Português: Pintura
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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Análise do quadro "Heterónimos", de Almada Negreiros


Almada Negreiros (1893-1970). Heterónimos. 1958. Mural Fac. Letras de Lisboa


    A arte, dando voz a Campos, é “a expressão de um pensamento através de uma emoção ou, em outras palavras, de uma verdade geral através de uma mentira particular.” (cit. por Coelho, 1949: 162). Sob esta forma de arte dramatúrgica representada em gente, o traço de Almada percorre os corpos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos na sua própria linguagem, integrando-os numa estética que se classifica de intemporal. Num estilo único, Almada, não mais dramaturgo do que Pessoa ele mesmo, teatraliza o drama em gente e, na reprodução pictórica em causa, não se limita a apresentar o que este triângulo de poetas foi ou poderia ter sido. Almada vestiu as almas reais ao corporizar a totalidade da mentira dos corpos. Almada, pintor, dramaturgo despersonalizado, criou imagens como extensões das almas: da deles, de Pessoa, da sua. E o drama em gente foi interpretado, decifrado, transfigurado, metamorfoseado, representado, dramatizado, permanecendo, no final, os fragmentos daquilo que cada um deles foi: “Voo outro – eis tudo.” (Pessoa, 1950: 17).
Os “eus” que revelam a multilateralidade pessoana dificultam ao pintor a tarefa da sua representação na obra e, consequentemente, a de quem tenta descortinar o seu impossível retrato. O negro absoluto em que, pelas suas próprias mãos, envolveu as máscaras involuntárias (?) do seu fingimento, torna-as incoloríveis, se assim as podemos dizer, incompatíveis com qualquer representação pictórica, em suma, invisíveis de tão divisíveis que são. Contudo, os pintores continuarão pintando, perdendo-se, tentando encontrar os possíveis corpos, ajustando cores, moldando rostos a máscaras.
Almada Negreiros, que parece situar os heterónimos pessoanos em três planos distintos nesta representação, serve-se de uma linha quase contínua, que se move, simultaneamente, no sentido de uma abstração, de uma simplificação e de uma (ou várias) incerteza premente. Sabemos tratar-se de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas teremos iguais convicções que nos permitam identificá-los, à primeira vista, como sendo de facto quem aparentam ser?
A primeira figura da esquerda da representação, facilmente identificável com Alberto Caeiro, aparece-nos delineada melancolicamente por um tom azul dramático, quase trágico. Ligeiramente inclinado para trás, Caeiro é, das três personagens, a mais transparente. As linhas arredondadas que traçam o seu ténue volume demarcam, curiosamente, a sensação ambígua de quem já não está, daquele cuja vida “não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida” (idem, 1999: 329). E assim parece ser.
O poeta bucólico “era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era.” (idem, 1950: 26). É realmente frágil que Almada o pinta. Deste modo, “O facto curioso em Alberto Caeiro é que ele surge, aparentemente do nada e mais completamente do nada do que qualquer outro poeta.” (idem, 1999: 378). Surge do nada e, na voz do próprio, não passa de “um andaime” (ibidem: 378). Assim sendo, Caeiro é como um andaime vindo do nada feito para chegar a um outro local que não sabemos qual é. Um nada que leva a lado nenhum, ao desconhecido. Um nada que leva ao nada. E é deste modo que Caeiro irrompe da pintura como quem não suporta a ideia da própria existência. Caracterizado numa pose distorcida, articula-se com os vários sentidos que as linhas nos abrem, criando, dentro de um corpo, os rostos possíveis. O seu olhar, poderoso veículo de comunicação, é de um vazio profundamente assustador, tal como a expressão do seu rosto, mas, simultaneamente, os seus olhos são “azuis de criança que não têm medo” (idem, 1950: 27), como Álvaro de Campos de outro modo não os poderia revelar. O cabelo, de “um louro sem cor” (ibidem: 26) aparece-nos totalmente apartado para trás. As próprias linhas paralelas e secas que desenham o cabelo nada mais fazem senão corroborar esta duplicidade, ou multiplicidade, que acaba por caracterizá-lo: a criança que não teme e o adulto que não faz senão temer.
O braço esquerdo, posicionado ao longo do corpo, tal como o direito, termina numa mão ligeiramente inclinada, na posição normal de passo. Como as viu Campos, “as mãos eram um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga.” (ibidem: 27). Assim as pinta Almada. Ambas as suas mãos são perfeitamente visíveis, ao contrário do que acontece com as outras duas personagens, e na mão direita segura o que aparenta ser duas folhas, transparentes, tal como ele. Talvez Almada quisesse sugerir que, tal como Caeiro não era corpo, também as páginas não o eram. Páginas vazias de cor, de linhas, de letras, de pensamentos passíveis de serem guardados, num corpo inteiramente translúcido, pronto a ser ocupado, dito, escrito, vivido, existido.
A sua silhueta encontra-se inclinada para a direita, como quem caminha em frente, já que a perna esquerda está na posição de passo. No entanto, apesar de tudo nele indicar movimento (o que é coincidente nos três), Caeiro parece estático... Ou será que se encontra realmente imóvel? E, se assim é, o que espera Caeiro? Ou quem espera Caeiro na sua inércia?
Dou a palavra a Álvaro de Campos: “A expressão da boca, a última coisa em que se reparava – como se falar fosse, para este homem, menos que existir, – era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e não de nos falar.” (ibidem: 27). A expressão da boca é de uma complexa interpretação. Aparentemente, não se mostra, como na anterior descrição, com um sorriso, mas, pelo contrário, é vagamente triste, emotivamente penosa, como quem busca as suas feições e não as encontra. Em Caeiro, Pessoa pôs todo o seu poder de despersonalização dramática. Talvez seja isso que Caeiro procura, ou o que espera. A sua (des)personalização, a sua pessoa, ou, tão simplesmente, a ausência de sentimento que sempre buscou.
“Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos.” (ibidem: 26).
Segundo a descrição que o próprio Pessoa faz dos heterónimos Reis e Campos, numa primeira impressão, a figura que se segue à de Alberto Caeiro corresponderia a Ricardo Reis. Afirmo-o até pelo simples facto de, no bolso esquerdo do seu casaco, Almada ter colocado uma folha enrolada em si própria e nela ter escrito o nome REIS com letras quase impercetíveis, mas que estão lá e que o confirmam. Logo, porquê a hesitação em atribuir o corpo ao nome que supostamente lhe corresponde?
Na voz de Pessoa, Ricardo Reis é um pouco mais baixo e mais forte do que Alberto Caeiro. Na representação pictórica em causa, aquele a quem chamaríamos Reis, pelo nome que tem na folha do bolso esquerdo do seu casaco, aparece-nos retratado como sendo um pouco mais alto do que Caeiro e em nada mais forte do que este, o que poderia ser facilmente refutado pelo facto de Almada parecer situá-lo numa perspetiva ligeiramente dianteira. Todavia, como justificar a sua tentativa de sorriso, a gola da camisa desmazelada, o último botão do casaco aberto, o bolso direito desleixadamente cheio do “pagão por carácter em quem Pessoa colocou toda a sua disciplina mental” (ibidem: 28)? Onde se encontra Ricardo Reis para quem “quanto mais fria a poesia, mais verdadeira” (idem, 1999: 392), que procura a perfeição de uma existência que sente imperfeita? Onde se encontra Ricardo Reis neste fingimento? Em quem reconhecer Ricardo Reis neste drama em gente? Como decifrar o seu jeito nada comedido quando comparado com o da figura de um objetivismo natural e próprio cuja mala na austera mão esquerda o identifica, supostamente, como Campos? E, sobretudo, a sua postura desalinhada, descuidada até? Será que podemos, sem a ínfima dúvida, atribuir esta representação à de alguém que “sintetiza toda a sabedoria do passado, todo o património moral da tradição humanística” (idem, 1978: 14)?
De Reis diz Álvaro de Campos ter uma inspiração “estreita e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real, se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.” (cit. por Coelho, 1949: 164). Pertencerá, deste modo, este corpo ao Reis egocêntrico que Campos descreve? Ao Reis que escreve com um purismo que o próprio Fernando Pessoa considera exagerado? A um Reis de um triste epicurismo que não procura os prazeres violentos e que, do mesmo modo, não foge às sensações dolorosas, aparentando a calma, a serenidade, a placidez, a sobriedade individualista? Poder-se-ia, numa perspetiva de traço caricatural, adequar a descrição de um homem absolutamente disciplinado, cuja obra é profundamente triste, à personagem que, rigidamente, segura na sua mão esquerda a mala de Campos? Nesta ótica, é lícito considerar que Campos albergar uma página no seu bolso esquerdo pertencente a Ricardo Reis (coincidentemente, ou não, o mesmo lado onde a mala de Campos se encontra nas mãos de um possível Reis, mascarado de monóculo e de chapéu) e Reis teria uma mala de Campos. Qual o valor de um nome numa mala, numa folha? Por que motivo Almada não vestiria Campos de Reis e Reis de Campos? Por que razão se negaria ele o prazer de ser agora o dramaturgo deste drama em gente, destas personae que figuravam, mais do que em Pessoa, ao seu lado? Não estará a solução do enigma no breve sorriso do pretenso Reis? Ou, quem sabe, confidencialmente oculto na folha que acolhe o seu nome...
Permanecem as hipóteses, as incertezas demoram-se e as personagens vão teatralizando pelas mãos do dramaturgo que as encena...
Abro um parêntesis para lembrar que, segundo Álvaro de Campos, Ricardo Reis foi aquele que se lhe definiu como abominando a mentira, porque a mentira nada mais é do que inexatidão. Dando voz ao primeiro, “Todo o Ricardo Reis – passado, presente e futuro – está nisto.” (Pessoa, 1980: 268). Inexatidão, mentira, drama, teatro, ficção, engano, falácia de movimentos, de falas em atos onde as personagens, caricaturas, marionetas nas mãos do dramaturgo, agem em embuste. Ora, se assim é, como avaliaria Ricardo Reis o drama que o próprio Pessoa lhe preparou e que Almada tratou de teatralizar?
Todavia, se considerarmos que é Reis de facto a figura que se segue a Caeiro, vemos objetivamente que este se posiciona de frente na representação. É a figura central do triângulo que, contudo, se inclina para o seu mestre. De rosto voltado para a direita, num movimento rotativo para onde se encontra Caeiro, Reis parece buscar nele o equilíbrio que Campos procurava, a mais pura realidade, a intuição sobre-humana que lhe era natural. Nas palavras do próprio, “Eu era como o cego de nascença, em que há porém a possibilidade de ver; e o meu conhecimento com “O Guardador de Rebanhos” foi a mão do cirurgião que me abriu, com os olhos, a vista.” (idem, 1999: 366), assim os seus olhos parecem, numa demanda incessante, procurar em Caeiro a verdadeira sapiência que o liberte da cegueira em que se encontrava mergulhado.
Os três bolsos do casaco de Reis encontram-se repletos, talvez de corpos que, ocultos, se tornam indefiníveis. Objetos ocultos, outros visíveis que possivelmente contêm ocultos em si. A folha que Almada colocou no seu bolso esquerdo é, no mínimo, enigmática. A obscuridade que transmite o envolvimento em si própria faz-nos, se não mais, imaginar o que esconderá o lado encoberto da folha. Uma folha de Reis que partilha a similaridade com a da mão direita de Caeiro, mas que se apresenta como tudo menos transparente. A linha do bolso esquerdo de Reis fá-lo absolutamente redondo, descuidadamente cheio. O que ocultará? Quanto ao bolso superior, nele encontramos claramente uma caneta (possivelmente a do ortónimo) e aquilo que aparenta ser um lenço desalinhado, em harmonia com o bolso do casaco de quem o recolheu.
De perna direita à frente, cruzada sobre a esquerda, Reis sugere movimento, mas que, tal como em Caeiro, não pode ser absolutamente atestado. O braço direito, que em Caeiro segura páginas de nada, em Reis encontra-se fletido. O mesmo gesto, pelo mesmo braço, é partilhado por quem segura a mala de Campos; contudo, se em Reis o membro se esconde atrás das costas para uma mão vir segurar inesperadamente o outro braço (braço este que literalmente expõe uma larga e estranha mão de palma aberta virada para a frente, como que a revelar que não pertence a este corpo), em Campos o braço flete-se sobre o peito e é a mão que se encobre, vibrando, silenciosamente. Braço fletido com mão encoberta, como que a esconder-se do porte rígido que a sustém, a mão de Campos abriga-se entre os dois últimos botões do casaco, atribuindo a ordem ao corpo.
Casaco desabotoado no último botão, curiosamente tal como em Caeiro, gola de camisa descomposta, num corpo tendente a curvar-se que esconde um braço atrás das costas, que cruza uma perna em possível movimento e que inclina um rosto em busca, uma cara de Reis de cabelo liso e apartado ao lado pertencente a Campos, num olhar estranhamente impertinente, obscuro, como o braço, o bolso, a perna, o próprio Reis que Almada Negreiros retratou, fantasiou, dramatizou.
Álvaro de Campos, que surge a Pessoa em derivação oposta à de Reis, é a figura que se encontra no extremo oposto do triângulo, em oposição a Caeiro, o que não deixa de ser curioso. Campos aparece- -nos, tal como as outras personagens, em posição clara de movimento, se bem que, na representação, a aparência seja, de facto, mais realista comparativamente às outras, mesmo porque Álvaro de Campos parece vir ou ir de viagem devido à mala que segura na mão esquerda, facto que o pode situar talvez pela altura da morte de Caeiro, quando se encontrava em Inglaterra, já que afirma ter sido “uma das angústias da minha vida (...) que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele.” (idem, 1980: 272).
Descrito por Pessoa como o mais alto dos três, Álvaro de Campos surge-nos numa postura absolutamente retilínea, alinhada, austera, contrariamente ao Campos tendente a curvar-se que o ortónimo nos apresenta. Campos, “entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português” (idem, 1950: 26), não surge de cabelo “liso e normalmente apartado ao lado” (ibidem: 26), mas com um chapéu que lho encobre e que parece pertencer a Pessoa ele mesmo, aliás, tal como outros traços fisionómicos da personagem em si: “mito que sempre contempla Fernando Pessoa em travesti de passeio, óculos, chapéu, laço, gabardina, como as fotografias e os retratos que o fixaram nos últimos anos da sua vida.” (Stegagno-Picchio, 1988: 66).
O monóculo erudito que Pessoa lhe colocou, sim, está lá, talvez como o único objeto que realmente seja de Campos, ou, quem sabe, como nada mais do que um artifício entre tantos outros.
Álvaro de Campos, que na sua obra isolou o lado emotivo, “a que chamou «sensacionista», e que (...) produziu diversas composições, em geral de índole escandalosa e irritante” (Pessoa, 1968: 41), surge-nos aqui como uma personagem num porte absolutamente severo, clássico e regrado, um autêntico Reis. “E Reis nota em Campos a falta de uma disciplina, daquele domínio da emoção que faz a superioridade da poesia em relação à prosa.” (Coelho, 1949: 164): onde se encontra nesta personagem a rebeldia, onde ressalta a falta de domínio? Se “Pessoa isolou em Campos a sua impulsividade, os seus nervos; as impressões do dia-a-dia sensabor, a vontade lassa de as transmitir nuamente ao papel, sem refinamento estético.” (ibidem: 193), em que aspeto fisionómico transparece o ímpeto no filho indisciplinado da sensação? O ritualista em excesso, onde se encontra? E, se “Campos é o Pessoa que, pela imaginação, se mexe convulsivamente, raivosamente, com a força dos seus nervos, não uma força calma e duradoura” (ibidem: 192), onde está o extravasar de emoção de Álvaro de Campos? A inquietação metafísica com que Fernando Pessoa o concebeu? Onde se vê Álvaro de Campos neste corpo?
Interpretando-o como aquele cuja mala transporta o seu nome, em Campos as linhas do rosto são absolutamente reais, definidas até às formas mais simples do mais fino traço. Linhas retas que se alongam num traço contínuo da sobrancelha ao nariz, unindo os dois lados da face, linhas que contornam todo o seu corpo e temporariamente o retesam, são percebidas pela nossa memória como elevando-lhe em linha reta a perna direita (não ligeiramente fletida como em Reis, ou em Caeiro no caso da perna esquerda) num movimento ritmado, como quem caminha a largos passos em direção ao desconhecido. Talvez vá ao encontro de Reis, talvez siga até Caeiro. De face virada na direção de Caeiro a quem, tal como Reis, parece obedecer subalternamente, dele sobressai um olhar tão vago como a incerteza do caminho que toma, de quem ou daquilo que busca, ligando-o ao mundo exterior de uma forma sem retorno. Verdadeiramente negros, os olhos maquinalmente esvaziados coordenam, disciplinam um corpo que lhes obedece. Detêm um poder hipnótico, de onde brota a expressão que parece tudo querer possuir e, simultaneamente, de tudo abdicar, no vazio que por trás deles se rasga. Quem se encontra por trás daquele vazio? A quem obedece o corpo de Campos?
Nesta trilogia da unidade que Almada Negreiros interpretou, não podemos encarar a ordem na qual os colocou como meramente arbitrária. Os três planos de representação pictórica de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos não se apresentam como uma opção infundada; pelo contrário, Almada aplicou neles a sua mestria de representação. Nestas “ficções do interlúdio”, como Pessoa lhes chamou, as figuras pintadas em triângulo aparecem-nos como marionetas nas suas mãos. Suas... de Almada, de Pessoa, de ambos?
Ao traçar as linhas, prossegue numa melodia em que o ritmo une os elos dispersos das personagens, ritmo este que, só por si, justifica e resume a essência do gesto criador. Alberto Caeiro, sendo “o «mestre», porque elabora a doutrina e pratica a crítica que permite a emancipação de Fernando Pessoa do «decadentismo» a que estava acorrentado” (Simões, 1980: 321); Ricardo Reis “representando uma conquista substancial no caminho de uma personalidade que fará da simulação o seu processo normal de realização literária” (ibidem: 321); e Álvaro de Campos, “o discípulo que se aproveita das liberalidades que a rebeldia do primeiro favorece” (ibidem: 321), moldam como que um triângulo sem ângulos, partes de um todo como órgãos de um corpo, onde cada um deles converge do mesmo modo para a unificação, para ressurgir num Pessoa que se desintegra, reparte continuamente em cada um deles, escravo como é da multiplicidade de si próprio.
Na pintura, linha e cor unem as suas linguagens para nos devolver as figuras e o branco que a todos pertence não esgota em si a tonalidade semelhante da cor da pele que Almada Negreiros lhes veste. A camisa branca que lhes é comum, tal como o lenço que a lapela alberga, é uma das particularidades que os reconhece como únicos, unos, numa unidade essencial que se adivinha em afinidades, identificando-os na multiplicidade como indivisíveis na sua divisibilidade: “o mundo dos heterónimos constitui de facto um universo” (Coelho, 1949: 193).
Contudo, na semelhança reside a diferença, pois o branco que partilham, tal como a transparência que o traço, que lhes é comum, delimita, não deixa de ser aqui fator de desagregação, uma vez que a cor que descuida a camisa de um suposto Reis é a mesma que, pelo contrário, coloca no bolso de Álvaro de Campos um lenço dobrado meticulosamente, brindando-nos claramente com a diversidade na individualidade. Tornam-se entes diferentes do criador, filhos mentais com qualidades herdadas, mas com a diferença de serem outros. Outros distintos, marcadamente distintos.
Nesta oscilação entre semelhanças e diferenças, movimenta-se a linguagem de Almada, numa linha que demarca mais do que confunde, acentuando a lógica de um todo, as formas estruturais de um conjunto, de onde sobressai a interioridade das personagens. A arte de ser de Caeiro, a arte de sentir de Campos e a arte de viver de Reis consubstanciam-se no pincel de Almada e metamorfoseiam-se cada qual na sua máscara. “... quanto aos figurantes que as ostentam, eles dão-nos, ao mesmo tempo, a sensação de falar cada um para seu lado e de estarem continuamente a responder uns aos outros. São como personagens de uma peça monumental, na aparência toda construída em monólogos – os quais, todavia, se articulam num diálogo ininterrupto, estabelecido a uma zona mais profunda.” (Pessoa, 1978: 15).
Esta interpretação de possível caricatura que vemos pede-nos, obriga-nos à questão: para onde se dirigem Caeiro, Campos e Reis? O que pretendem encontrar? Quem pretendem encontrar? Ou será que devíamos perguntar-nos, pelo contrário, de quem pretendem fugir? Ou, ainda, de quem pretende fugir Almada quando teatraliza a fuga dos heterónimos pessoanos? Por que motivo fugirá Almada através deles?
A diversidade da personalidade artística de Almada, expressa, neste caso, através da pintura e representação, configura uma genuína teatralidade subjacente a todo o trabalho criativo do pintor. Deste modo, as diversas personagens, socorrendo-se de máscaras distintas, percorrem, não apenas o caminho que pelo poeta foi traçado, mas dramatizam a diversidade de caminhos que a obra do pintor percorreu. Personagens estas que instituem, afinal, uma obra, uma unidade, talvez um único ato, que o intérprete, ficcionista, dramaturgo, desenhista, despersonalizando-se, põe em ação, “da luta contra a histeria pela criação literária; do esforço do intelecto para expulsar a angústia; de como, despersonalizando-se, o autor se projeta no drama que compõe.” (Coelho, 1949: 164). Ou seja, as faces de Pessoa interagem, reagem umas às outras, comunicam, dialogam para que, através delas, por elas e nelas este possa encontrar caminhos possíveis, saídas para outros universos, para os universos da sua evasão.
    Os caminhos que percorrem, quando se encontram longe de si próprios para a si poderem regressar, são caminhos de procura, de rutura, de despersonalização. “É certo que Campos, algumas vezes perplexo (...) buscou evadir-se (...) por um certo ato de vontade delirante. E Reis, por seu turno, procurou o lenitivo do epicurismo. Deste modo, em face da situação que lhes é imposta, os discípulos de Caeiro tentam diferentes caminhos: a fuga pela alienação do mundo concreto, pela embriaguês da imaginação sensorial (Campos Whitmaniano), a criação por um esforço racional de um modus vivendi que reduza ao mínimo o sofrimento (Reis), ou a simples expressão da ansiedade, da angústia, da melancolia, do tédio (Campos, Pessoa ortónimo)” (ibidem: 190).
    Em Almada, a conquista da unidade passa pela noção da desconstrução do indivíduo coletivo. “Há uma abstração do «eu» concreto em proveito de um «eu» máscara, e, em Pessoa há uma abstração do «eu» concreto em proveito de outros «eus». Assim, Pessoa evolui num teatro feito daquilo que os sonhos são feitos, enquanto Almada traz a memória e o desejo da voz sonora, da fala como ato, na página como no palco.” (Martins, 1996: 312). Consciente da alteridade dos corpos, Almada reconstitui-se em novos fundamentos, anteriores ao encontro do “eu” consigo.
No retorno não encontra dentro de si o mesmo. Personalidade outra que pertence agora à própria Terra, à parte do mundo em que cada homem está. Dando voz a Almada, “O Homem não é um homem. O Homem somos nós todos e cada um de nós.” (Lambert, 1996: 148). Do mesmo modo, o que caracteriza a vida é a procura, não o encontro. É na procura que as vozes se cruzam e tecem. Tecido e o tear fundem- -se, confundem-se, acabando, finalmente, por ser o mesmo.
Almada Negreiros tenta restituir o segredo dos corpos, propiciar-lhes a existência através do mistério da linha, na essência plástica e anímica que os envolve. Agarrando os contornos do triângulo, na mesma linha fez eclodir a luz dos corpos, dos rostos, dos olhares, em semelhanças e contrastes de ligeiros traços e curvas difusas. É a linha que sobressai, que adquire o poder extraordinário de depurar as formas, de as reduzir a uma essência, ao próprio movimento e ao drama de ao corpo se unir e apagar a fronteira entre os dois mundos, unificando-os, eternizando-os, libertando-os ao encontro dessa essência, de uma genuinidade que a palavra manifestou e que Almada (trans)figurou.
O corpo é, assim, uma linha sem começo nem fim, triangular, que sugere o infinito, materializado a partir do universo escrito que funcionou como pretexto para a eclosão, para o preenchimento das formas a que as almas pertencem. A imaginação contaminou o universo ficcionado, realizando-o, encenando-o e dando-lhe um ou diversos sentidos. Sentidos estes que se ocultam no segredo da linha e lá permanecem, onde subsiste o drama em gente que o próprio Almada, porque toda a arte é uma forma de despersonalização, simulação e, simultaneamente, de espelho, completou.

 
Autoria:
 
Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas,
II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 233-249
 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Apreciação crítica: análise do quadro "Golconde", de René Magritte


 Plano de texto


Introdução (1.º par.) – Identificação da pintura, do autor e aspetos da obra.


Desenvolvimento: descrição, análise e avaliação:

2.º par.: do cenário;

3.º par.: das figuras humanas;

4.º par.: do tema do quadro.


Conclusão (5.º par.) – Ideia central retirada sobre a pintura.


Introdução

 
Título:
 
Um mundo diferente


    O quadro “Golconde”, pintado em 1953 por René Magritte, poeta surrealista de origem belga, nascido em 1898 e falecido em 1967, representa uma cena intrigante, que rompe com as leis do mundo que conhecemos e nos traz para uma realidade marcada pelo maravilhoso.


Desenvolvimento
Cenário

    A pintura retrata um cenário urbano e tem como pano de fundo um conjunto de prédios alinhados, que preenchem a parte inferior e lateral da tela. Foi engenhosa a ideia de representar, deliberadamente, edifícios monotamente semelhantes: retilíneos, germinados, formando um contínuo. Todas as paredes estão pintadas da mesma cor – castanho claro –, as janelas possuem todas a mesma forma retangular, os telhados exibem o mesmo tom de vermelho. Certo é que a conjugação das cores torna este conjunto arquitetónico harmonioso. Por outro lado, nesta selva de cimento, o céu, pintado com matizes atraentes de azul claro, é o elemento que confere vida à cena representada.


Desenvolvimento
Figuras

    Esta paisagem citadina revela-se claustrofóbica também porque o espaço deixado vazio pelos edifícios é preenchido por dezenas de figuras humanas masculinas que se encontram suspensas no ar, do topo à base da pintura, do primeiro ao mais remoto plano. Não há sinais de movimento, mas as personagens podem ser sempre a mesma figura: um homem de sobretudo preto e com um chapéu de coco também preto. Deste modo, cria-se a ilusão, bem conseguida, de as personagens se multiplicarem infinitamente.


Desenvolvimento
Tema

    Numa das interpretações possíveis, “Golconde” representa, de forma genial, a sobrepopulação das cidades. Efetivamente, podemos nele ver uma crítica bem construída ao facto de as cidades serem lugares claustrofóbicos (daí os prédios) povoados por um número excessivo de pessoas. Assim se sugere que este não é o espaço harmonioso para o ser humano viver. Mais ainda, o facto de todos os homens se assemelharem é um indício preparado com grande subtileza para denunciar que a cidade gera pessoas iguais, monotamente indistintas.


Conclusão

    Concluindo, este é um quadro fascinante que representa uma cena de um mundo diferente do nosso, mas que nos refletir sobre o nosso próprio mundo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Serebriakova - uma vida, uma obra

     Este post é da autoria de Beatriz, uma professora de Filosofia de Setúbal, que possui um blogue onde escreve sobre diversos assuntos da atualidade e/ou do seu interesse: IP azul.

    Neste caso, trata-se da divulgação de um nome da pintura ucraniana desconhecido para o comum dos mortais: Zinaida Serebriakova. O post original é este: Serebriakova - uma vida, uma obra.


    Zinaida Lanceray nasceu em 1884, no Império Russo, perto de Kharhov, na atual Ucrânia, numa família artística.

    O seu pai era escultor, o seu avô um famoso arquiteto e o seu tio um pintor, o que significa que era originária de uma família de artistas. Ela seguiu os seus passos e estudou arte desde muito jovem.

Foi pupila do mestre Ilya Repin (1844 - 1930), com quem aprendeu sobre o Realismo, e mais tarde viajou para a Europa, onde estudou em França e na Itália.







    Nos seus quadros de Paris desta época, podemos ver que Serebriakova foi influenciada também pelo Pós-Impressionismo.







    Desde tenra idade, interessou-se pela vida das pessoas comuns, dos camponeses, dos pastores e pescadores e do mundo agrícola. Este era um tema ao qual voltaria vezes sem conta ao longo da sua vida.





    Em 1905, Zinaida casou com Boris Serebriakov e, durante a década seguinte, teve quatro filhos.

    Este acontecimento marcou o início dos seus chamados "Anos Felizes", caracterizados por outro tema que dominaria a sua carreira: a família.
    





    Serebriakova também pintou autorretratos. Com toda a sua vivacidade e autenticidade, constituem provavelmente o seu melhor trabalho.















    Porém, acima de tudo, pintava os filhos, fosse ao pequeno-almoço, de manhã, ou todos juntos a jantar.

 




   


    Serebriakova enviou o seu Autorretrato na Mesa de Toilette para uma exposição em 1909,tendo sido recebido com aclamação pela crítica. Mesmo nessa altura, a sua expressão surpreendentemente moderna foi um sucesso.

 

    Juntamente com Outono Verde e Rapariga Camponesa, os três quadros foram leiloados com sucesso.

    
    A partir de 1914, Serebriakova começou a atingit a plena maturidade artística e gozou dos anos mais bem sucedidos da sua carreira, com pinturas como Harvest (1915) e Bleaching Linen (1917).

    Estava pronta para se tornar parte da Academia de São Petersburgo.

    Porém, tudo mudou com a Revolução Russa de 1917.



    O primeiro problema foi artístico: o seu estilo pessoal já não era bem-vindo no mundo da arte vanguardista, suprematista e construtivista favorecido pela Rússia soviética.

    Em cima disso, ocorreu uma tragédia pessoal: o seu amado marido Boris foi preso em 1919 e morreu de tifo na prisão.

    Sem os seus rendimentos e com as comissões a diminuir no novo regime, as coisas tomaram um rumo descendente.
    Serebriakova era, agora, uma mãe viúva com quatro filhos para criar.

    Deixaram a propriedade familiar - que tinha sido saqueada - e mudaram-se para um apartamento em Petrogrado.

    Ela já não tinha dinheiro para comprar tintas a óleo, mas continuou a pintar, interessando-se também pelo ballet e pelo teatro, que a sua filha Ekaterina tinha começado a frequentar.






    Continuou igualmente a pintar os seus filhos, agora com uma certa melancolia, em vez da alegria mais pura anterior.










    Em 1924, viajou para Paris, na esperança de conseguir lá comissões e, assim, angariar dinheiro suficiente para sustentar a sua família.

    Mal sabia Serebriakova que as viagens seriam, em breve, restringidas pelo governo soviético.

    Deste modo, foi-lhe recusada a reentrada na Rússia e tornou-se uma exilada.






    No entanto, Serebriakova encontrou trabalho e comunidade em Paris com um grupo de emigrados russos e enviava os seus proventos para casa.

    Em 1926, o seu filho mais novo, Alexandre, foi autorizado a juntar-se a ela e, em 1928, Ekaterina.


    





    Aqui a vemos num autorretrato de 1930, com um ar algo mais cansado do que nos seus retratos anteriores.











    Visitou Marrocos várias vezes, países que lhe deixou uma grande impressão.

    Lá, encontrou um grande prazer em pintar o povo comum, como outrora tinha feito na Rússia.













    De regresso a França, Serebriakova continuou a pintar as pessoas comuns, fossem pescadores ou padeiros, em paralelo com retratos para clientes endinheirados.




  

    Nesta era do seu exílio parisiense, vemos um outro tema emergir mais plenamente na obra de Serebriakova: a mulher nua.
    A temática já lá estava há muito tempo, como com Bather (1911), mas durante as décadas de 1920e 1930 trabalhou nela com mais frequência e de forma muito diferente daquela de que os homens se socorrem para pintar o mesmo tema.



   

    Durante a Segunda Guerra Mundial, devido à sua nacionalidade e ao contacto frequente com a sua família na União Soviética, Serebriakova tornou-se suspeita na Paris ocupada pelos nazis.

    Foi forçada a renunciar à cidadania soviética e, aparentemente, a qualquer esperança de ver a restante família novamente.


    A vida e a carreira de Zinaida Serebriakova foram longas e voláteis, afetadas quer pelas Guerras Mundiais quer pela tragédia pessoal. No entanto, também se tornou uma artista de sucesso e aclamada pela crítica.

    Nesta pintura, vemo-la em novo autorretrato, este bastante mais feliz, datado de 1956.

    Quando a pintora caminhava já para o final da vida, graças a Khrushchev, a sua filha Tatiana recebeu autorização para visitar a mãe em Paris, em 1960. Deste modo, reuniram-se ao fim de trinta e seis anos de separação. Zinaida contava 76 anos e a filha 50.

    Em 1966, realizou-se em Moscovo uma vasta exposição do trabalho de Serebriakova que foi um sucesso crítico e comercial. A pintora viajou até lá, regressando a solo russo pela primeira vez em quase quatro décadas.

    Zinaida Serebriakova regressou a Paris e morreu lá no ano seguinte, em 1967, com 82 anos.

    Seja nas representações da sua família, do povo comum, ou de si própria, poucos pintores conseguiram alguma vez tal ternura, intimidade, vivacidade e honestidade.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Análise de "Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos"


            “Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos” é um quadro da autoria de Angelica Kauffmann, uma pintora neoclássica suíça e membro fundador da Academia Real Inglesa (1769), nascida em Coira, a 30 de outubro de 1741 e falecida em Roma, a 5 de novembro de 1807.

            Na pintura, encontramos, ao centro, portanto em posição de destaque, uma figura feminina, Cornélia, que, vestida de branco (cor que simboliza a pureza), se dirige a uma outra mulher vestida de vermelho (símbolo da paixão, neste caso, das coisas mundanas) e branco. Esta personagem, sentada, exibe as suas joias valiosíssimas; como resposta, Cornélia mostra os seus três filhos, o seu maior tesouro. Deste modo, através desta situação contrastante, a pintora enfatiza o materialismo e a frivolidade da mulher de vermelho, provocando o seu visível embaraço.

            Cornélia, na realidade, era uma figura histórica romana, uma das poucas mães em Roma às quais se credita uma poderosa influência sobre a vida pública dos filhos. Era também conhecida por se vestir de forma menos vistosa do que muitas das suas contemporâneas. Cornélia era mãe dos Gracos, dos quais dizia que eram as suas joias, e, depois de ficar viúva, recusou voltar a casar, preferindo dedicar-se exclusivamente à educação dos filhos, que ficaram conhecidos pelas iniciativas reformistas e que acabaram por provocar o seu fim trágico.

            Em suma, esta obra critica o apego excessivo aos bens materiais e a vaidade feminina, demonstrando-se que há valores muito mais importantes na vida do ser humano, como, por exemplo, o amor maternal.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

A escola do século XIX em imagens - IX


Nicolay Bogdanov-Belsky, Cálculo mental na escola pública (1895)

    Esta interessante pintura russa retrata, de modo pouco habitual, a sala de aula: em vez de alunos alinhados nas suas carteiras, eles aglomeram-se, pensativos, em torno do quadro preto e da figura tutelar do professor. O que fazem? Tentam resolver, mentalmente, um problema matemático que o professor lhes colocou.

    Esclareça-se antes de mais que este docente não corresponde à figura convencional do mestre-escola em atividade nas escolas rurais oitocentistas. Trata-se de Sergey Rachinsky, um professor universitário de Botânica que a dada altura largou a vida académica em Moscovo para se tornar professor numa pequena cidade, onde não se limitava, como aqui se vê, a “dar a matéria”, mas se empenhava, através de desafios colocados aos seus alunos, em fazê-los pensar.

    Além desta mensagem clara que a pintura transmite – a escola pública deve desafiar os alunos, retirando-os da zona de conforto do facilitismo e da falta de exigência, exigindo-lhes esforço para aprender e colocando-lhes desafios que os façam desenvolver todo o seu potencial – há uma outra ideia pertinente que, quando a diminuição das qualificações exigidas para dar aulas está na ordem do dia, é importante salientar: o professor não precisa de saber apenas a matéria que ensina aos alunos. A sua preparação deve ser bem mais vasta e abrangente. A qualidade da formação científica e pedagógica dos professores é, mais do que avaliações do desempenho burocráticas e vexatórias, a melhor garantia que podemos ter em relação à qualidade da escola pública.

Fonte: Escola Portuguesa.

domingo, 4 de setembro de 2022

A escola do século XIX em imagens - VIII


John Frederick Lewis, Escola árabe (c. 1850)

    Embora a arte europeia tenda a representar sobretudo, como é natural e expectável, o mundo dos europeus, não faltam, a partir do Renascimento e da expansão europeia, exemplos de pinturas e outras obras artísticas que refletem a descoberta e o contacto com outros continentes, civilizações e culturas. Trata-se de um olhar, de início curioso e ocasional, que se vai tornando mais atento e sistemático à medida que as principais potências do Velho Continente constroem ou consolidam, no século XIX, os seus impérios coloniais.

    John F. Lewis, um inglês que viveu a sua infância no Cairo, registou, nesta pintura a guache e aguarela, o ambiente de uma típica maktab, a escola muçulmana que correspondia sensivelmente ao que hoje designamos por ensino básico. Os rapazes que desejassem prosseguir os seus estudos ingressariam depois numa madrassa. Umas e outras são escolas religiosas, sublinhando a ligação umbilical, também patente no mundo ocidental, entre a escola e a religião. Só que, enquanto na Europa a laicização progressiva da sociedade foi abrindo espaço à separação entre a escola pública, destinada a formar cidadãos, e as escolas da Igreja, vocacionadas para a formação do clero, no mundo muçulmano essa distinção entre religião e laicidade tem-se mostrado mais difícil e custosa.

    A pintura, de contornos difusos, mas onde não falta expressividade, foca-se nas figuras do professor, já idoso – a idade avançada é, neste contexto, um símbolo de sabedoria -, e de um dos seus alunos, que se prepara para recitar a lição. O apelo à memória, hoje tão criticado, era um elemento essencial dos sistemas de ensino mais tradicionalistas e conservadores. E será sempre fundamental, embora ninguém defenda hoje o decorar de matérias como um fim em si mesmo: a verdade é que só somos verdadeiramente conhecedores daquilo que conseguimos armazenar, de forma organizada e compreensiva, no nosso cérebro.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

A escola do século XIX em imagens – VII


George Haanen, Escola nocturna (1835)

    Eis uma faceta da escola oitocentista que não poderia faltar nesta série: a escola noturna. As aulas à noite têm hoje uma presença pouco mais do que residual nos sistemas educativos, mas foram cruciais em épocas em que a maioria da população começava a trabalhar com uma escolarização mínima, ou mesmo sem ter tido oportunidade, na infância, de frequentar a escola. Neste contexto, e à medida que os trabalhadores vão percebendo que a formação escolar lhes pode abrir novas perspetivas profissionais e de desenvolvimento pessoal, a vontade e a necessidade de voltar a estudar começam a impor-se.

    Na imagem, percebemos que boa parte dos alunos que chegam a esta escola, iluminada a velas e candeias, é ainda criança: na primeira metade do século XIX, o trabalho infantil era uma realidade muito frequente, o que remetia estas crianças desafortunadas para a escola noturna, única forma de escaparem ao analfabetismo. Posteriormente, graças sobretudo à luta sindical, esta situação começará a mudar, com o aparecimento de legislação restritiva do trabalho de menores e o aumento progressivo da idade mínima para trabalhar. Aliás, e já que se fala em sindicalismo, refira-se também o papel importante que os sindicatos tiveram, praticamente desde o seu aparecimento, na promoção do ensino e da formação profissional entre os seus associados.

    Nesta escola, o ambiente de aprendizagem parece pouco formal, reinando algo parecido com o que hoje chamaríamos diferenciação pedagógica, o que é natural tendo em conta as diferenças de idades, as motivações e os níveis de conhecimento de uns e outros. Assim, enquanto uns alunos estudam autonomamente, outros fazem uma pausa no estudo e aquecem-se junto à salamandra. Um dos discentes, vestido de verde, ouve a explicação do professor, que por sua vez mira de relance aqueloutro – talvez um novo aluno? – que acaba de chegar à escola, trazido pela mãe…

Fonte: Escola Portuguesa.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

A escola do século XIX em imagens – VI


Paul des Amoignes- Na sala de aula (1886)

    Este quadro constitui um exemplar da pintura naturalista francesa. Nesta observação cirúrgica e quase fotográfica da sala de aula, a figura de um pequeno estudante destaca-se pelo olhar intenso e penetrante, certamente dirigido à figura do professor.

    Alguns colegas escrevem aplicadamente, outros mostram-se apáticos, distraídos ou aborrecidos. Mas só este rapaz levanta o lápis do caderno para prestar atenção ao professor. É uma realidade de todos os tempos e de todas as escolas: nem todos os alunos têm o mesmo interesse, a mesma capacidade de concentração, a mesma facilidade em aprender. Mas o desafio de dar a todos a sua oportunidade, razão de ser da escola, em especial da escola pública, é hoje ainda mais pertinente do que há um ou dois séculos.

    A técnica do pintor é primorosa, não só no traço e na ambiência naturalista, mas também na forma como os rostos à volta do protagonista se apresentam desfocados – algo que na técnica fotográfica se consegue reduzindo a profundidade de campo – reforçando o impacto e o dramatismo da imagem. E atraindo o nosso olhar, irresistivelmente, para o aluno que quer aprender.

 Fonte: Escola Portuguesa.

Análise do quadro "O Tempo – Passado e Presente"



            “O Tempo – Passado e Presente” é uma pintura de Paula Rego, datado de 1990, a segunda realizada pela pintora enquanto Artista Associada da National Gallery, um acrílico sobre papel colado em tela, 183 cm x 183 cm.

            O título encontra eco nas duas personagens centrais – um homem velho e uma menina, provavelmente avô e neta – e também no par mulher/criança que comunica na porta ao fundo aberta. Os quadros nas paredes contêm outras personagens, são uma espécie de janelas que se abrem para outras narrativas e até os bonecos sobre o móvel e os azulejos nas paredes são figuras que podem contar-nos histórias, a nós e ao bebé que nos olha da direita do quadro.

            Ao centro, a figura masculina domina a composição. A idade já avançada sulca-lhe o rosto, pinta-lhe o cabelo de cinzento, estagna-lhe o olhar. É a presença que dialoga com a rapariga, pequena e andrógina, que está sentada à esquerda, debruçada sobre a folha em branco que se esforça por esconder. Sobre o aparador, vemos uma caravela, um hipopótamo e uma estatueta de contornos femininos, que as vestes acentuam. Estes objetos remetem para a memória do tempo passado, tal como os objetos e pinturas que povoam as paredes definidoras do espaço interior onde a cena se desenvolve. É um espaço fechado, iluminado pela claridade que entra pela porta que, ao fundo, se abre para o mar. Essa mesma porta mostra-nos uma mulher idosa, de saia azul, e uma menina, de saia amarela, que se encontra no exterior. Todas as personagens parecem alheadas do bebé envolto no seu casulo verde, confiado ao anjo, que encima o berço, a sua proteção. É esta figura a única que nos olha.

            A figura do bebé, que Paula Rego afirmou constituir uma alusão ao nascimento da sua neta Lola, é, pois, encimada por um anjo fundido com a parede-biombo onde se insere. À esquerda do quadro encontramos uma alusão ao mar que funde elementos relacionados com a História de Portugal (a caravela, por exemplo, é um símbolo dos Descobrimentos), a atividade de marinheiro de Keith Sutton e as viagens de S. Jerónimo, enquanto o centro da composição alude à pintura produzida num contexto de encomenda e fruição religiosa, da mesma forma que a imagem do anjo e a figura do bebé estabelecem com o observador uma relação de familiaridade que remete para a cultura tradicional – constituindo estas três camadas sociais uma crítica subtil à retórica propagandística do Estado Novo. Neste contexto, merece destaque a capa azul de pescador que marca a divisão de planos e o traje escolar, característico dos rapazes da Mocidade Portuguesa, com que é representada a adolescente – vestes que acentuam a robustez das formas desenhadas e se sobrepõem aos traços de feminilidade.

            Outras recorrências, como os azulejos bicromáticos em azul e branco onde estão representados jogos infantis, a extremidade da moldura do quadro apócrifo acima do aparador que remete para os beirais da casa portuguesa de Raul Lino, ou o mar que a porta aberta ao fundo deixa adivinhar como horizonte, remetem à infância da pintora (serão memórias convocadas da quinta dos seus avós na Ericeira).

            Neste quadro, podemos encontrar influências de outras obras, como, por exemplo, “S. Jerónimo na sua cela” (c. 1475), de Antonello de Messina, embora haja diferenças significativas entre os dois quadros. Assim, a relação interior/exterior é invertida: em da Messina o espaço encontra-se “fechado”, o tempo petrificado, e o observador é apenas convidado a observar; em Paula Rego, o observador encontra-se no interior do espaço onde se desenrola a ação da pintura, assumindo o lugar de espectador; a ilusão do espaço, em perspetiva, é-nos sugerida em Antonello pelo padrão geométrico do chão e pela arcaria à direita; em Paula Rego, são as ortogonais marcadas pela parede lateral esquerda e pela sobreposição de planos à direita que fecham o espaço e conduzem o olhar através da pintura. Para a construção das figuras do primeiro plano, o quadro recorre ao jogo realidade-ficção, fazendo coincidir em cada personagem a representação de alguém do seu mundo real com uma imagem retirada de uma obra da National. Desta forma, a figura masculina, não sendo a representação de S. Jerónimo mas um retrato de Keith Sutton, encontra-se na mesma posição mantendo a atitude pensativa e introspetiva que a figura do “S. Jerónimo numa paisagem” (c. 1440), de Bono da Ferrara; a figura da menina a desenhar («retrato» da artista quando jovem) coincide com a imagem do leão na pintura de Bono da Ferrara, ao nível da relação espacial que este estabelece coma figura de “S. Jerónimo” e do posicionamento do corpo. No que concerne ao bebé, existem semelhanças com o leão representado por Domenichino em “A visão de S. Jerónimo” (a. 1603). Do mesmo modo, a relação entre o par leão/anjo em Domenichino é assumida em “O Tempo…” pela dupla bebé/anjo. Assim, ao jogo realidade-ficção sobrepõe-se a injunção profano-religioso.

            Por outro lado, as pinturas de santos reproduzidas no fundo do quadro são reproduções fiéis ao “S. Francisco em Meditação” (c. 1636-9), de Francisco de Zurbaran, ao “S. Sebastiºao” (c. 1623), de Gerrit van Honthorst, e ao São Cristóvão, no reverso do volante esquerdo, do “Tríptico de Donne” (c. 1478), de Hans Memling. Deste modo, Paula Rego presta homenagem aos mestres do passado.

            É possível identificar na pintura duas narrativas paralelas: uma personificada pela própria artista que se autorrepresenta em três tempos diferentes (coincidentes com o bebé, a menina ao fundo e a adolescente) de cariz autobiográfico; outra historicista, que consiste na pintura enquanto disciplina artística. Neste contexto, é interessante registar a relação de “O Tempo…” e “As Meninas”, de Diego Velázquez, havendo diversas semelhanças entre as duas obras: a porta que se abre ao fundo para onde converge a obliquidade da construção espacial assinalando o ponto de fuga; a profusão de figuras; a convocação de obras de pintores precedentes e, no caso de Velázquez, também seus contemporâneos; a elisão do sujeito. É, no entanto, através da autorrepresentação – com a suspensão do gesto de Velázquez e a folha em branco em Paula Rego, com o facto de os pintores integrarem não só a pintura, mas também o seu tempo e contexto histórico de produção (para Velázquez a corte e para Paula Rego a instituição museu).

            Podemos considerar “O Tempo – Passado e Presente” como uma alegoria, por conter a representação simbólica de ideias abstratas através de figuras, grupos de figuras ou atributos. Neste caso, a arte do presente deve permitir estabelecer relações por antecipação (visão do futuro) e por retornos (conhecimento do passado). Nesta obra de Paula Rego, a existência dessa visão do futuro e conhecimento do passado estimula a continuidade transformativa que determina a inovação. Assim, no quadro, perspetivado como uma alusão à história da pintura que tem no tempo histórico o tema e na pintura o motivo, o que motiva a pintora é a combinação de formas múltiplas da história da pintura e da arte, a desconstrução e reformulação do real, a afirmação da linguagem pictórica e, através dela, da injunção da arte com a vida. Ou seja, “O Tempo – Passado e Presente” constitui uma alegoria da história da pintura.

 
Bibliografia:

C Paula Rego: O Tempo – Passado e Presente ou a Pequena História da História da Pintura.

C GREER, Germaine. 1992. “A Olhar para Paula Rego”, in Paula Rego: Histórias da National Gallery.

 

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