Português: António Ramos Rosa
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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa


            Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.

            Na primeira estrofe, o sujeito poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo em que vive, que o oprime.

            Diariamente reduzida a uma coisa, um objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”) – a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito, aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição, nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma realidade que não o deixa respirar.

            A cidade, percecionada, pois, como extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e “sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.

            No final do dia, espera-o um quarto, uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia de quem pensa de modo diferente.

            Habituado a ser dirigido pelo “chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.

            No início da segunda estrofe, autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.

            Isto significa que existe um desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário. De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta de empregado”.

            Apesar de tudo, é no local de trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora), atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do “Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal encarcerado, tal como ele.

            A realidade é que, da janela do escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o quintal e distrai o dono com o seu canto.

            Domesticado como um animal numa jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso. O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver” por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do papel.

            A divisão interior que o conflito entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si mesmo.

            Cansado de não viver, mas da vida desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por razões diferentes.

            Na solidão do quarto, o funcionário “soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.

            Em suma, na segunda estrofe, o «eu» poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de “poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma lírica não participa.

            Apesar da sua condição de funcionário que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”, “namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto, beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu» faltam.

            No entanto, o sonho de libertação é impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o «eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”, sem as quais a vida se resume a nada.

            Em suma, neste poema de António Ramos Rosa, o poeta aborda a temática da opressão da sociedade de meados do século XX, em pleno Estado Novo, e denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores estatais, manifestada na alienação que o trabalho rotineiro impõe a quem dele precisa para (sobre)viver, que se manifesta na perda da individualidade decorrente do esmagamento do interior do sujeito poético, tratado como uma máquina ou peça dela. A perda dessa interioridade é denunciada nos versos que exprimem o estado de confusão mental de um funcionário que, após o final de um dia de trabalho, projeta no espaço físico que o rodeia os sentimentos e emoções que tem dentro de si e que é a realidade desconfortável que lhe resta, depois de destruída a sua humanidade numa atividade profissional que assenta na desvalorização do pensar, do sentir, do sonho e da liberdade individual.

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