segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
Análise do poema "Vozes de África", de Castro Alves
O sujeito poético deste poema
representa todo o continente africano, isto é, todos os homens e mulheres que
eram forçados a abandonar a sua terra para trabalhar como escravos. Assim
sendo, podemos deduzir que o «eu» lírico é, no fundo, todo um continente que
sofre com os seus homens e mulheres que partem e sofrem todo o tipo de
provações. De facto, o texto é construído a partir do ponto de vista do
continente africano. Por outro lado, a composição poética denuncia o tráfico
negreiro e a escravidão a que os negros eram sujeito e mostra as
arbitrariedades e a injustiça que decorrem dessa cultura de aprisionamento da
pessoa negra. Em simultâneo, esse mesmo sujeito poético suplica a intervenção e
a bondade divinas e procura compreender os motivos que originam tal situação e
tanto sofrimento.
No início do poema, o «eu»
personifica a África, por ser uma criação de Deus, e toma para si as palavras
ditas por Jesus Cristo, seu Filho, há mais de dois mil anos, na tentativa de
ser ouvido por Ele. O mesmo sucederá, ao longo do texto, com os outros
continentes, sendo, pois, todos vistos como entidades humanas. Ele clama por
Deus de forma desesperada pelo facto de nesses dois milénios ter implorado, em
vão, a sua ajuda, no sentido de o libertar do sofrimento (a escravidão). De
facto, a composição apresenta o negro como uma vítima e personifica a África
(que correspondeu ao «eu»), que, desesperada, pede perdão pelos seus crimes. No
fundo, trata-se de um olhar católico sobre a situação, radicado na visão
europeia do mundo e das coisas, daí as referências religiosas referidas e a
atitude de resignação que se adivinha. De facto, a África dirigir-se-ia não ao
Deus monoteísta cristão, mas a um deus (com «d» minúsculo) ou aos deuses, em
respeito pela sua cultura politeísta. Assim sendo, se é verdade que Castro
Alves reconhece o sofrimento do povo africano, fá-lo a partir de uma perspetiva
cristão europeia. África, como tantas vezes tem sucedido ao longo dos tempos,
reclama da escravidão que tem sido imposta aos seus filhos e questiona a figura
divina por a ter abandonado e se manter silenciosa relativamente ao seu drama.
Na segunda estrofe, o sujeito
lírico faz referência ao mito de Prometeu, o irmão de Atlas que roubou o fogo
sagrado aos deuses do Olimpo para o dar aos seres humanos e, por isso, foi
acorrentado ao Cáucaso, onde, diariamente, uma ave de rapina lhe comia o
fígado, que se regenerava de seguida. Deste modo, Prometeu constitui o símbolo
do sofrimento incessante, daí a sua comparação com África, para quem o
sofrimento é igualmente eterno. Contudo, neste caso, ainda não se conhece o
motivo da punição. No poema de Castro Alves, a ave de rapina que atormentava
Prometeu é comparada ao sol ardente que todos os dias castiga o continente
africano. Por seu turno, o próprio continente africano está preso por correntes
à região litoral de Suez, na Itália: “E a terra de Suez – foi a corrente / Que
me ligaste ao pé…”. Note-se que até 1859, quando o engenheiro Ferdinand de
Lesseps construiu o Canal de Suez, o Médio Oriente era considerado parte do
território africano. Só então houve a separação geográfica e cultural entre
esses espaços. Esta nota coloca a Europa na dependência da África, ou seja, a
cultura ocidental baseou-se no continente africano para construir muitas das
suas formas de conhecimento. O castigo passa também pelo ambiente fragoso e
desértico que caracteriza África.
A partir da terceira estrofe
até à sétima, África compara-se às suas irmãs, isto é, aos outros
continentes, num percurso que vai do passado ao presente, e indaga a razão do
seu sofrimento em relação à Europa e à Ásia: “Minhas irmãs são belas, são
ditosas… / Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas”; ”A Europa – é sempre Europa,
a gloriosa!...”. Embora se considere irmã dos outros continentes, torna claras
as diferenças e queixa-se de que aquelas são as preferidas de deus, pois foram
contempladas com coisas maravilhosas, enquanto que ela foi abandonada (v. 49),
sendo que até o próprio deserto conspira, escondendo as suas lágrimas, para que
Deus não as veja (vv. 46, 47 e48). África contempla as riquezas das suas duas
“irmãs”, às quais mais tarde se vem juntar a traidora América. No que diz
respeito à Ásia, é enfatizada a sua beleza e exuberância cultural e natural,
descrita de forma idealizada, como é característico do Romantismo: os haréns do
Sultão, a natureza (os animais – os elefantes brancos, os Himalaias, o rio
Ganges, os corais), a cultura e os monumentos / templos, as crenças, os deuses,
os pagodes. Relativamente à Europa, está presente uma dose apreciável de
realismo crítico, de rancor e ironia quando se lhe refere. Assim, aquela é
apelidada, ironicamente, de “Progressista” (quando era a responsável pelo
tráfico negreiro), de mulher vaidosa, dominadora e meretriz. Por isso, a voz de
África solicita aos ícones da cultura que se libertem dos valores da “grande
meretriz” presentes no “mármore de Carrara” (tipo de mármore branco ou
azul-cinza de alta qualidade muito usado em esculturas, por exemplo, extraído
na zona da cidade de Carrara, da região da Toscana, em Itália) e nos “hinos de
Ferrara”, dado que a dominação europeia foi construída em cima da subjugação
tirânica e violenta dos povos africanos, pelo que cabe à Europa uma contestação
judicial (“litígio”). Ou seja, neste passo, sugere-se uma espécie de
ressarcimento de todos os bens e danos cometidos com a exploração do ser
africano.
Contrastando com o poder da Europa e
o exotismo exuberante da Ásia, a África só tem para mostrar a sua miséria: “Eu
triste abandonada”; “Perdida marcho em vão! / Se choro… bebe o pranto a areia
ardente”; “E nem tenho uma sombra de floresta…”. De um lado, encontram-se as
irmãs “belas” e “ditosas”; do outro, ela perdida no deserto ígneo do seu
sofrimento. Por isso, atormentada, África suplica a proteção salvadora da
divindade, que parece, porém, indiferente: «Embalde aos quatro céus chorando
grito: “Abriga-me, Senhor!...”».
Na décima terceira estrofe,
volta-se para o seu “Deus terrível”, questionando-o sobre se não chega já de
dor e os motivos de tanto sofrimento: “E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
/ Eu cometi jamais que assim me oprime / Teu gládio vingador?!”. Como estes
versos indiciam, o «eu» deseja conhecer a origem do crime pelo qual padece até
ao presente, isto é, encontrar as razões dos padecimentos africanos. Convém, a
este propósito, fixar o seguinte: o poema contém diversas imagens bíblicas e
referências religiosas, que o «eu» poético usa para criticar não apenas o
sistema esclavagista, mas sobretudo a forma como a Igreja sustentava, através
do seu discurso, o direito de os homens brancos escravizarem os seus congéneres
negros. Esse discurso “justificava o tráfico atlântico pela transferência do
cativo de um mundo africano de barbárie para a civilização cristã
brasileira” (MAESTRI). Ora, um mundo civilizado jamais promoveria a escravidão
do seu semelhante; ao fazê-lo, a Europa constituía um exemplo de barbarismo.
Por outro lado, acusa Deus de ser alguém terrível e cheio de sentimentos de
vingança e rancor, ligados à presença de Cam em África, cuja história está
narrada no Génesis, livro que também dá conta da jornada épica do povo
hebreu, o qual conheceu a escravidão no Egito até ser libertado por Moisés.
Esse mesmo povo e o seu sofrimento no cativeiro seriam vingados por Javé.
Embora em nenhum passo o referido texto dê a entender que Cam e os seus
descendentes se exilaram em África, o uso do nome «vingança» no poema parece
indiciar a referência a esse povo.
A décima quarta estrofe
parece fornecer o motivo, a culpa original de África, após o dilúvio: o
matrimónio entre duas culturas – “Cam!... Serás meu esposo bem amado… / Serei
tua Eloá…”. Cam é o filho mais novo de Noé, que foi salvo do dilúvio, juntamente
com os seus dois irmãos (Sem e Jafé), na arca que Deus mandara construir ao
pai. Quando o fenómeno bíblico cessou, Noé plantou uma vinha, colheu as uvas
nela produzidas, embriagou-se com o vinho feito e adormeceu, nu, na sua cabana.
De acordo com o relato bíblico, Cam surpreendeu o pai embriagado, desacordado e
nu, e, em vez de o cobrir, foi contar aos irmãos, que, andando de costas, o
taparam sem ver a nudez paterna. Quando acordou, Noé amaldiçoou Canaã, um dos
filhos de Cam, referindo-se-lhe como “servo dos servos”: “Maldito seja Canaã;
servo dos servos será de seus irmãos”. Segundo alguns estudiosos, ao proferir
tais palavras, Noé estaria a profetizar que um dos irmãos de Canaã iria herdar
a terra dos cananeus (os habitantes da antiga terra de Canaã, situada no Médio
Oriente e que correspondia sensivelmente ao atual território de Israel),
enquanto outros sustentam que Cam poderá ter mantido relações incestuosas com a
mulher do seu pai, pelo que Canaã teria sido amaldiçoado por ser o produto dessa
união ilícita. Esta maldição terá sido aproveitada por várias religiões
monoteístas para justificar o racismo e a escravidão de negros africanos, que
acreditavam ser descendentes de Cam. No Brasil, foi usada para fundamentar a
escravização dos índios: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão
de escravos […] [e os índios brasileiros] são da descendência da maldição de
Cam” (João de Sousa Ferreira, missionário). Por outro lado, a partir do século
XVIII, diversos autores europeus começaram a defender que, etimologicamente, a
palavra “Cam” significaria «queimado» ou «escurecido», tese que é cabalmente
desmentida pelo estudo de línguas antigas. Na versão europeia, como Cam e o seu
filho passaram a habitar a África, o homem negro estava fadado à escravidão.
Esse matrimónio entre África e Cam é o cruzamento de culturas e etnias que
ocorreu ao longo da História desde os remotos tempos bíblicos, o que parece
apontar para o pecado original. Seja como for, graças a essa “mancha original”
que envolve Cam e Eloá (do hebraico, significa “Deus”), as gerações africanas
sofrem o «anátema cruel» ao longo dos séculos. A partir daí, os africanos
perderam-se nos valores do «judeu maldito» e foram arruinados e destruídos
pelas «garras» da Europa (décima quinta e décima sexta estrofes).
Dito isto, o perdão reclamado por África é, portanto, pelo seu crime de ter
recebido um viajante “Negro, sombrio, pálido, arquejante” (vv. 79-80), isto é,
a figura amaldiçoada de Cam. A sua descrição como homem negro não possui
qualquer fundamento bíblico, pelo que o mais provável é que Castro Alves o
tenha caracterizado dessa forma para mostrar Cam era um ser etnicamente
semelhante àqueles que o expulsaram, ideia que indicia que a cor da pele, a
razão apontada para justificar o direito de um homem escravizar outro, deixa de
existir. Assim, o poeta procurou mostrar que essa ideologia, a associação entre
escravos e negros, era uma criação por quem se dedicava a esse tipo de comércio
e tinha, portanto, interesses económicos na situação.
Na décima sexta, o «eu» alude à perseguição a que
Moisés e os hebreus foram sujeitos pelos egípcios aquando da fuga do Egito: “Vi
meu povo seguir – Judeu maldito – / Trilho de perdição”. Na décima sétima,
África mostra o seu ceticismo relativamente ao Cristianismo, pois Cristo
sacrificou-se em vão, já que não houve qualquer redenção da humanidade: a
África e os seus filhos continuam a alimentar, com o suor e o sangue do seu
corpo, as duas «irmãs» dominantes. Cristo foi crucificado e morreu para que os pecados
dos homens fossem apagados, no entanto essa crucificação foi inútil para
África, dado que o seu pecado original não foi lavado pelo sangue de Jesus, pois
continua a sofrer. Mas que pecado foi esse? África recebeu Cam e a sua
descendência, facto que justificaria a sua escravização. Note-se que o facto de
Jesus Cristo ter sido escondido no continente africano e passar a habitá-lo não
o tornou berço da cultura mais elevada (também Belém de Judá, onde Jesus
nasceu, era considerada, antes da construção do Canal do Suez, parte de
África). Jesus, que passou despercebido entre os egípcios por ter um tom de
pele semelhante, depois de morto foi embranquecido pelos europeus para assim
propagar a ideologia branca. “No poema a voz d’África diz que o «sangue não lavou
a mancha original». Se se considera a mancha original a tal mentira
eurocêntrica que, depois de dar interpretação para o racismo, também mentiu ao
esconder que enaltecia um negro como seu salvador, é a ancestralidade africana
que fala; se se considera a mancha original o corpo negro de Cristo que através
da morte livrou o homem negro da escravidão, quem fala pode ter pele negra, mas
usa a mesma máscara branca que fez com que Cristo se tornasse branco.” Além
disso, o sujeito poético apresenta o continente africano como uma fazenda onde
se criam animais para o trabalho: “Meus filhos – alimária do universo, / Eu –
pasto universal…” (vv. 101-102).
A penúltima estrofe introduz a terceira irmã, a
América «traidora», que se transformou em ave de rapina (“Condor que
transformara-se em abutre, / Ave da escravidão, / Ela juntou-se às mais…”),
subjugando África no processo de escravidão. De facto, a América, tida como o
símbolo da liberdade, e o Brasil, que, nas margens do rio Ipiranga, proclamara
o fim da sua submissão a Portugal, são retratados não como portadores dessa
promessa de liberdade, mas como um abutre que se alimenta do sangue africano,
do seu suor, da sua existência, como o demonstrava a existência de inúmeros
escravos nestes territórios, distribuídos pelas plantações e pelos afazeres
domésticos. Alude-se depois a outro episódio bíblico, o de José do Egito, que
foi vendido pelos próprios irmãos, comparando o destino da personagem bíblica à
sina de África ver os filhos vendidos pela irmã malvada
Na última estrofe, a África
suplica por redenção pelo seu crime original: “Basta, Senhor!”, projetando o
seu grito no infinito.
Em suma, o poema configura uma alegoria
do destino trágico do ser africano, visto através da própria África enquanto
continente. Assim, é esta que narra as suas desgraças, lamenta o seu destino e
implora a misericórdia divina. Além disso, os africanos, metonimicamente,
apresentados todos como uma nação, queixam-se a Deus pela sua desventura, pela
tristeza de ver os seus conterrâneos arrancados do solo pátrio para serem
escravizados. Mais do que isso, o poema sugere a ideia da condenação eterna,
isto é, a personagem África observa que o seu destino será sempre a exploração,
“sem lugar ao sol”. Fica a ideia de desejo de liberdade e autonomia.
Castro Alves impõe-se como o cantor
do negro escravo. Ele assume uma postura de indignação face à escravatura, o
que o leva a cantar o escravo. Esta indignação está presente na imagem de
grandeza, nas antíteses, símiles, comparações. Tudo nele é grande e infinito. A
sua poesia abolicionista caracteriza-se por essa eloquência e grandiosidade. Em
Castro Alves, nota-se um certo exagero na escrita e na forma: uso inconsciente
de imagens, vertigem oral, abundância de adjetivos, o que contrasta com a
contenção de Gonçalves Dias.
O escravo é aqui apresentado como um
drama amplo e abstrato, ao contrário da individualização de A Cachoeira.
É como se o negro tivesse em si o próprio destino humano. Tudo isto mostra o
destino como um elemento fundamental no Romantismo, sendo a função do poeta
cantá-lo. A sua visão do negro acaba sempre por ser idealizada: ele cobre o
negro com um manto redentor; é um herói integralmente humano, que sofre e ama. Claro
que o processo de defesa do negro aparece numa altura em que ele era a
principal fonte de mão de obra, o que justifica a resistência do público e dele
mesmo, o que o leva a idealizar os traços físicos e morais do negro.
Quanto à natureza, ela surge como personagem central e necessária, não só como cenário, mas também como cenário onde se integram as personagens.