Português: 25/01/20

sábado, 25 de janeiro de 2020

Análise de "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade

Este poema foi publicado pela primeira vez em 1930, integrado na sua obra inicial: Alguma Poesia. É constituído por uma única estrofe de sete versos (sétima) livres e não rimados, que aborda o tema das dificuldades e os desencontros amorosos. Tal noutras poesias de Carlos Drummond de Andrade, o que está em equação nesta é a solidão do sujeito no mundo e a sua dificuldade em estabelecer laços com aqueles que o rodeiam, ou seja, os amores desencontrados.

Podemos dividir o poema em duas partes. Na primeira, constituída pelos três versos iniciais, são apresentadas várias paixões não correspondidas: todos os indivíduos, exceto Lili, amavam sem serem correspondidos. A confusão de sentimentos e os desencontros sucessivos caracterizam a história que o sujeito poético está a narrar, o que nos permite concluir que o amor não é fácil de encontrar e ainda menos de concretizar.
Na segunda parte, composta pelos quatro versos seguintes, o sujeito lírico dá-nos a conhecer o destino das personagens que conhecemos anteriormente: o exílio de João nos Estados Unidos, o recolhimento de Teresa no convento, o desastre que matou Raimundo, o título de tia (imposto?) a Maria, o suicídio de Joaquim e o casamento de Lili (que não amava ninguém) com J. Pinto Fernandes (que até aí nada tinha a ver com a história). Todos parecem ter ficado sozinhos ou deixado escapar o amor, seguindo os seus destinos direções diferentes. Atente-se na forma como o sujeito se refere ao marido: impessoal, sem nome próprio, sendo apresentadas apenas a inicial. Por outro lado, J. Pinto Fernandes parece mais uma designação comercial, que identifica, portanto, uma empresa ou um negócio, do que o nome de uma pessoa. Assim sendo, talvez seja uma forma de insinuar que o relacionamento entre o casal é distante, ou então é uma relação de interesse. Seja como for, Drummond de Andrade parece sugerir no poema a imprevisibilidade da vida e do próprio sentimento amoroso.

O título da composição constitui uma referência a uma contradança de origem holandesa que granjeou enorme sucesso na França, durante o século XVIII, onde recebeu o nome de “Neitherse”. No século XIX, tornou-se muito popular nos salões aristocráticos e burgueses em todo o mundo ocidental. De facto, no poema está presente a quadrilha francesa, que se tornou tradição nas festas juninas brasileiras e que consiste na evolução diversa dos pares, sendo aberta pelo noivo e pela noiva, pois a quadrilha representa o grande baile do casamento que, supostamente, se realizou, onde os casais formam pares que se entre dançam. Na composição, homens e mulheres desencadeiam desencontros amorosos e somente quem não amava ninguém (Lili) consegue encontrar o seu par. Metaforizado pela quadrilha, o amor surge como uma dança onde os pares estão trocados e os sentimentos não são correspondidos. Quase todos os indivíduos estão apaixonados e são alvo do amor de alguém, mas as linhas parecem estar cruzadas e nenhum relacionamento se concretiza. Aparentemente, o sujeito poético retrata o amor como algo absurdo, uma espécie de jogo de sorte que apenas alguns têm a oportunidade de vencer.
Assim sendo, de forma simples e recorrendo a exemplos concretos e do quotidiano, o texto ilustra o desespero daqueles para quem o amor verdadeiro parece ser impossível. A construção do poema assemelha-se a um ciclo vicioso: um ama outro, que ama outro, que ama outro e assim sucessivamente. No entanto, ao contrário do ciclo vicioso, em que seria expectável que o último indivíduo mencionado amasse o primeiro, este termina na última personagem apresentada: Lili.

O recurso a nomes de pessoas comuns significa que qualquer indivíduo pode ser vítima das frustrações do amor: João, frustrado com o desamor de Teresa, parte para os Estados Unidos; Teresa, desapontada com a não correspondência de Raimundo, procurou a clausura no convento para nunca ser de nenhum homem, entregando a sua vida somente a Deus; Raimundo, que amava Maria e que também não foi correspondido, morreu de desastre, talvez numa tentativa de fugir da vida ou de si mesmo; Maria, descontente com o seu destino, não se voltou a envolver com mais nenhum homem, além de Joaquim, que decidiu suicidar-se por causa de Lili, que não o amava nem a mais ninguém. De facto, esta última figura está ligada à tragicidade dos outros indivíduos, mas é a única que não estabelece qualquer vínculo afetivo com nenhum dos pares.

Note-se, por outro lado, que as personagens não possuem sobrenome, à exceção de J. Pinto Fernandes. Sem origem definida, parece simbolizar a perda da individualidade, o sentimento humano que luta para sair do isolamento, da solidão. Assim, a vida constitui uma experiência angustiante, na qual o convencionalismo e as aparências valem mais do que a essência. Tudo isto é agravado pelos desencontros amorosos.

O amor é apresentado como uma extensa cadeia de afetos, os quais se inscrevem num quotidiano centrado nas necessidades imediatas, porém num contexto de superficialidade sentimental. O amor é um sentimento mundano, temporal: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili.
O poema é constituído por uma única estrofe, determinada pela musicalidade que embala a situação de cada personagem, cujo ritmo dos versos é um retrato cómico dos desencontros amorosos em que a dança, isto é, a quadrilha, é a mais célebre representação da condição trágica da carência, da desilusão do amor. No meio dos jogos de desencontros, a dança da quadrilha determina o destino das personagens.

Os nomes são repetidos, facilitando a identificação e memorização das personagens, visto que estão dispostos numa certa ordem nos três primeiros versos, que é repetida nos três últimos. A redundância é um traço modernista.

Na construção humorística e divertida da composição poética, a troca de pares e desencontros amorosos entre as personagens vai sendo apresentada em duplas ao leitor, como é característica das quadrilhas, onde os pares se situam frente a frente. No entanto, há uma alternância entre os pares, visível na presença do conectivo “que”, o qual separa e une os pares, ou seja, os casais mostram o “porquê” dos problemas que impede a união entre eles, isto é, da não conexão. Somente no último verso, que é marcado pela única união (entre Lili e J. Pinto Fernandes), esta é estabelecida através da conjunção coordenativa “e”, que evidencia a afinidade e a oposição estabelecida entre os dois pares, pois um, só com o apelido, Lili, e o outro, só com o sobrenome, J. Pinto Fernandes, atraíram-se, entrelaçando-se em matrimónio.

Um outro aspeto interessante reside no facto de apenas Lili, que não possui nome próprio, apenas apelido, e é a única personagem com essa característica, se ter casado. Ela representa o anonimato de qualquer um que poderia ter entrado na dança e ter-se dado bem, pois, além de se ter casado, foi a única a envolver-se com um homem possuidor de sobrenome, dando a ideia de ser um nobre, originário de uma classe alta, exatamente onde a quadrilha teve origem.

Todos os nomes das personagens, exceto o de Lili e do seu par, são nomes simples, comuns, do povo, ou seja, da plebe, que foi para onde a festa folclórica da nobreza se estendeu após ter descido as escadarias dos palácios franceses. O J. Pinto Gonçalves, que ainda não tinha entrado na história, e muito menos no baile, é uma representação da nobreza, da alta sociedade, expressas no seu sobrenome. O seu primeiro nome não é citado como o das demais personagens, está abreviado. Apenas o seu sobrenome importa, dado que o que é marcante no seio da alta sociedade não é o nome, mas o sobrenome. Ele representa a marca originária da família nobre à qual pertence. É curioso que não se sabe se Lili amava ou não J. Pinto Fernandes, ou se passou a amar ou pelo menos apaixonar pelo seu companheiro depois do enlace. Assim sendo, não se pode dizer que foi uma união perfeita, muito menos feliz.
Se ela não amava ninguém, nem mesmo J. Pinto Fernandes, podemos dizer que se pode ter casado simplesmente para não ter o mesmo destino das demais mulheres do poema, ou ainda, com ambições mais elevadas, pelo facto de querer sair do seu anonimato, por meio da aquisição de um sobrenome de nobreza. A composição poética, que seguia uma sequência de desencontros, foi alterada com a introdução de J. Pinto Fernandes, que «não tinha entrado na história», isto é, alguém que ignora tudo o que tinha havido anteriormente na vida dos outros pares e, principalmente, de Lili, a quem recebe como companheira independente dos seus sentimentos para com ele. Finalmente, quando o casal desconhecido se enlaça, ou se «enrola», não são somente a música ou a dança, mas a própria vida que para quando os caminhos de Lili e J. Pinto Fernandes se cruzaram. Podemos relacionar o poema com a dança da quadrilha, pois as modificações e evoluções acabaram por alterar os compassos da dança, da música e do amor.

Bibliografia:
. ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma Poesia. 8.ª ed.- Rio de Janeiro: Record, 2007.
. CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945: panorama para estrangeiros”. In: Literatura e sociedade. 8.ª ed., São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000. pp. 109-138
. Elenco de cronistas modernos por Carlos Drummond de Andrade [e outros] – 21.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
. VILLAÇA, Alcides. Drummond: primeira poesia. USP.São Paulo: Editora 34, 2002.


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