● Assunto: o sujeito amaldiçoa o dia em que nasceu e manifesta o
desejo de que não volte a repetir-se.
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Temas:
- a ligação do nascimento e da morte
(verso 1);
- as relações ambíguas com a mãe
(verso 8);
- a visão de si próprio com um ser
desmesurado, mesmo monstruoso (versos 6 e 7);
- a sensação de desgraça maior
(versos 13 e 14).
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Estrutura interna
•
1.ª parte (2
quadras e 1.º terceto): o sujeito poético amaldiçoa o dia em que nasceu,
desejando que ele nunca mais volte, e recria um ambiente monstruoso,
apocalíptico, que deseja que se materialize, caso o dia do seu nascimento se repita.
•
2.ª parte (2.º
terceto): justificação do desejo – o «eu» considera-se vítima do
destino, que começou logo no dia em que nasceu: “[…] este dia deitou ao mundo a
vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”.
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Desenvolvimento do tema
• No verso 1, o sujeito poético
manifesta um desejo: que o dia em que nasceu desapareça e que não se repita.
• Caso esse desejo não se cumpra e ele
se repita, deseja que seja um dia horrível, monstruoso.
• Assim, enumera uma série de
maldições que deverão ocorrer caso [o dia em que nasceu] se repita:
1.ª) Deseja que haja um eclipse, que
o sol desapareça e seja um dia de escuridão total.
2.ª) Deseja que o mundo mostre sinais
de que vai acabar.
3.ª) Deseja que nasçam monstros.
4.ª) Deseja que chova sangue.
5.ª) Deseja que a mãe não conheça o
próprio filho.
Em suma, o «eu» lírico espera que esse dia seja de escuridão
total («A luz lhe falte»), tenebroso e monstruoso («nasçam-lhe monstros») e de
alienação («a mãe ao próprio filho não conheça»). O cenário que constrói é de
violência, sofrimento, morte e terror geral.
• Estado de espírito do
sujeito poético: ao manifestar o desejo de que o dia do seu nascimento não se volte
a repetir, o «eu» expressa fúria e revolta, bem como desilusão, caso tal não
suceda. O seu tom é exaltado e de fúria, em consonância com o seu estado de
revolta e desespero. O «eu» é um ser magoado, mas sem medo. Apresenta-se como
um ser de exceção, uma vez que a desgraça o acompanha desde que nasceu. A sua
excecionalidade culmina com a hipérbole presente nos dois versos finais do
soneto: ele é o ser mais desgraçado que o mundo já viu, o que o deixa irado e
revoltado.
• O primeiro terceto reflete e
a reação das pessoas ao ambiente tenebroso desejado pelo sujeito
poético: espanto (por desconhecerem a causa de tal ambiente catastrófico),
angústia, medo, pavor, desespero, perante a destruição desejada pelo «eu». A enumeração
desta terceira estrofe realça a antevisão que o sujeito lírico tem do ambiente
de horror que marcará o dia do seu nascimento, caso ele volte a repetir-se.
• No segundo terceto, o «eu»
lírico justifica o amaldiçoamento do dia do seu nascimento: dirige-se à «gente
temerosa», incentivando-o a não estranhar («não te espantes» - v. 12) o desejo,
visto que esse dia trouxe ao mundo o mais desgraçado e infeliz dos seres
humanos.
• Perceção do destino: no
último terceto, o sujeito poético conclui que, desde o dia em que nasceu, nunca
foi feliz. Assim, refletindo sobre a sua vida, considera-se uma vítima do poder
destruidor do destino, que o persegue desde o seu nascimento, sendo, por isso,
considerado o causador do seu infortúnio. Em suma, o destino, para o sujeito
lírico, o destino constitui:
▪ a causa do seu infortúnio, da sua vida
desgraçada;
▪ o elemento com poder destruidor que
o persegue;
▪ o obstáculo à sua felicidade.
• Representação e autoimagem do «eu»:
no poema, o «eu» apresenta-se como um ser «especial», infeliz e egocêntrico. O
seu egocentrismo reside no facto de ele considerar que pode impor aos outros a
sua tragédia pessoal, arrastando-os para um cenário imaginário de terror e
cataclismo.
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Recursos expressivos
▪ Ao nível fónico, estamos na
presença de um soneto, constituído por duas quadras e dois tercetos, em
versos decassilábicos, com rima interpolada e emparelhada nas
quadras (abba) e interpolada nos tercetos (cde/cde), consoante (“pereça”/”padeça”),
grave (“pereça”/”padeça”) e aguda (“dar”/”tornar”), pobre (“dar”/”tornar”) e
rica (“acabar”/”ar”). A métrica, como atrás foi referido, oscila entre o
decassílabo heroico e sáfico, o último.
▪ Ao nível morfossintático e ao
nível semântico, os recursos utilizados estão ao serviço da expressão do
desespero do sujeito poético, amaldiçoando-o o dia em que nasceu, pedindo o seu
desaparecimento e, caso o seu desejo não seja correspondido, traçando um quadro
apocalíptico que gostaria de ver materializar-se nessa data.
Há, em suma, um tom de exagero da desgraça do sujeito, uma
«hipertrofia do eu», que pretende impor à própria natureza e à «gente temerosa»
a enormidade da sua tragédia, de uma forma violenta: eclipse, monstros, chuva
de sangue, lágrimas, o medo, a destruição do mundo.
Esta hipertrofia do «eu», conjugada com uma grande dimensão
hiperbólica da afirmação da excecionalidade individual na desgraça, exprime-se
através dos seguintes recursos:
. Pleonasmo: «moura e pereça» – exprime o desejo
do desaparecimento do dia em que nasceu.
. Inversão: «Eclipse nesse passo o Sol padeça»;
«A mãe ao próprio filho não conheça»; «Sangue chova o ar».
. Apóstrofe: «Ó gente temerosa…» – evidencia a
distância entre o «eu» e os outros, pois, enquanto estes se mostram temerosos e
ignorantes, o sujeito não receia e conhece a causa para o caos.
. Modo conjuntivo para traduzir o desejo de amaldiçoar
tudo e o conselho dirigido à «gente temerosa» para que não se espante com o
cenário apoclítico.
. Discurso valorativo: «As pessoas pasmadas»;
«gente temerosa», «a vida mais desgraçada que jamais se viu».
. Alternância das rimas em a aberto e e
fechado nas quadras, sugerindo espanto e dor, e em i nos tercetos como
um grito de desespero.
. Anáfora: «não», «não» – intensifica o desejo
do sujeito poético.
▪ Hipérboles – são a expressão
do desejo de maldição, de um ambiente de terror:
. “não o queira jamais o tempo dar”;
. “cuidem que o mundo já se destruiu”;
. “a vida / mais desgraçada que jamais se viu!”: o
sujeito poético teve e tem uma vida infeliz e desgraçada, cujo causador é o
destino.
▪ Adjetivação: «pasmadas»,
«perdida» – os adjetivos traduzem a reação das pessoas ao ambiente de terror, o
seu assombro e medo ao serem confrontadas com ele, sem terem explicações para
esse ambiente. Por outro lado, a adjetivação acentua a violência dos
acontecimentos e marca a impotência humana face às forças que regem o mundo.
▪ Metáfora: «nasçam-lhe
monstros, sangue chova o ar» – traduz o delírio emocional do «eu», apontando
algumas das maldições por si imaginadas / desejadas.
▪ Determinante demonstrativo
«este» (v. 13): traduz a proximidade afetiva entre o sujeito poético e o dia do
seu nascimento.
▪ Verbo «chover»: este verbo
pressupõe um sujeito nulo expletivo. O facto de, no poema, ocorrer com um
sujeito simples, aliado ao hipérbato, acentua o caos verificado na natureza,
que também se manifesta ao nível da frase que o representa.
▪ Conjunção subordinativa causal
«que» (v. 13): introduz a causa do desejo expresso no verso 1 – no dia do
seu nascimento foi dada à luz a pessoa mais infeliz e desgraçada que o mundo
alguma vez viu.
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Conclusões
• Esta luta com o destino, a ira, as
imprecações, constituem uma revolta falsa e não uma real tentativa de libertação.
A violência das maldições, os gritos de desespero, o desejo de morte
representam uma espécie de desculpa para a vida, um desejo de encontrar um
culpado e a absolvição para a própria derrota.
• Camões apresenta, neste soneto, uma
imagem engrandecida de si mesmo com que vai compensando a humilhação da derrota:
também aqui a poesia é contraditória, oscilando entre a autodepreciação e o
narcisismo: vai crescendo em si a consciência de ser diferente; a perseguição
do destino, na singular crueldade e estranheza que a caracterizam, acaba por o
tornar singular; o afastamento e o desprezo do vulgo exprime-se na epopeia e na
lírica. Reconhece-se um ser eleito, grandioso, heroico, genial.
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Intertextualidade com o Livro de Job
Este soneto pode relacionar-se com o
capítulo III do Livro de Job, intitulado “As lamentações de Job”, dado
que ambos os textos revelam o sofrimento de ambos os «eus». A infelicidade
sentida leva-os a amaldiçoarem o dia em que nasceram, recorrendo a imagens e
situações sobre a ausência da luz solar e da alegria, embora no texto bíblico
não estejam presentes as imagens de terror que é visível na segunda quadra do
poema de Camões.