Português: 26/12/22

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A essência do Natal - Gerhard Haderer

Análise do poema "Vozes de África", de Castro Alves


             “Vozes de África” é um poema escrito por Castro Alves, composto em São Paulo, em 11 de junho de 1868. Trata-se de um texto épico sobre África, constituído por dezanove estrofes, compostas por seis versos cada (sextilhas), com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema AABCCB. Por outro lado, é interessante notar que estamos perante um texto inacabado, como o demonstram as linhas pontilhadas entre os versos 42 e 43, 72 e 73, 78 e 79 e 108 e 109.

            O sujeito poético deste poema representa todo o continente africano, isto é, todos os homens e mulheres que eram forçados a abandonar a sua terra para trabalhar como escravos. Assim sendo, podemos deduzir que o «eu» lírico é, no fundo, todo um continente que sofre com os seus homens e mulheres que partem e sofrem todo o tipo de provações. De facto, o texto é construído a partir do ponto de vista do continente africano. Por outro lado, a composição poética denuncia o tráfico negreiro e a escravidão a que os negros eram sujeito e mostra as arbitrariedades e a injustiça que decorrem dessa cultura de aprisionamento da pessoa negra. Em simultâneo, esse mesmo sujeito poético suplica a intervenção e a bondade divinas e procura compreender os motivos que originam tal situação e tanto sofrimento.

            No início do poema, o «eu» personifica a África, por ser uma criação de Deus, e toma para si as palavras ditas por Jesus Cristo, seu Filho, há mais de dois mil anos, na tentativa de ser ouvido por Ele. O mesmo sucederá, ao longo do texto, com os outros continentes, sendo, pois, todos vistos como entidades humanas. Ele clama por Deus de forma desesperada pelo facto de nesses dois milénios ter implorado, em vão, a sua ajuda, no sentido de o libertar do sofrimento (a escravidão). De facto, a composição apresenta o negro como uma vítima e personifica a África (que correspondeu ao «eu»), que, desesperada, pede perdão pelos seus crimes. No fundo, trata-se de um olhar católico sobre a situação, radicado na visão europeia do mundo e das coisas, daí as referências religiosas referidas e a atitude de resignação que se adivinha. De facto, a África dirigir-se-ia não ao Deus monoteísta cristão, mas a um deus (com «d» minúsculo) ou aos deuses, em respeito pela sua cultura politeísta. Assim sendo, se é verdade que Castro Alves reconhece o sofrimento do povo africano, fá-lo a partir de uma perspetiva cristão europeia. África, como tantas vezes tem sucedido ao longo dos tempos, reclama da escravidão que tem sido imposta aos seus filhos e questiona a figura divina por a ter abandonado e se manter silenciosa relativamente ao seu drama.

            Na segunda estrofe, o sujeito lírico faz referência ao mito de Prometeu, o irmão de Atlas que roubou o fogo sagrado aos deuses do Olimpo para o dar aos seres humanos e, por isso, foi acorrentado ao Cáucaso, onde, diariamente, uma ave de rapina lhe comia o fígado, que se regenerava de seguida. Deste modo, Prometeu constitui o símbolo do sofrimento incessante, daí a sua comparação com África, para quem o sofrimento é igualmente eterno. Contudo, neste caso, ainda não se conhece o motivo da punição. No poema de Castro Alves, a ave de rapina que atormentava Prometeu é comparada ao sol ardente que todos os dias castiga o continente africano. Por seu turno, o próprio continente africano está preso por correntes à região litoral de Suez, na Itália: “E a terra de Suez – foi a corrente / Que me ligaste ao pé…”. Note-se que até 1859, quando o engenheiro Ferdinand de Lesseps construiu o Canal de Suez, o Médio Oriente era considerado parte do território africano. Só então houve a separação geográfica e cultural entre esses espaços. Esta nota coloca a Europa na dependência da África, ou seja, a cultura ocidental baseou-se no continente africano para construir muitas das suas formas de conhecimento. O castigo passa também pelo ambiente fragoso e desértico que caracteriza África.

            A partir da terceira estrofe até à sétima, África compara-se às suas irmãs, isto é, aos outros continentes, num percurso que vai do passado ao presente, e indaga a razão do seu sofrimento em relação à Europa e à Ásia: “Minhas irmãs são belas, são ditosas… / Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas”; ”A Europa – é sempre Europa, a gloriosa!...”. Embora se considere irmã dos outros continentes, torna claras as diferenças e queixa-se de que aquelas são as preferidas de deus, pois foram contempladas com coisas maravilhosas, enquanto que ela foi abandonada (v. 49), sendo que até o próprio deserto conspira, escondendo as suas lágrimas, para que Deus não as veja (vv. 46, 47 e48). África contempla as riquezas das suas duas “irmãs”, às quais mais tarde se vem juntar a traidora América. No que diz respeito à Ásia, é enfatizada a sua beleza e exuberância cultural e natural, descrita de forma idealizada, como é característico do Romantismo: os haréns do Sultão, a natureza (os animais – os elefantes brancos, os Himalaias, o rio Ganges, os corais), a cultura e os monumentos / templos, as crenças, os deuses, os pagodes. Relativamente à Europa, está presente uma dose apreciável de realismo crítico, de rancor e ironia quando se lhe refere. Assim, aquela é apelidada, ironicamente, de “Progressista” (quando era a responsável pelo tráfico negreiro), de mulher vaidosa, dominadora e meretriz. Por isso, a voz de África solicita aos ícones da cultura que se libertem dos valores da “grande meretriz” presentes no “mármore de Carrara” (tipo de mármore branco ou azul-cinza de alta qualidade muito usado em esculturas, por exemplo, extraído na zona da cidade de Carrara, da região da Toscana, em Itália) e nos “hinos de Ferrara”, dado que a dominação europeia foi construída em cima da subjugação tirânica e violenta dos povos africanos, pelo que cabe à Europa uma contestação judicial (“litígio”). Ou seja, neste passo, sugere-se uma espécie de ressarcimento de todos os bens e danos cometidos com a exploração do ser africano.

            Contrastando com o poder da Europa e o exotismo exuberante da Ásia, a África só tem para mostrar a sua miséria: “Eu triste abandonada”; “Perdida marcho em vão! / Se choro… bebe o pranto a areia ardente”; “E nem tenho uma sombra de floresta…”. De um lado, encontram-se as irmãs “belas” e “ditosas”; do outro, ela perdida no deserto ígneo do seu sofrimento. Por isso, atormentada, África suplica a proteção salvadora da divindade, que parece, porém, indiferente: «Embalde aos quatro céus chorando grito: “Abriga-me, Senhor!...”».

            Na décima terceira estrofe, volta-se para o seu “Deus terrível”, questionando-o sobre se não chega já de dor e os motivos de tanto sofrimento: “E que é que fiz, Senhor? que torvo crime / Eu cometi jamais que assim me oprime / Teu gládio vingador?!”. Como estes versos indiciam, o «eu» deseja conhecer a origem do crime pelo qual padece até ao presente, isto é, encontrar as razões dos padecimentos africanos. Convém, a este propósito, fixar o seguinte: o poema contém diversas imagens bíblicas e referências religiosas, que o «eu» poético usa para criticar não apenas o sistema esclavagista, mas sobretudo a forma como a Igreja sustentava, através do seu discurso, o direito de os homens brancos escravizarem os seus congéneres negros. Esse discurso “justificava o tráfico atlântico pela transferência do cativo de um mundo africano de barbárie para a civilização cristã brasileira” (MAESTRI). Ora, um mundo civilizado jamais promoveria a escravidão do seu semelhante; ao fazê-lo, a Europa constituía um exemplo de barbarismo. Por outro lado, acusa Deus de ser alguém terrível e cheio de sentimentos de vingança e rancor, ligados à presença de Cam em África, cuja história está narrada no Génesis, livro que também dá conta da jornada épica do povo hebreu, o qual conheceu a escravidão no Egito até ser libertado por Moisés. Esse mesmo povo e o seu sofrimento no cativeiro seriam vingados por Javé. Embora em nenhum passo o referido texto dê a entender que Cam e os seus descendentes se exilaram em África, o uso do nome «vingança» no poema parece indiciar a referência a esse povo.

            A décima quarta estrofe parece fornecer o motivo, a culpa original de África, após o dilúvio: o matrimónio entre duas culturas – “Cam!... Serás meu esposo bem amado… / Serei tua Eloá…”. Cam é o filho mais novo de Noé, que foi salvo do dilúvio, juntamente com os seus dois irmãos (Sem e Jafé), na arca que Deus mandara construir ao pai. Quando o fenómeno bíblico cessou, Noé plantou uma vinha, colheu as uvas nela produzidas, embriagou-se com o vinho feito e adormeceu, nu, na sua cabana. De acordo com o relato bíblico, Cam surpreendeu o pai embriagado, desacordado e nu, e, em vez de o cobrir, foi contar aos irmãos, que, andando de costas, o taparam sem ver a nudez paterna. Quando acordou, Noé amaldiçoou Canaã, um dos filhos de Cam, referindo-se-lhe como “servo dos servos”: “Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos”. Segundo alguns estudiosos, ao proferir tais palavras, Noé estaria a profetizar que um dos irmãos de Canaã iria herdar a terra dos cananeus (os habitantes da antiga terra de Canaã, situada no Médio Oriente e que correspondia sensivelmente ao atual território de Israel), enquanto outros sustentam que Cam poderá ter mantido relações incestuosas com a mulher do seu pai, pelo que Canaã teria sido amaldiçoado por ser o produto dessa união ilícita. Esta maldição terá sido aproveitada por várias religiões monoteístas para justificar o racismo e a escravidão de negros africanos, que acreditavam ser descendentes de Cam. No Brasil, foi usada para fundamentar a escravização dos índios: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos […] [e os índios brasileiros] são da descendência da maldição de Cam” (João de Sousa Ferreira, missionário). Por outro lado, a partir do século XVIII, diversos autores europeus começaram a defender que, etimologicamente, a palavra “Cam” significaria «queimado» ou «escurecido», tese que é cabalmente desmentida pelo estudo de línguas antigas. Na versão europeia, como Cam e o seu filho passaram a habitar a África, o homem negro estava fadado à escravidão. Esse matrimónio entre África e Cam é o cruzamento de culturas e etnias que ocorreu ao longo da História desde os remotos tempos bíblicos, o que parece apontar para o pecado original. Seja como for, graças a essa “mancha original” que envolve Cam e Eloá (do hebraico, significa “Deus”), as gerações africanas sofrem o «anátema cruel» ao longo dos séculos. A partir daí, os africanos perderam-se nos valores do «judeu maldito» e foram arruinados e destruídos pelas «garras» da Europa (décima quinta e décima sexta estrofes). Dito isto, o perdão reclamado por África é, portanto, pelo seu crime de ter recebido um viajante “Negro, sombrio, pálido, arquejante” (vv. 79-80), isto é, a figura amaldiçoada de Cam. A sua descrição como homem negro não possui qualquer fundamento bíblico, pelo que o mais provável é que Castro Alves o tenha caracterizado dessa forma para mostrar Cam era um ser etnicamente semelhante àqueles que o expulsaram, ideia que indicia que a cor da pele, a razão apontada para justificar o direito de um homem escravizar outro, deixa de existir. Assim, o poeta procurou mostrar que essa ideologia, a associação entre escravos e negros, era uma criação por quem se dedicava a esse tipo de comércio e tinha, portanto, interesses económicos na situação.

Na décima sexta, o «eu» alude à perseguição a que Moisés e os hebreus foram sujeitos pelos egípcios aquando da fuga do Egito: “Vi meu povo seguir – Judeu maldito – / Trilho de perdição”. Na décima sétima, África mostra o seu ceticismo relativamente ao Cristianismo, pois Cristo sacrificou-se em vão, já que não houve qualquer redenção da humanidade: a África e os seus filhos continuam a alimentar, com o suor e o sangue do seu corpo, as duas «irmãs» dominantes. Cristo foi crucificado e morreu para que os pecados dos homens fossem apagados, no entanto essa crucificação foi inútil para África, dado que o seu pecado original não foi lavado pelo sangue de Jesus, pois continua a sofrer. Mas que pecado foi esse? África recebeu Cam e a sua descendência, facto que justificaria a sua escravização. Note-se que o facto de Jesus Cristo ter sido escondido no continente africano e passar a habitá-lo não o tornou berço da cultura mais elevada (também Belém de Judá, onde Jesus nasceu, era considerada, antes da construção do Canal do Suez, parte de África). Jesus, que passou despercebido entre os egípcios por ter um tom de pele semelhante, depois de morto foi embranquecido pelos europeus para assim propagar a ideologia branca. “No poema a voz d’África diz que o «sangue não lavou a mancha original». Se se considera a mancha original a tal mentira eurocêntrica que, depois de dar interpretação para o racismo, também mentiu ao esconder que enaltecia um negro como seu salvador, é a ancestralidade africana que fala; se se considera a mancha original o corpo negro de Cristo que através da morte livrou o homem negro da escravidão, quem fala pode ter pele negra, mas usa a mesma máscara branca que fez com que Cristo se tornasse branco.” Além disso, o sujeito poético apresenta o continente africano como uma fazenda onde se criam animais para o trabalho: “Meus filhos – alimária do universo, / Eu – pasto universal…” (vv. 101-102).

A penúltima estrofe introduz a terceira irmã, a América «traidora», que se transformou em ave de rapina (“Condor que transformara-se em abutre, / Ave da escravidão, / Ela juntou-se às mais…”), subjugando África no processo de escravidão. De facto, a América, tida como o símbolo da liberdade, e o Brasil, que, nas margens do rio Ipiranga, proclamara o fim da sua submissão a Portugal, são retratados não como portadores dessa promessa de liberdade, mas como um abutre que se alimenta do sangue africano, do seu suor, da sua existência, como o demonstrava a existência de inúmeros escravos nestes territórios, distribuídos pelas plantações e pelos afazeres domésticos. Alude-se depois a outro episódio bíblico, o de José do Egito, que foi vendido pelos próprios irmãos, comparando o destino da personagem bíblica à sina de África ver os filhos vendidos pela irmã malvada

            Na última estrofe, a África suplica por redenção pelo seu crime original: “Basta, Senhor!”, projetando o seu grito no infinito.

            Em suma, o poema configura uma alegoria do destino trágico do ser africano, visto através da própria África enquanto continente. Assim, é esta que narra as suas desgraças, lamenta o seu destino e implora a misericórdia divina. Além disso, os africanos, metonimicamente, apresentados todos como uma nação, queixam-se a Deus pela sua desventura, pela tristeza de ver os seus conterrâneos arrancados do solo pátrio para serem escravizados. Mais do que isso, o poema sugere a ideia da condenação eterna, isto é, a personagem África observa que o seu destino será sempre a exploração, “sem lugar ao sol”. Fica a ideia de desejo de liberdade e autonomia.

            Castro Alves impõe-se como o cantor do negro escravo. Ele assume uma postura de indignação face à escravatura, o que o leva a cantar o escravo. Esta indignação está presente na imagem de grandeza, nas antíteses, símiles, comparações. Tudo nele é grande e infinito. A sua poesia abolicionista caracteriza-se por essa eloquência e grandiosidade. Em Castro Alves, nota-se um certo exagero na escrita e na forma: uso inconsciente de imagens, vertigem oral, abundância de adjetivos, o que contrasta com a contenção de Gonçalves Dias.

            O escravo é aqui apresentado como um drama amplo e abstrato, ao contrário da individualização de A Cachoeira. É como se o negro tivesse em si o próprio destino humano. Tudo isto mostra o destino como um elemento fundamental no Romantismo, sendo a função do poeta cantá-lo. A sua visão do negro acaba sempre por ser idealizada: ele cobre o negro com um manto redentor; é um herói integralmente humano, que sofre e ama. Claro que o processo de defesa do negro aparece numa altura em que ele era a principal fonte de mão de obra, o que justifica a resistência do público e dele mesmo, o que o leva a idealizar os traços físicos e morais do negro.

            Quanto à natureza, ela surge como personagem central e necessária, não só como cenário, mas também como cenário onde se integram as personagens.

Crónica de D. João I: Capítulos CXV e CXLVIII


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...