Mollie casou-se, no entanto, com um homem branco e vive, graças à grande riqueza da tribo, ao estilo americano. Apesar de ter de suportar o preconceito e o racismo expelidos pela família e conhecidos do marido, a sua existência é, ainda assim, privilegiada, graças à riqueza obtida pela tribo a que pertence após a descoberta de petróleo. O abismo que existe entre os dois «povos» e respetivas culturas fica bem evidente aquando do funeral de Anna: os ritos católicos (a missa na igreja, presidida por um padre, e a lápide com uma frase cristã depositada no seu túmulo) coabitam com as tradições osage (entoar de orações osage dirigidas a Wah’Kon-Tah). O sepultamento ocorre ao meio-dia, para coincidir com o momento de ápice do Sol, no entanto, como referido anteriormente, o estado avançado de decomposição do corpo impediu a realização de todos os rituais osage.

Resumo da 1.ª parte da 1.ª crónica: A mulher desaparecida


    A ação tem início em 24 de maio de 1921, quando Mollie Burkhart, uma mulher da tribo osage, fica cada vez mais preocupada com a ausência prolongada de sua irmã mais velha. A preocupação acentua-se pelo facto de Minnie, a outra irmã, ter morrido quase três anos antes. O capítulo traça um quadro geral da história recente dos Osage. A tribo foi forçada a deixar suas terras tradicionais no Kansas na década de 1870 e reinstalou-se no nordeste do estado de Oklahoma. Este novo território parecia indesejável, mas, quando descobriram petróleo na zona, todos os membros da tribo enriqueceram. No início da década de 1920, os Osage eram as pessoas mais ricas do mundo per capita, o que causou a inveja dos homens brancos.

    Mollie trabalho de essas diferenças culturais serem superadas, desde logo porque ela é um exemplo de uma certa miscigenação cultural, dado que se, por um lado, usa o cabelo tradicional da tribo e se enrola em um cobertor, por outro, é casada com um homem branco, Ernest Burkhart. Este veio do Texas para a região, para fazer fortuna. Quando Mollie se apaixonou por ele, o homem alcançou esse objetivo. Embora Mollie tenha sentido alguma pressão para se casar de acordo com a tradição Osage, seguiu a sua vontade e desposou Ernest em 1917. Desse matrimónio resultaram dois filhos. A mãe de Mollie, Lizzie, morava com os Burkharts. No dia em que Anna desaparece, Mollie prepara-se para dar uma festa. Quando chega a casa, depara com a irmã alcoolizada, o que a irrita, pois os convidados incluem alguns parentes racistas de Ernest que estão sempre à procura de formas de rebaixar Mollie. Mesmo assim, esta entende que Anna está aborrecida com o seu recente divórcio de Oda Brown e, talvez por isso, flerta com o irmão de Ernest, Bryan, tornando-se cada vez mais conflituosa à medida que bebe. Bryan oferece-se para levar Anna a casa e esta é a última vez que Mollie vê a irmã viva.

    Dias depois, Ernest desloca-se a casa de Anna para conferir o seu estado, porém não a encontra na habitação. Pela localidade circulam notícias de que outro osage, Charles Whitehorn, também está desaparecido desde 14 de maio. Cerca de uma semana após o desaparecimento de Anna, um trabalhador do petróleo encontra o corpo de Whitehorn tão decomposto que só alguns papéis que encontram nos seus bolsos permitem o seu reconhecimento. Na mesma época, noutro ponto do território, um homem e o seu filho encontram o corpo de uma mulher à beira de um riacho. Mollie e a sua irmã, Rita, identificam-no como sendo o de Anna, graças ao cobertor enrolado nele.

Análise sumária da ação de Assassinos da Lua das Flores


    Ao longo da década de 1920, membros da nação Osage morreram a uma taxa muito superior à média nacional. Alguns foram obviamente assassinados, enquanto outros morreram em circunstâncias suspeitas devido a doenças debilitantes cuja causa foi impossível de determinar. Na época, a história das mortes misteriosas foi notícia nacional nos Estados Unidos, porém, à medida que o tempo foi passando, o caso foi caindo no esquecimento geral.

    Na sua narrativa, o autor estabelece um contraste gritante entre a imagem idealizada que os norte-americanos construíram sobre si próprios – por exemplo, a mitologia em torno da fronteira, o sonho americano, o indivíduo que se faz a si próprio – e a realidade concerta que, muitas vezes, esses mitos encobrem ou diminuem.

    A obra está dividida em três partes que combinam a história dos nativos osage, a situação dos Estados Unidos no início da década de 20 do século XX, a história dos detetives privados e a formação do departamento federam de investigação norte-americano. O traçar deste panorama por parte de Grann possibilita ao leitor contemporâneo ficar a conhecer a justiça como ela se exercia no país no início do século passado. Por outro lado, os factos narrados estão escorados pela investigação do autor, que consultou arquivos vários, oc qeu lhe permitiu desenterrar factos desconhecidos, procurando construir uma imagem tanto quanto possível fidedigna do que se passou na época e retratar o que os Estados Unidos foram e são. Além disso, a narrativa permite também fazer algo que é caro a variadíssimos povos: celebrar heróis, como Mollie Burkhar ou Tom White, e denunciar vilões, como William Hale.

    A segunda parte da obra retrata o desenvolvimento da investigação do caso dos nativos osage e a formação do FBI a partir da já existente agência conhecida como Bureau of Investigation. Este segundo fio narrativo é importante a dois níveis. Em primeiro lugar, as discussões acerca da mudança dos métodos de investigação ou a forma como a aplicação da lei e da justiça mudou radicalmente fomentam a atração para a leitura do livro de leitores que, de outra forma, talvez não o fizessem, isto é, se se tratasse de uma «simples» história sobre a história de uma tribo de nativos norte-americanos. Por outro lado, Grann enquadra os assassinatos dos osage no contexto nacional, visto que são precisamente esses crimes que J. Edgar Hoover utiliza como pretexto para desenvolver um departamento de investigação nos moldes que desejava. Em segundo lugar, o autor estabelece um paralelo subtil, mas muito significativo, entre as figuras de Hoover e William Hale. A base para esse paralelo reside no facto de ambos se deixarem corromper pelo poder e de supervisionarem extensas redes de influência. Esse cotejo demonstra que a corrupção está presente em qualquer lugar, seja numa localidade pequena como Osage ou num grande centro urbano como Washington, a capital da nação. Neste sentido, podemos inferir que, não obstante a história em torno dos osage ser terrível, não pode ser compreendida como excecional no tempo e no lugar, visto que casos análogos surgem em diversos pontos, sempre que as pessoas exercem o poder sem controle.

    Ao longo do texto, o seu autor promove várias a intertextualidade, seja por meio de referências a romances ou obras históricas, seja pela inserção na narração de citações de manchetes de jornais ou revistas da época em que os acontecimentos tiveram lugar. Por outro lado, dado que estamos na presença de uma obra de não ficção literária, a mesma contém diferentes registos. Por exemplo, quando o assunto gira em torno da investigação feita por White (segunda parte do livro), Grann baseia a narrativa nos relatórios e transcrições de entrevistas que os agentes fizeram e registaram na época. Esta metodologia estabelece uma ponte entre a busca de precisão e rigor por parte do líder da investigação e a omnisciência do narrador nesta parte do texto. Por seu turno, na primeira secção, quando o autor descreve os sentimentos de Mollie, que em grande medida têm de ser deduzidos a partir da pouca informação conhecida, o estilo adotado na narração é o típico da não-ficção narrativa, o qual permite a pintura de um quadro vibrante da vida dos osage, nomeadamente do terror a que são sujeitos e do desamparo em que se veem imersos após o início dos assassinatos. Para conseguir esse desiderato, Grann segue o modelo das obras de mistério: estabelece o problema – os assassinatos – e atrasa a resolução dos mesmos até ao final da segunda parte do texto. Quando chega à parte final, a pessoa narrativa muda da terceira para a primeira pessoa, fazendo uso da sua própria investigação em busca de informação no sentido de conferir à narrativa entusiasmo e sentido de urgência. Nesta fase da obra, o leitor interioriza que algumas das questões ficam sem solução, o que permite concluir que a questão da aplicação da justiça se mantenha igualmente em aberto. Procurando unificar os acontecimentos narrados e os temas abordados, o autor designa cada parte do seu livro de «crónica», uma terminologia que enfatiza a importância narrativa da obra e dos factos ocorridos.

    Um dos temas mais significativos da obra é uma questão que atravessa os tempos e parece não ser solucionável. Referimo-nos ao problema do preconceito racial, concretamente o que vitima os nativos americanos às mãos dos colonos brancos, numa fase inicial, e, mais tarde, dos norte-americanos. Na segunda seção do texto, John Ramsey é citado como tendo dito que os duzentos anos que correspondem à independência dos EUA não alteraram o modo como os homens brancos olham para os seus congéneres indígenas. O cinema norte-americano não se cansou de retratar o problema, por exemplo, nos incontáveis westerns que foram produzidos nas décadas de 40, 50 ou 60 do século passado e que colocavam, a par, o lado heroico da colonização do Oeste e a trágica epopeia das tribos índias, assassinadas em verdadeiros massacres ou remetidas para reservas indignas que constituíam verdadeiras prisões do corpo e do espírito. De forma simples, a obra de Grann sugere que era tão fácil assassinar um nativo americano em 1920 como o fora duzentos anos antes, ou seja, o preconceito está tão profundamente enraizado na história do país que continua a fazer-se sentir no presente. Confirmando esta hipótese, se é verdade que a terceira parte do livro não contém qualquer assassinato, o autor informa que a comunidade osage apenas em 2011 obteve justiça por parte do governo norte-americano no que se refere aos abusos e crimes a que foi sujeita cerca de um século antes.

    Estes dados permitem concluir também que existe uma continuidade entre o passado narrador e o presente, tanto no que concerne à injustiça racial, ao preconceito e à forma como os traumas desse passado continuam a interferir e a moldar a vida da comunidade tribal na atualidade. Uma fotografia de William Hale foi recortada de outra da década de 1920, não porque os osage queiram esquecer o que se passou, mas porque o passado ainda é demasiado presente e se faz sentir de forma aguda e o ódio racial permanece como um fato que perturba a relação entre passado, presente e futuro de forma destrutiva. A mensagem final passa por procurar chamar a atenção para a necessidade de a sociedade norte-americana ser, de facto, inclusiva, aceitando e integrando os variadíssimos tipos de pessoas que a constituem.

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