Português: 25/02/21

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Análise de "Aquela cativa"


Assunto: o sujeito lírico exalta a beleza exótica de Bárbara, uma escrava cativa que o cativara, apresentando um retrato mais psicológico do que físico que se desenvolve mediante vários contrastes: cativa/cativadora; pretidão/brancura da neve; Bárbara/delicada.
 
 
Tema: exaltação da beleza feminina de Bárbara, através do seu retrato.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (v. 1-vv. 4) – Apresentação de Bárbara.
 
2.ª parte (vv. 5-28) – Retrato físico de Bárbara.
 
3.ª parte (vv. 29-36) – Retrato psicológico de Bárbara.
 
4.ª parte (vv. 37-40) – Retoma da apresentação de Bárbara, mais próxima emocionalmente.
 
 
Retrato de Bárbara

 

 
Retrato do sujeito poético
 
            O sujeito poético está apaixonado por Bárbara, como se pode constatar ao longo da composição poética, pela hiperbolização das qualidades da mulher amada: ela é a mais virtuosa, a mais bela, é única/não tem par. De igual modo, os versos iniciais deixam claro o amor do «eu» pela figura feminina: “Aquela cativa / que me tem cativo”. Este trocadilho explica-se da seguinte forma: Bárbara é «cativa» porque é escrava; ele é «cativo» porque se encontra aprisionado pelo seu amor. Apesar de, socialmente, o «eu» ser superior, em termos amorosos, ela subjuga-o.
            Por outro lado, a mulher exerce efeitos no «eu»: amor (vv. 1-4); fascínio (vv. 5-8); tranquilidade (v. 14); refreio da dor (vv. 33-36). A metáfora do verso 34 («tormenta») sugere que Bárbara lhe dá felicidade, faz com que seja feliz e com que se esqueça de penas e sofrimentos.
 
 
NOTAS
 
1. Constata-se, a partir do retrato elaborado, que Camões não é escravo de nenhuma "moda" literária e que a sua vivência afetiva irrompe, de forma exuberante e doce, na sua produção poética. Fisicamente, apresenta-nos uma mulher caracterizada pela singularidade, pela estranheza e pelo exotismo.
 
2. Tal como noutras poemas de Camões (por exemplo, “Pastora da serra”), a mulher exerce uma grande influência no ambiente circundante: “tão doce a figura, que a neve lhe jura / que trocara a cor”, “Presença serena / que a tormenta amansa”.
 
3. Em síntese, podemos afirmar que da imagem de Bárbara se desprende um quadro de serenidade e doçura, conseguido através da sua caracterização física e psicológica:

® a suavidade da sua beleza (vv. 5-8);

® a singularidade do rosto e o sossego do olhar (vv. 13-16);

® a sua doce figura que suscita na neve o desejo de mudar de cor (vv. 25-28);

® a mansidão, a alegria e a sensatez (vv. 29-30);

® a serenidade da sua presença bonançosa que refreia a dor e tranquiliza o sujeito.

 
4. Trata-se de um amor insólito que torna o sujeito poético cativo de uma mulher cativa por uma lei social.
 
5. O retrato, que trabalha características físicas como os olhos, o rosto, os cabelos, a figura, e psicológicas, evidencia a beleza da mulher através de várias analogias: é a rosa, são as flores e as estrelas.
 
6. Os quatro versos iniciais e os quatro últimos são praticamente idênticos, evidenciando a construção em círculo do poema e o carácter obsessivo da relação amorosa que se estabelece entre o sujeito poético e Bárbara.
 
 
Tipo de mulher retratada no poema
 
            O retrato físico de Bárbara é escasso: bela como a rosa, como as flores, como as estrelas; "rosto singular" (exótico), "olhos e cabelos pretos". Mais acentuado, embora também impreciso, é o retrato moral/espiritual: "olhos sossegados" (notar como os olhos a caracterizam física e moralmente) e "cansados mas não de matar" (ou seja, não se tratada de uma mulher fatal), "uma graça viva" (notar o determinante indefinido a sugerir a subtileza dessa graça), "senhora" (em contraste com cativa), "doce figura, leda mansidão que o siso acompanha", "estranha, / Mas bárbara não" (ou seja, exótica, mas não de costumes bárbaros – notar o uso do adjetivo bárbara, jogando com o nome próprio Bárbara), "presença serena", "cativa" que aqui tem sobretudo valor de adjetivo, o que se nota no trocadilho: "Esta é a cativa" – "que me tem cativo").

            Esta figura de mulher oriental, exótica, indefinida, quase inefável, surge-nos assim num retrato em que todo o sortilégio vem de qualidades espirituais: "doce figura", "presença serena", "leda mansidão". Note-se que estas qualidades sugerem um porte senhorial, em oposição à sua condição de escrava ("parece estranha, mas bárbara não").

            Não obstante o retrato de Bárbara, marcadamente espiritual, se revista de qualidades que se enquadram dentro do tipo da mulher petrarquista, no entanto, a cor dos olhos e dos cabelos (preta) está longe de pertencer ao tipo da mulher petrarquista – Laura. Na verdade, contra as convenções do petrarquismo, que via na mulher loira a formosura ideal, Camões canta uma beleza oriental, indígena, atribuindo-lhe, todavia, um porte senhorial, o que a distancia menos da mulher cantada por Petrarca (Laura).

            Bárbara aparece como mulher clássica, perfeita, inacessível, mulher deusa: "Ua graça viva / que neles lhes mora, / mera ser senhora / de que é cativa".

 
 
Linguagem e recursos estilísticos

 
            Relativamente ao nível fónico, estamos na presença de um poema constituído por cinco oitavas em versos de redondilha menor, com rima interpolada e emparelhada (ABBACDDC), consoante ("cativo" / "vivo"), grave ("cativa" / "viva") e aguda ("singular" / "matar"), rica ("cativa" / "viva") e pobre ("molhos" / "olhos"). O ritmo é ligeiro, próprio da redondilha menor. Há vários casos de transporte, como, por exemplo, do verso 1 para o 2, do 3 para o 4, do 5 para o 6, etc. Refira-se também a aliteração em v (“cativa”, “cativo”, “vivo” e “viva”), que intensifica a ideia de que a vida do sujeito poético depende da mulher (“cativa”) por quem se apaixonou.
 
            Quanto aos aspetos morfossintáticos, o poeta usa o trocadilho e os jogos de palavras (cativa / cativo e vivo / viva, na 1.ª e na última estrofes) para salientar a atração exercida por Bárbara sobre o sujeito poético e, por outro lado, para sugerir que Bárbara é, socialmente, uma escrava de um senhor que, por sua vez, é cativo/escravo de amor por ela.

            A adjetivação caracterizante do rosto ("rosto singular") e dos olhos ("olhos sossegados, pretos e cansados") apresenta Bárbara como uma mulher exótica, de olhos moderadamente românticos, mas sem serem fatais ("... mas não de matar"). A adjetivação em geral realça as características físicas e psicológicas de Bárbara: os seus traços psicológicos são típicos da mulher petrarquista, mas fisicamente afasta-se desse modelo.

            O retrato psicológico é também conseguido pela enumeração de nomes abstratos.

            O determinante indefinido "ua" realça a graça indefinível e misteriosa desta mulher, graça essa vincada pela forma verbal mora, de aspeto durativo. A mudança do determinante demonstrativos aquela (v. 1) para esta (v. 37) traduz uma ideia de aproximação sentimental entre o sujeito poético e a mulher amada.

            O aumentativo Pretidão exprime a intensidade da cor e, simultaneamente, intensifica o afeto que liga o sujeito à escrava.

 
            Ao nível semântico, são vários os recursos que exaltam a beleza de Bárbara. É o caso da comparação: o sujeito poético compara a mulher com a Natureza (rosa, flores, estrelas), ou seja, a sua beleza supera a dos elementos naturais (hipérbole). O paradoxo "senhora de quem é cativa" salienta que, através da sedução, Bárbara se tornou senhora / dona do seu senhor, ideia confirmada no trocadilho: "Esta é a cativa / Que me tem cativo".

            A antítese (versos 19 e 20) entre a posição de dependência (cativa) e a superioridade na relação amorosa – senhora  ¹  cativa – aponta para a relação feudal da cantiga de amor. Por outro lado, destaca o facto de, sendo escrava, se comportar como uma senhora. Outras antíteses se encontram no poema para realçar a beleza de Bárbara: a beleza dos cabelos pretos suplanta a dos louros; a sua pretidão é mais bela que a brancura da neve; parece estranha (= exótica) mas não bárbara (= não civilizada, selvagem – trocadilho entre este adjetivo bárbara e o nome próprio Bárbara); a sua presença serena acalma a tormenta e o sofrimento (pena) do sujeito.

            Outras figuras de estilo que realçam a beleza singular da mulher são a personificação ("que a neve lhe jura / Que trocara a cor"); as metáforas ("Eu nunca vi rosa"; "Nem no campo flores / Nem no céu estrelas"; "Presença serena / Que a tormenta amansa"; "tão doce a figura") e a hipérbole ("que a neve lhe jura / Que trocara a cor"; "Presença serena / Que a tormenta amansa").

            Referência por último para as construções negativas: "Eu nunca vi rosa / Nem no campo flores, / Nem no céu estrelas".

 
 
Influências
 
Petrarca:

-» idealização da mulher amada, valorizando a sua beleza espiritual, psicológico- moral, e exprimindo o seu fascínio;

-» as características psicológicas e morais da mulher.

 
Vivência pessoal: apresentação de um retrato físico de uma mulher exótica, oriental.
 
Cantiga de amor:

- atitude de vassalagem amorosa do sujeito face à mulher;

- o amor platónico;

- a imagem da mulher ideal, perfeita e divinizada.

 
 
Desenvolvimento: endecha ® composição poética de fundo melancólico, constituída por quadras ou oitavas, utilizando versos de 5 ou 6 sílabas, proveniente do Cancioneiro Geral.
 
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