segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Capítulo I de A Sibila
1. Tempo: 1953,
momento em que Germa e Bernardo dialogam, recuando então a 1870, data do
incêndio, elemento despoletador da memória de Germa.
2. Narrador:
A
Sibila é uma longa retrospetiva da vida de uma família feita por uma
personagem secundária, Germa, quando, sentada na velha rocking chair da
sua tia Quina, já falecida, a evoca com nostalgia, apesar da incompreensão e
dos atritos que, muitas vezes, ensombraram as suas relações. Esta evocação
começa e acaba na sala da casa da Vessada, com um diálogo entre duas
personagens: Germa e seu primo Bernardo Sanches. De facto, mais do que
configurador de uma diegese, o discurso tende a assumir-se como mimese,
aparentando construir-se sob duas formas:
- um diálogo
que inicia e termina a narrativa;
- um amplo
monólogo intercalar de Germa que terá Bernardo como destinatário interno.
De facto, Germa
será narradora de 2.º nível, narradora homodiegética e intradiegética: "E,
bruscamente, Germa começou a falar de Quina." (p-9)
Mas a
personagem narradora é frequentemente substituída por um narrador de 1.º nível,
narrador extradiegético e omnisciente que possui um conhecimento mais vasto que
o de Germa: "Era em setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava
o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos
que amarrotam folhetos amontoados em todos os sobrados." (p.9)
Estamos, pois,
perante uma narrativa da responsabilidade de dois narradores que entre si estabelecem
um compromisso e relações subtis, de tal forma que não chegaremos a saber com
rigor onde começa um e termina o outro. De qualquer forma, Germa é uma
personagem, e o que narra, parte da sua memória; o narrador de 1º nível retoma
a sua voz para intervir, comentar, aprofundar e guiar o narratário. São duas
vozes que se cruzam, se complementam, se chocam e se interrogam. Daqui resulta
um discurso fragmentado, descontínuo, digressivo.
2.1.
A opção do narrador
O estatuto do
narrador condiciona sempre a sua narração. Se a opção for por mostrar os
acontecimentos, os locais em que se dão e as personagens que os realizam,
teremos uma narrativa que privilegia as cenas; o leitor como que vê o que se
passa como num palco ou num filme. Se a opção for por contar, a sua voz, será
omnipotente e omnipresente, esperando que o leitor aceite a boa fé dessa voz,
que diz o que lhe apetece e quando lhe apetece. Só resta ao leitor aceitar ou
recusar, porque não vê.
Ora em A
Sibila, o narrador assemelha-se a um contador de histórias, privilegiando em
absoluto o contar. Daqui resulta o facto de se assistir a uma acumulação de
episódios, digressões sucessivas e a inexistência de uma intriga à maneira
tradicional.
2.2.
Narração com base na memória
O romance abre
com o diálogo entre Germa e o seu primo Bernardo Sanches sobre a casa onde se
encontram e a sua transmissão de geração em geração. Mas depressa Germa já
quase não o escuta porque "(...) subitamente o ambiente ficara repleto
doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, onde pairava um
cheiro de priogana e de maçã, se enchia de uma expressão humana e calorosa,
como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde vivem, e o
seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação." (p. 9)
É esta evocação
que vai dar lugar à narração. Entre o início da evocação e fim do universo
evocado passam-se cem anos. Toda a narrativa é formalmente apresentada como uma
longa analepse na memória de Germa.
2.3.
A tradição oral
A obra
inicia-se com o diálogo entre Germa e Bernardo Sanches e termina com o mesmo
diálogo. Tal situação parece filiar o romance numa tradição de narrativas
orais, o que, aliás, é favorecido pelo narrador de 1º nível cuja opção foi
contar e resumir em vez de mostrar e de construir cenas. A sua voz é
omnipotente e omnipresente, estabelecendo a unidade entre personagens e
episódios díspares.
3. Personagens –
caracterização (p.7)
. Bernardo
Sanches:
-
descendente de uma aristocracia rural
-
primo de Germa
-
burguês intelectual
-
verbosidade oca
-
espírito fechado e narcisista
-
medíocre
. Germa:
-
paciente
-
tímida
-
inspira confiança
4. Início da
grande analepse (p. 9)
. "Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada,
setenta e seis anos antes" (p. 9) – 1877.
. Nascimento de
Quina: apresentava uma mancha escura no pulso esquerdo, sinal de predestinação.
De constituição débil, teria, desde logo, que lutar pela própria sobrevivência,
de alguma forma, ameaçada por marcas de predestinação. (p. 9, 2.º parágrafo).
. Casamento
apressado e em segredo de Francisco Teixeira e Maria da Encarnação, nova
analepse, dentro da grande analepse, seguida de outra analepse que relata a
forma como se conheceram, tinha ela nove anos.
4.1.
Caracterização das personagens
Bela,
pertencente a uma família de gente trabalhadora e honesta (pp. 9-10), Maria
representa o tipo de mulher forte que conduz o lar pelos seus próprios passos,
de que assume inteira responsabilidade, por esta não poder ser compartilhada
com o homem com quem casara. Apesar deste aspeto, mostra-se submissa, refletida,
altruísta, face ao marido e não vacila perante o desamparo a que ele a vota:
"Gostava
[Francisco Teixeira] das mulheres submissas, mansas (...)"; "Ele
desacompanhava-a muito, deixava-a sozinha na casa (...)" (p. 17).
Francisco
Teixeira, marido de Maria da Encarnação, "o maior conquistador da
comarca", é um homem sedutor, egoísta, pouco trabalhador, irresponsável,
cujas condições de vida lhe permitem levar uma vida de boémia, mas, em breve, levará
a casa à ruína. Este comportamento obrigará Maria e, posteriormente, Quina a
assumirem a chefia da administração da casa a todos os níveis: "Francisco
Teixeira era, de facto, um galã feliz. Possuía ele casa de lavoura e bens ao
luar de sobejo interesse, e que administrava mal, pois era feirante por índole,
amigo de gozos, vida larga, gostando de presumir grandezas, generosidades e
essa bazófia genuína, mais feita de discrição do que de alardes pimpões."
(p. 10).
De facto, o retrato
da sociedade rural que nos aparece em A Sibila deixa a condução da família e da
casa às mulheres, a quem cumpre responsabilidades, quer a nível económico, quer
educacional, quer de trabalho.
Apesar da sua
coragem física e habilidade no manejo do pau, do seu "muito nervo",
Francisco era, psicologicamente, um fraco, vulnerável perante as lágrimas
femininas, daí que mantenha várias relações amorosas depois de casado:
"Estava nessa altura Francisco Teixeira no seu apogeu de sedutor..."
(p. 11, 4.º parágrafo).
O casamento sigiloso
de ambos vai ficar a dever-se ao romance de amor de Francisco com Isidra.
5. Reflexões do
narrador (de 1.º nível)
5.1.
Sociedade
a) Denúncia da
aristocracia campesina detentora de qualidades negativas como o ócio e o baixo
nível cultural: "Um largo espelho de caixilho de esmalte branco com
filetes de oiro refletia aquela reunião, os homens medonhos, com coletes
acolchoados, e que falavam, preguiçosamente, das finanças e de política, as
santas criaturas que cochichavam agravos de parentela e de criados, empinando
pelas ventas dedadas de rapé." (p. 16).
b)
Solidariedade do povo perante a desgraça alheia: "(...) o fogo apenas
poupara os caldeiros de ferro que, esbraseados, tinham rolado sobre os charcos
do quinteiro, fazendo soltar uivos de espanto ao povo que acorria com escudelas
de água e cântaros que pareciam pairar magicamente à cabeça das mulheres."
(p. 18).
5.2.
Cultura popular
a) As tradições
e as festas populares são-nos descritas com naturalidade e têm uma importância
decisiva, para formar um contexto popular que acaba por influenciar o
comportamento das personagens: "Conhecera Francisco Teixeira numa tarde de
romaria que ela presenciava da sacada aberta sobre o largo da povoação em
festa; vestida de tafetá negro, sem joias; a trança dos cabelos um tanto solta
nas espáduas, abanava-se com um grande leque de moiré e azeviche, contemplando
com o olhar indolente a procissão que descia do adro, as torres dos andores
oscilando, com as suas fitas e as suas palmas de papel tremendo e voando entre
as copas poeirentas das acácias." (p. 14).
b) Tal como
Camilo, Agustina foca a rebeldia popular, ilustrando a índole do nosso povo com
instintos e atitudes rebeldes, mesmo quando se trata de fazer sangue em
discórdias de rua: "Subitamente, um redemoinho de desordem ferver,
alastrando logo com um corricar de cachopos que se arrastavam sob as pernas do
poviléu, e o escândalo ainda morno..." (pp. 14-15).
5.3.
Arte
Os artistas são
considerados representantes da inutilidade e da excentricidade: "(...) o
artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma
inutilidade imediata. (...) Os artistas, que,
em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se
distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses
reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa." (p. 8).
5.4.
Religião
Agustina
retrata-nos a figura do abade de aldeia, sem projeção social significativa,
surgindo como uma figura marginalizada por não ter representatividade no espaço
social: "(...) Sob o pálio, o abade, recolhido, mansamente esperava, entre
as opas vermelhas cujas pregas o sol riscaria de violeta e as filas de crentes
ajoelhados sobre os lenços de bolso." (p. 15).
6. Linguagem
6.1.
Os símbolos – herança do Simbolismo
* Incêndio:
símbolo da purificação, imprescindível à continuidade da família em lugar
preservado de influências nocivas. Tal como o ouro, o metal precioso, é
purificado pelo fogo, também a casa foi purificada das manchas e impurezas pelo
incêndio, necessário à continuidade da família:
"Um
incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura
primitiva."
(p. 7)
"Acontecera
pouco tempo depois da chegada de Maria." (p. 18)
* Terra/campo:
símbolo da autenticidade e ingenuidade e da fertilidade, da pureza original do
homem, em contraste com a cidade, símbolo do artificialismo, da
degenerescência: "A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado
aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada
herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendida da personalidade
que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas
imitações." (p. 7)
* Maçãs
(símbolo bíblico): símbolo da beleza e do encanto femininos (Eva) e da
sabedoria e fecundidade, coexistindo com as sucessivas gerações da família de
Quina, como se se tratasse de um microcosmos feminino, onde existe consonância
entre a existência de pessoas e objetos: "(...) sobrado, onde se
acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de
serrim." (p. 8)
* Rocking
chair: símbolo quer dos pólos opostos de Quina - ternura e vaidade – , quer
do fluir do tempo, fazendo lembrar o pêndulo do relógio. Pelo seu movimento
oscilatório, e, consequentemente, ascendente, promove a subida espiritual, ou
melhor, a ascese para onde a personagem principal sabia conduzir-se.
* Mancha cor de
sépia: sinal de predestinação: "Era uma menina de aspeto pouco viável,
roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor de
sépia(...)". (p. 9)
* Número 7:
tradição cultural de antiguidade bastante remota (semana, lua, vida dos gatos,
etc.), apresenta um significado pleno de valor místico, cuja simbologia é
universal como o próprio homem: "Era a segunda filha que vingava num
matrimónio de sete anos(...)" (p. 9)
; "(...) em toda a parte há
sete cores e sete ventos, e o homem é só um." (p. 37)
A este número,
bem como ao 5, convergem numerosas superstições populares. Representam até
atributos infernais para toda a vida: "Melhor é chamar, pois, Eva às
quintas ou sétimas filhas, e que Adão sejam os infantes todos que venham
perfazer esses fatídicos números." (p. 40)
7. A
fragmentação do tempo
Da existência
de dois narradores e do facto de o narrador de 1º nível retomar a voz de Germa,
narradora de 2.º nível, para intervir, comentar, aprofundar e conduzir a
narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica com o recurso à
analepse e à prolepse, etc., resulta um discurso fragmentado, descontínuo, digressivo.
7.1.
Analepses e prolepses
- Grande analepse: nascimento
de Quina (p. 9, 3 períodos).
- Analepse dentro dessa
analepse: primeiro encontro entre os pais de Quina (pp. 9-11).
- Prolepse dentro da segunda
analepse: 11 anos depois, dá-se o casamento quase inexplicavelmente secreto dos
pais de Quina, que continuam a viver separados (pp. 11-12).
- Episódio seguinte, dentro da
segunda analepse: Maria foge para casa do marido (pp. 12-13).
- Outro episódio dentro da mesma
analepse: o pai de Quina liga-se a uma amante, Isidra (p. 13).
- Analepse do episódio
anterior: história da mãe e da infância de Isidra (pp. 13-14).
- Analepse do mesmo episódio,
mas posterior à anterior analepse: descrição das circunstâncias em que Isidra conheceu
o pai de Quina (pp. 15-17).
- Regresso à vida conjugal
entre os pais de Quina (pp. )
- Nova analepse: o incêndio na
casa dos pais de Quina (pp. 18-19).
- Grande prolepse: a mãe de
Quina enviuvou há 40 anos, está velha, tonta e confunde um seu filho com o
falecido marido.
7.2. Elipses: "Onze anos depois, casavam." (p. 11)
7.3.
Sumários: "(...) As mulheres perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no
ciúme umas das outras para o privar duma preferência fatal que lhes arrebatasse
as esperanças para sempre. Os seus amores com Maria passaram despercebidos,
tanto ele temia o escândalo das rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas
ameaças." (p. 11).
Classificação de A Sibila
. Romance regionalista (na
linha das novelas de Camilo e Aquilino Ribeiro):
- foca a realidade geo-social
da região do Douro Litoral: referências à paisagem, à flora e fauna, aos
costumes e tradições, às tarefas do campo;
- o vocabulário de certas
personagens;
- a descrição dos interiores;
- a narração de certas
historietas ou anedotas.
. Romance universalista:
- retrata problemas que
ultrapassam o âmbito regionalista, tendo aplicação à escala mundial: o êxodo
dos campos, a antítese campo/cidade, a influência do mito no homem.
Linhas temáticas de A Sibila
1. O mistério do ser humano ou
o vivido e por viver (pp. 88-89, 123-135, 168-169, 170, 181, 248-249)
As duas páginas
finais funcionam como uma espécie de síntese, de desenlace, que já vinha sendo
anunciado e preparado desde o início. Tomando como paradigma uma mulher do
campo que se notabilizou pelas suas qualidades descobertas durante a doença
iniciática, Agustina parece ter desejado radiografar a incomensurabilidade do
ser humano, as suas realizações e as suas frustrações, a sua radical solidão.
Não é verdade
que todos nós nos debatemos com as nossas frustrações?
Não é verdade
que muitos de nós ainda não descobriram as suas potencialidades nem nunca as
chegarão a descobrir?
2. As relações
homem-mulher (pp. 33, 52-53, 63, 86)
A mulher é um
ser realista, intuitivo, responsável e enraizado profundamente na terra; o
homem é um ser volúvel e irresponsável, que procura sem cessar o prazer. Vive
fora de casa e deixa à mulher as responsabilidades de administração e as
tarefas domésticas; por isso, os homens dissipam os bens, enquanto que as
mulheres os conservam, ampliam e transmitem. As mulheres, escravas do lar, parasitas
dos homens, aceitando, resignada e estoicamente, a sua condição de procriar e
conservar, são hostis às inovações, escapam às mudanças do tempo, mantêm as
suas tradições ancestrais e são felizes à sua maneira. Os homens, vivendo fora
de casa, em contacto com as alterações sociais, são marcados pela noção do
tempo.
3. As relações familiares (pp.
20-21, 23, 27, 35, 39, 53-54, 119)
Dado o
casamento ser, regra geral, uma mera união de patrimónios, é natural o casal
não ter um relacionamento humano harmonioso e viver em constante conflito: ou
porque o homem mantém as suas aventuras extraconjugais, ou porque é bronco ou
estúpido, ou porque age segundo estatuto de superioridade. E, como reflexo, as
relações dos pais e dos filhos também não são harmoniosas.
4. A sociedade é marcadamente
matriarcal (pp. 52-53, 81)
Pelo que foi
referido anteriormente, facilmente se pode concluir que as mulheres são
valorizadas no que diz respeito à garantia da sobrevivência dos bens. Os homens
depositam irresponsavelmente nas mãos das mulheres a tarefa do destino da casa.
Maria, Estina e Quina são uma trindade feminina muito valorizada.
5. Visão
negativa de todos os seres humanos
Todos os seres
humanos são negativos, ridículos e mesquinhos. A imagem de Quina, apesar de
tudo, sai amenizada, dadas as suas qualidades já referidas. O narrador expressa
claramente os defeitos dos seres humanos: intrigas, mentiras, crimes,
estupidez, adultérios. Todavia, podemos concluir que esta visão negativa é
exagerada, visto que as virtudes das personagens são devidamente salientadas e
valorizadas.
6. Noção de
propriedade
Entre o povo
aldeão, rural, a propriedade privada é tida como sagrada. Ainda hoje, acontece
que, por reivindicações mesquinhas (por um metro de terreno, por exemplo, se
cometem grandes crimes). Na casa da Vessada há ainda a sua ligação aos laços de
sangue: "A casa da Vessada, com os seus campos, as suas presas e o seu
montado, e que tinham sido pertença de mais de dez gerações dum mesmo ramo,
caberia ao mais nefasto inimigo da sua propriedade, se ele fosse o competente
herdeiro e o continuador." (p. 224). Ou seja, a propriedade é entendida
como herança sagrada a transmitir ao herdeiro seguinte, de geração em geração.
Foi por isso que Custódio não conseguiu ser o herdeiro da casa.
7. Noção de
casamento
O casamento é
visto como forma de enriquecimento e em que o amor é secundário e até
supérfluo: "(...) E o homem que ela amava desistira do casamento, medida
esta tida por demais natural entre o povo do campo, para quem o casamento é
mais do que o imperativo da espécie – é a união de dois patrimónios.
- As mulheres
só gostam de tratantes – dizia ela, como se anunciasse um teorema de
geometria." (p. 39)
Dois episódios
exemplificam esta conceção: o casamento de Estina com Luís Romão desfaz-se por
falta de património, de dote, da parte dela; o mesmo acontece com Quina e Adão,
que, juntamente com o avô, representam o tipo dos agiotas, profundamente
gananciosos e materialistas.
8. Oposição
campo/cidade
O campo é
associado à preparação para a vida, às privações e ao trabalho; a cidade está
ligada à futilidade, à esterilidade, ao ócio, à superficialidade, à vaidade a
ao artificialismo.
Por outro lado,
as personagens que abandonaram o campo e ascenderam à burguesia citadina são
criticadas e até caricaturadas pelo seu ridículo, pela sua desadaptação e pelo
seu postiço. Veja-se o caso de Elisa Aida, de Narcisa Soqueira e das filhas do
tio José.
As pessoas que
permanecem fiéis ao seu meio e aí crescem, como Quina, são louvadas e
elogiadas. A burguesia citadina aparece como uma ameaça ao equilíbrio da vida
rural (pp. 37-38, 51, 65, 72, 102, 122).
À aristocracia
burguesia capitalista, cultural ou intelectual, é oposta e preferida a
aristocracia da terra, propondo o regresso ou a fidelidade aos valores
ancestrais, na tentativa de reencontrar uma pureza original perdida ou uma
estrutura humana e social mais perfeita. (Cf. o diálogo que inicia e finaliza a
obra.)
A cultura
popular manifesta-se nas tradições e modos de pensar do povo, nas crendices e
nos provérbios, ganha projeção pelo seu primitivismo e pela sua ingenuidade. Ao
contrário, a cultura citadina é tida como romântica, desligada do mundo real e
cheia de frustrações. (Cf. pp. 14, 16, 35, 40, 87, 110, 117, 119, 125, 128,
135, 138, 189 e passim.)
Simbologia de A Sibila
* Incêndio:
símbolo da purificação, imprescindível à continuidade da família em lugar
preservado de influências nocivas. Tal como o ouro, o metal precioso, é
purificado pelo fogo, também a casa foi purificada das manchas e impurezas pelo
incêndio, necessário à continuidade da família:
"Um
incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura
primitiva."
(p. 7);
"Acontecera
pouco tempo depois da chegada de Maria." (p. 18).
* Terra/campo:
símbolo da autenticidade e ingenuidade e da fertilidade, da pureza original do
homem, em contraste com a cidade, símbolo do artificialismo, da
degenerescência: "A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático,
o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de
hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendida da personalidade que os
fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações."
(p. 7)
* Cidade:
símbolo da imitação, do superficial, do postiço e do castigo que pesa sobre os
que abandonaram o seu lugar de origem; a esterilidade.
* Pombal:
símbolo do refúgio e da ternura;
-» o pombal (episódio dos
borrachos) # o episódio das rãs = a fragilidade e a ternura de Custódio ≠ a sua
crueldade e a violência primitiva.
* Maçãs
(símbolo bíblico): símbolo da beleza e do encanto femininos (Eva) e da
sabedoria e fecundidade, coexistindo com as sucessivas gerações da família de
Quina, como se se tratasse de um microcosmos feminino, onde existe consonância
entre a existência de pessoas e objetos: "(...) sobrado, onde se
acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de
serrim." (p. 8)
* Rocking-chair:
símbolo quer dos pólos opostos de Quina – ternura e vaidade – , quer do fluir
do tempo, fazendo lembrar o pêndulo do relógio. Pelo seu movimento oscilatório,
e, consequentemente, ascendente, promove a subida espiritual, ou melhor, a
ascese para onde a personagem principal sabia conduzir-se.
* Mancha
cor de sépia: sinal de predestinação: "Era uma menina
de aspeto pouco viável, roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo
uma mancha cor de sépia(...)". (p. 9)
* Número 7:
tradição cultural de antiguidade bastante remota (semana, lua, vida dos gatos,
etc.), apresenta um significado pleno de valor místico, cuja simbologia é
universal como o próprio homem: "Era a segunda filha que vingava num
matrimónio de sete anos(...)" (p. 9)
; "(...) em toda a parte há
sete cores e sete ventos, e o homem é só um." (p. 37)
A este número,
bem como ao 5, convergem numerosas superstições populares. Representam
até atributos infernais para toda a vida: "Melhor é chamar, pois, Eva às
quintas ou sétimas filhas, e que Adão sejam os infantes todos que venham
perfazer esses fatídicos números." (p. 40)
* Esterilidade
da mulher de João: simboliza o efeito do abandono da terra (= fecundidade).
* Casa da
Vessada: local da evocação e da cristalização do tempo; relicário da
memória dos tempos, das gentes e das coisas; local do (re)conhecimento (doença
de Quina) e da revelação; local da oração; casa-templo.
* Sala:
local de reflexão.
* Cozinha:
local de convívio, do contar de histórias, da preparação dos trabalhos.
* Eira:
símbolo da comunhão e da solidão (opção de Quina de não casar face a Adão;
Quina encontra Custódio depois de regressar da casa de Abel).
* Quarto:
espaço de amor; espaço dramático: doença de Quina, êxtase de Quina e morte de
Quina.
* Antigo
quarto de João, que agora era madureiro de peras de inverno (p. 208): a
partida de João para a cidade transformou o seu quarto num espaço útil.
Linguagem e recursos estilísticos de A Sibila
- Linguagem fortemente
analítica do real.
- Uso da hipérbole.
- Linguagem erudita, variada, expressiva
(narrador), mas adequada às personagens, por isso também, por vezes,
proverbial, oralizante.
- Linguagem e vocabulário
referentes à sociedade rural nortenha (entre 1870 e 1950):
. enumeração de utensilagem
rural;
. marcas dialetais;
. estribilhos frásicos individuais;
. aforismos, historietas,
superstições e orações;
. afetividades do campo;
. interjeições nortenhas:
"Biras, biras, birinhas"; "Cantés!"; "Bô!";
"Adei", etc.;
. expressões populares:
"Ela acadima!"; "Não se atrigue..."; "impontar";
"pagar a décima"; etc.
- Níveis de língua: cuidado e
corrente, exceto nos breves discursos das personagens, em que predomina o nível
familiar e o nível popular.
- Uso de estrangeirismos com
intenção crítica.
- Linguagem sentenciosa (aforismos),
reflexiva, elíptica, recorrendo frequentemente ao polissíndeto.
- Linguagem também complexa e antitética
adequada, especialmente, à natureza de Quina.
- Linguagem hipotética
(discurso modalizante), de acordo com a personalidade de Quina, sempre
hipotética (sibilina).
- Utilização frequente do
discurso valorativo, pois, em toda a obra, há valores que se negam e outras que
importa preservar e transmitir.
- Construção periodal estirada,
complexa, muito hipotática ou subordinativa, ritmada na adjetivação e na seleção
cuidada dos verbos, por vezes com recurso ao paralelismo anafórico.
- Uso do pretérito perfeito
(narrativo), do pretérito imperfeito (descritivo), do conjuntivo
(hipotético/modalizante), do pretérito mais-que-perfeito (traduz a mutação retrospetiva).
- Utilização da hipérbole, da
ironia, da metáfora, da comparação, etc.
- A linguagem simbólica
(herança do Simbolismo).
Intencionalidade da obra A Sibila
Os leitores e
críticos não se pronunciam ou divergem na formulação de juízos de valor ou
definição do significado ou intenção de A Sibila.
João Camilo
advoga tratar-se da história de uma família rural, pois esta "ocupa de
facto o primeiro plano da história contada". Daí que tudo aquilo que
atente contra os valores da família e do mundo rurais seja vergastado por um
sarcasmo impiedoso.
Ao longo da
obra vai-nos sendo transmitida, nomeadamente através de Quina, a ideia de que
todos aqueles (filhos de lavradores ricos) que abandonaram o campo e atingiram
lugares de prestígio ou poder são traidores da verdadeira aristocracia – a
aristocracia da terra. Sejam eles Bernardo, ou mesmo Germa, o médico que vem
ver Quina (pertencente a uma "raça de proletários intelectuais que
distinguem por si só uma época", oriundo de uma família em que "havia
vários médicos, engenheiros, doutores de leis e um ou outro licenciado em
Filosóficas, e que viviam mais ou menos dos expedientes das suas
carreiras") ou qualquer personagem intelectual ou intelectualizado que se
tenha guindado a uma posição de relevo através da cultura.
Todavia, A
Sibila não admite uma interpretação que se afigura demasiado esquemática e
simplista. A obra é a história de uma família rural em decadência desde o
último quartel do século XIX até meados de século XX, representada por um
espaço (a Vessada e a comunidade rural em que se insere) e uma figura mítica,
herdeira de uma tradição popular de mistério, figura de aldeia carismática, que
enfrentou e venceu dificuldades e frustrações para se impor e conseguir
riqueza, poder e veneração de todos. Há uma atitude crítica em relação aos que
traíam as origens, se aburguesaram e vivem na cidade, mas, além disso, a obra
retrata o combate humano de autoafirmação, ultrapassagem de barreiras,
substituição de objetivos, quando os iniciais e preferidos se nos escapam,
mesmo com alguma ou muita mesquinhez, primitivismo ou ingenuidade à mistura.
As relações entre a personagem narradora e o narrador omnisciente
Germa, a
personagem que é simultaneamente narradora, e o narrador omnisciente mantêm
relações ao longo de todo o romance que Maria Alzira Barahona (Para um
Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português Contemporâneo) explicita
do seguinte modo:
O leitor é introduzido na ação mediante a fala de uma
personagem (Germa), que pressupõe um diálogo e tem como assunto a história de
uma velha casa. A réplica vem da parte de Bernardo: meia dúzia de palavras
cortadas por um parêntesis da autora que assim as faz acompanhar da descrição
dos gestos de quem fala. E a réplica retoma-se… para ser imediatamente
atalhada pela voz da autora, uma terceira pessoa que até então se mostrara testemunhal
e que agora, numa atitude omnisciente, começa a discorrer sobre a sua
personagem. E o leitor, levemente descoroçoado por não continuar a tomar conhecimento
da conversa, procura compensar-se com as informações sobre Bernardo Sanches.
Tem então o primeiro sobressalto: de súbito a voz da autora irrompe, fazendo
ouvir uma reflexão própria. E o leitor (…) olha, desconfiado, esta primeira
pessoa que se afirma despudoradamente através de um presente verbal. Quando
prossegue o seu contacto com a personagem, através do que dela lhe comunica a
autora, nova surpresa o detém: as informações, em que depositava a cega confiança
devida ao autor omnisciente, são referidas como simples pensamento de Germa.
O leitor procura sossegar-se e atribui a mesma dose de conhecimento a autor e
personagem, o que, no caso, seria possível. Mas afinal não é isso que se
verifica porque, meia dúzia de linhas adiante, a autora decide falar de
Germa, sem qualquer indicação gráfica que permita a mudança; e é seguramente
a autora, pensa o leitor, porque Germa não poderá falar de si própria na 3.ª
pessoa. E sente-se confundido ao fim de uma página de leitura.
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A tradição oral do narrador de A Sibila
A obra
inicia-se com o diálogo entre Germa e Bernardo Sanches e termina com o mesmo
diálogo. Tal situação parece filiar o romance numa tradição de narrativas
orais, o que, aliás, é favorecido pelo narrador de 1º nível cuja opção foi
contar e resumir em vez de mostrar e de construir cenas. A sua voz é
omnipotente e omnipresente, estabelecendo a unidade entre personagens e
episódios díspares.
Narração com base na memória
O romance abre
com o diálogo entre Germa e o seu primo Bernardo Sanches sobre a casa onde se
encontram e a sua transmissão de geração em geração. Mas depressa Germa já
quase não o escuta porque "(...) subitamente o ambiente ficara repleto
doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, onde pairava um
cheiro de priogana e de maçã, se enchia de uma expressão humana e calorosa,
como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde vivem, e o
seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação." (p. 9)
É esta evocação que vai dar lugar à
narração. Entre o início da evocação e fim do universo evocado passam-se cem
anos. Toda a narrativa é formalmente apresentada como uma longa analepse na
memória de Germa.A opção do narrador de A Sibila
O estatuto do
narrador condiciona sempre a sua narração. Se a opção for por mostrar os
acontecimentos, os locais em que se dão e as personagens que os realizam,
teremos uma narrativa que privilegia as cenas; o leitor como que vê o que se
passa como num palco ou num filme. Se a opção for por contar, a sua voz, será
omnipotente e omnipresente, esperando que o leitor aceite a boa fé dessa voz,
que diz o que lhe apetece e quando lhe apetece. Só resta ao leitor aceitar ou
recusar, porque não vê.
Ora em A Sibila, o narrador
assemelha-se a um contador de histórias, privilegiando em absoluto o contar.
Daqui resulta o facto de se assistir a uma acumulação de episódios, digressões
sucessivas e a inexistência de uma intriga à maneira tradicional.O narrador de A Sibila
. Germa:
narradora participante homodiegética.
A Sibila
é uma longa retrospetiva da vida de uma família feita por uma personagem
secundária, Germa, que, sentada na velha rocking-chair de sua tia Quina,
já falecida, a evoca com nostalgia, apesar da incompreensão e dos atritos que,
muitas vezes, ensombraram as suas relações. A obra é um longo devaneio de Germa
que começa e termina no mesmo espaço (a sala da casa da Vessada), com um
diálogo entre ela e Bernardo Sanches.
. Narrador (não
participante) omnisciente: Germa é frequentemente substituída por um narrador
omnisciente, isto é, que sabe mais do que as personagens e se desloca
facilmente no tempo e no espaço.
Este narrador
dirige-se ao leitor (narratário) num estilo familiar, por vezes irónico, até
humorístico, estabelecendo a ligação entre episódios e personagens díspares.
Parece não se preocupar com o futuro da narrativa ou sua progressão dramática,
derivando, frequentemente, para digressões que só aparentemente são desencadeadas
pelos interesses ou intenções momentâneas da narração. De facto, há uma relação
implícita entre os diversos episódios. Existe uma preocupação de ultrapassar o
momentâneo e captar o eterno, o homem no seu combate de sempre, dilacerado por
contradições, minado pelo vício, mas sempre apregoando virtudes.
Em suma, o
narrador omnisciente manifesta-se também como omnipotente, conduzindo a
narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica, recorrendo à
analepse e à prolepse, e fazendo com que a obra não tenha uma intriga, mas uma
sobreposição de inúmeras histórias curtas. A minúcia com que os gestos ou
comportamentos das personagens são descritos serve o objetivo profundo da
narração: induzir o eterno e o todo através da acumulação do efémero e do
fragmentário.
Tempo-duração em A Sibila
Agustina segue
a noção do tempo como duração: sentimento da continuidade da vida, sentimento
da continuidade na mudança, sentimento de eternidade.
Segundo
Bergson, o tempo-duração é uma forma de sucessão qualitativa dos nossos
fenómenos da consciência; o nosso eu deixa de fazer a separação entre o
estado do presente e os estados anteriores.
Fora de nós, o
movimento não é contínuo, mas só uma sucessão de posições: pontos-instantes.
Por isso, a continuidade do tempo ou a duração é feita pela síntese da memória.
O processo de
criação processa-se pela memória, observando-se um jogo entre o imperfeito, o
mais-que-perfeito, o perfeito e o presente, a ausência de verbos, a
substantivação do infinitivo e o uso repetido do adjetivo.
Tempo e intemporalidade em A Sibila
Um aspeto que
confere ao romance um carácter universal é a linha da intemporalidade.
Assim, o(a) narrador(a)
faz sistematicamente um percurso de vai-e-vem: presente-passado-presente.
A propriedade
passa de geração em geração: "A casa da Vessada, com os seus campos, as
suas presas e o seu montado, e que tinham sido pertença de mais de dez gerações
dum mesmo ramo, caberia ao mais nefasto inimigo da sua propriedade, se fosse
ele o competente herdeiro e o continuador." (p. 224)
As pessoas e os
objetos permanecem na memória e podem ser constantemente recordados como se lê
neste romance.
O balanço
contínuo da rocking-chair parece indicar um movimento intemporal: na
mesma cadeira, sentaram-se outras pessoas, na mesma cadeira, sentar-se-ão ainda
outras. É a vida humana na sua dimensão eterna.
Estes dados são
indicadores do que escapa às contingências temporais para se projetar no
horizonte ilimitado da intemporalidade.
Tempo e transcendência em A Sibila
Há, pelo menos,
dois aspetos importantes na obra: as orações de Quina e a referência frequente
à morte. Quanto às orações, Quina ultrapassa a dimensão humana e entra na
esfera da dimensão sobre-humana ou na linha dum tempo diferente, que lhe causa
medo e sensações estranhas e novas. São momentos fugazes que não a deixam voar,
não lhe permitem agarrar a chama de Prometeu, porque as coisas terrenas
pesam-lhe como chumbo. Atingiria plenamente a transcendência se o seu
misticismo se purificasse dos interesses imediatos. De qualquer forma, o
romance constrói a ponte entre a imanência e a transcendência.
Após a sua
morte, permanece a herança, mas mais do que material ou temporal, o legado de
Quina a Germa é espiritual. Aquilo que mais inquieta a herdeira não são os bens
materiais que a tia acumulou à custa de muito sacrifício e habilidades ou
esperteza e lhe deixou em testamento, para que a casa permanecesse na família,
no sangue. Intelectual burguesa, civilizada nascida na cidade e cuja educação e
personalidade foram muito influenciadas por Quina e pelo ambiente rural da
Vessada, reflete sobre o passado, numa altura em que o discurso snob de
Bernardo a aborrece, e interroga-se sobre p futuro. O importante está para além
do tempo, não é controlado pelos homens, "é todo o destino". Estamos
no domínio da transcendência, de tudo aquilo que ultrapassa os limites e
poderes do homem e que, todavia, influencia todo o seu comportamento, as suas
"aspirações".
Quanto à
questão da morte, devemos procurar as razões que levam o(a) narrador(a) a
apresentá-la como algo de natural, que não provoca traumas nem angústias. Uma
das respostas possíveis encontra-se no facto de que tudo ou quase tudo se passa
numa aldeia, no campo, onde as pessoas convivem com essa dimensão mais
naturalmente: os animais nascem e morrem; é o seu ciclo biológico. As árvores
da mesma maneira. Os seres humanos também. Mas com estes a morte é acompanhada
de fenómenos que a ligam ao transcendente, pois é interpretada como a saída do
efémero, do temporal, do imanente, e a entrada na outra dimensão, numa dimensão
que os transcende. Atente-se na naturalidade da morte de Quina (e já muito
antes da sua mãe): num primeiro momento, ela teve um êxtase em que se viu
festivamente integrada no cosmos; num segundo e último momento, depois duma
longa evocação de todos os seres que lhe foram queridos ou com quem mais de
perto se relacionou, ela, deitada na sua solidão, escuta os passos da
"irmã" morte que a vem chamar para outra dimensão. (Cf. pp. 199-200;
207-212; 233-234)
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