Português: 9.º Ano
Mostrar mensagens com a etiqueta 9.º Ano. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 9.º Ano. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 5 de março de 2024

Análise do episódio das Despedidas em Belém

 
① Síntese dos acontecimentos que medeiam o episódio de Inês de Castro e o da Praia das Lágrimas
 
    Vasco da Gama continua a relatar ao rei de Melinde episódios da História de Portugal. Assim, na sequência da narração da Crise de 1383-1385, que levou D. João I ao trono de Portugal, Gama narra a batalha de Aljubarrota, que contou com muitos portugueses do lado castelhano. De seguida, relata acontecimentos do reinado do Mestre de Avis, nomeadamente a conquista de Ceuta, seguindo-se os reinados de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II. Chegado ao reinado de D. Manuel III, narra o sonho profético do rei, no qual dois rios (o Indo e o Ganges) lhe anunciam o nascimento de um novo império.



Contextualização

    A pedido do rei de Melinde, Vasco da Gama narra-lhe a História de Portugal. Neste passo da obra, vai contar a partida da armada de Lisboa em direção à Índia, por meio de uma analepse. Convém relembrar que, de acordo com as regras da epopeia clássica, a narração inicia-se «in media res», isto é, quando a viagem já vai a meio, ou seja, ao largo de Moçambique. Os acontecimentos que medeiam entre a partida de Lisboa e o ponto em que se encontram serão narrados posteriormente através de uma analepse, que se estende do Canto III ao V e que constitui a resposta ao pedido do monarca. Esta analepse O episódio só surge neste momento, dado que está inserido na sequência cronológica da História de Portugal que Vasco da Gama está a narrar ao rei de Melinde.
    Neste episódio, Camões destaca a dor, o sofrimento e o sacrifício das pessoas envolvidas direta (os marinheiros) ou indiretamente (familiares e amigos) na empresa dos Descobrimentos. O Poeta exprime esses sentimentos através da narração que Vasco da Gama faz ao rei de Melinde, narrando, como atrás referido, a partida para a viagem inaugural à Índia.
    Vasco da Gama relata o dia em que o povo da cidade de Lisboa se juntou na praia de Belém para assistir à partida das naus e para se despedir dos amigos e parentes que iam embarcar. Ele e os seus companheiros de viagem saíram em procissão da ermida, passando entre a “gente da cidade” – homens e mulheres, velhos e crianças, mães e esposas. Para diminuir o sofrimento dos que ficavam e dos que partiam, Vasco da Gama determinou que o embarque se fizesse sem as habituais despedidas.

    O tema deste episódio é, portanto, a partida dos marinheiros da praia do Restelo e a despedida dos seus familiares e amigos.


 
Estrutura externa: Canto IV, estâncias 84 a 93.


 
④ Estrutura interna

- Narração: plano da Viagem.

- Narrador: Vasco da Gama, um narrador na primeira pessoa, autodiegético, pois é em simultâneo personagem interveniente na ação.

- Narratário: Rei de Melinde (a quem, a seu pedido, Vasco da Gama conta a História de Portugal).



Estrutura do episódio

1.ª parte – Os preparativos da viagem (est. 84 a 87)

1. Localização da ação:
. no espaço:
“ínclita Ulisseia” (perífrase e metonímia), isto é, Lisboa (v. 1) – a “ínclita Ulisseia” é uma alusão a Ulisses, o célebre criador do cavalo de Troia que, durante a viagem de regresso a sua casa, em Ítaca, teria aportado em Portugal e fundado a cidade de Lisboa, à qual deu o seu nome;
junto ao estuário do Tejo, porto de Lisboa, em Belém, praia do Restelo: os parênteses dos versos 3 e 4, onde estão presentes o hipérbato, a perífrase e a antítese entre «salgado» e «doce» e a metonímia (Neptuno = mar), precisam o local onde decorre a ação – junto ao estuário do Tejo (o estuário é uma zona de transição entre o rio e o mar, ou seja, onde existe uma mistura de água doce do Tejo com a água salgada do mar;

. no tempo:

- reinado de D. Manuel I;

- presente, 8 de julho de 1497, dia da partida da armada de Vasco da Gama rumo à Índia.


2. Ambiente de alvoroço: trata-se do alvoroço geral dos últimos preparativos para o embarque.

 
3. Estado de espírito / Caracterização dos marinheiros (“gente marítima” – perífrase) e dos soldados (“a de Marte” – perífrase):


Continuação da análise aqui: despedidas-em-belem.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Mito pelásgico da criação


    O mito pelásgico da criação é uma versão da origem do mundo e dos humanos de acordo com os pelasgos, um povo que habitava a Grécia antes do surgimento dos gregos.

    De acordo com esse mito, no início havia apenas o Caos, uma massa informe e escura. Dele brotou, nua, Eurínome, a deusa de todas as coisas, que se separou do Caos e criou o Oceano. De facto, não vendo substância em seu redor onde formar os pés, apartou o mar do céu, dançando solitária sobre as suas ondas. Ao dançar em direção a sul, gerou o Vento Norte (que se soltava por trás dela a cada passo que dava). Movendo-se, ondulante, em torno dele, estreitou-o nos braços, deixou-o deslizar-lhe por entre as mãos e, subitamente, viu diante de si Ofião, a grande serpente. Eurínome continuou a dançar, com crescente frenesim, para se aquecer, o que levou Ofião, lúbrico de natureza, a enrolar-se naqueles membros divinos e unir-se-lhe, cheio de desejo. Daí em diante, o Vento Norte, também chamado Bóreas, fecunda e, porque assim é, as éguas oferecem as suas garupas ao vento e geram potros sem a necessidade de um garanhão. O mesmo sucedeu para que Eurínome ficasse pejada.

    Abra-se aqui um parêntesis para observar o seguinte. Este mito enquadra-se ou reflete um sistema religioso arcaico, no qual não existem deuses nem sacerdotes, surgindo-nos apenas uma deusa universal e as respetivas sacerdotisas. Quem domina são as mulheres, cabendo ao homem apenas o papel de sua vítima amedrontada; os conceitos de pai e de paternidade são praticamente inexistentes, ou pelo menos não eram objeto de veneração, já que se atribuía a conceção ao vento, à ingestão de feijões, ou mesmo a um inseto, engolido por incauto. Na esteira destes princípios, as heranças e a sucessão eram transmitidas pelo lado materno. Por seu turno, as serpentes eram encaradas como incarnação dos mortos. Neste contexto, Eurínome, “a grande nómada”, seria o título atribuído à deusa enquanto lua visível, e que entre os Sumérios tinha o nome de Iahu, a “pomba exaltada”, honra que mais tarde passaria para Jeová, enquanto Criador. E é efetivamente sob a forma de pomba que Marduk a divide simbolicamente em duas, no Festival da Primavera babilónio, quando inaugurava a nova ordem do mundo.

    Findo o parêntesis, retornemos ao mito. Eurínome transformou-se numa pomba e pousou sofre Ofião, que se enrolou no seu corpo e a fecundou, indo ela incubar sobre a superfície das águas e, cumprido o tempo, pôs o Ovo Universal. Por ordem dela, Ofião enrolou-se sete vezes em torno desse ovo, que se rompeu e dividiu em dois. Dele nasceram, de forma desordenada, todas as coisas: o sul, a lua, as estrelas, os planetas, a terra, as plantas, os animais e os seres humanos.

    Posteriormente, Eurínome e Ofião foram morar para o Monte Olimpo e reinaram sobre a criação, porém ele tornou-se arrogante e quis igualar-se-lhe, ao dizer-se o autor do Universo. Ela castigou-o, calcando-lhe a cabeça com o pé e banindo-o do Olimpo para as profundezas do Oceano.

    Ofião, ou Bóreas, é o demiurgo-serpente das mitologias hebraica e egípcia, o que se reflete no facto de a imagem da deusa acompanhada por ele se encontrar na arte mediterrânica primitiva. Os pelasgos – os nascidos-da-terra –, que reivindicavam ter vindo dos dentes de Ofião, pode ser o povo, na sua origem, autor das pinturas do período neolítico, que atingiu a Grécia continental a partir da Palestina por volta do ano 3500 a.C., e que os primitivos Heládicos – imigrantes vindos da Ásia Menor através das Cíclades – foram encontrar ocupando o Peloponeso setecentos anos mais tarde. Por outro lado, o termo «pelasgos» acabou por se aplicar a todos os habitantes pré-helénicos da Grécia. É por isso que Eurípides afirma que os pelasgos adotaram o nome de «Dânaos» depois de Dânao ter chegado a Argos acompanhado pelas suas cinquenta filhas. Estrabão, por seu turno, afirma que os habitantes em redor de Atenas eram conhecidos pelo nome de Pelargi («cegonhas»), provavelmente devido ao facto de estas serem as suas aves totémicas.

    Depois se expulsar Ofião do Olimpo, Eurínome passou a governar sozinha o universo, auxiliada pelas suas ninfas, as Cárites. A seguir, criou as sete potências planetárias, pondo à cabeça de cada uma delas um Titã ou uma Titânide: Teia e Hiperião reinavam sobre o Sol; Febe e Atlas sobre a Lua; Dione e Crio sobre o planeta Marte; Métis e Ceos sobre Mercúrio; Témis e Eurimedonte sobre o planeta Júpiter; Tétis e Oceano sobre Vénus; Reia e Cronos sobre Saturno.

    É possível que os Titãs («senhores») e as Titânides, que tinham as suas réplicas na astrologia primitiva da Babilónia e da Palestina, onde vamos encontrar também divindades a governar os sete dias da semana sagrada planetária, tenham sido introduzidos pelos Cananeus ou pelos Hititas, que se haviam estabelecido no Istmo de Corinto nos inícios do segundo milénio a.C., ou mesmo pelos Heládicos primitivos. No entanto, quando o culto titânico é abolido na Grécia e que a semana de sete dias deixou de figurar no calendário oficial, alguns autores passam a referir-se a doze, talvez para corresponderem aos signos do Zodíaco. Quanto aos seus nomes, há versões contraditórias. Na mitologia babilónica os governantes dos planetas da semana, nomeadamente, Samas, Sin, Nergal, Bel, Beltis e Ninibe, eram todos varões, à exceção de Beltis, a deusa do amor. Por outro lado, na semana germânica, que os Celtas terão ido buscar ao Mediterrâneo Oriental, o domingo, a terça e a sexta eram governados por Titânides, contrapondo-se aos restantes dias, sob o domínio dos Titãs. Quando o sistema chegou à Grécia, foi decidido acasalar cada uma umas Titânides com um Titã, para salvaguardar os interesses de Níobe. Passado pouco tempo, dos catorze passou-se para sete potências planetárias: o Sol, para a iluminação; a Lua, para a magia; Marte, para o crescimento; Mercúrio, para a sabedoria; Júpiter, para a lei; Vénus, para o amor; e Saturno, para a paz. Na Grécia Clássica, os astrólogos seguiram o mesmo princípio dos babilónios, pelo que atribuíram os planetas a Hélio, Selene, Ares, Hermes (ou Apolo), Zeus, Afrodite, Cronos, cujos equivalentes latinos atrás referidos estão na base da nomenclatura dos dias da semana no francês, italiano e castelhano.

    Zeus devorou os Titãs e, com estes, ele próprio, na sua forma original.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Apolo


    Do gr., em jogo de Platão, «o purificador das almas»; com o epíteto de Febo, «brilhante, luminoso», Apolo era um dos 12 deuses olímpicos, filho de Zeus e Letona e irmão gémeo de Diana, nascido de sete meses, com a ajuda de Ilítia, na ilha Ortígia ou Astéria, depois chamada Delos, «visível». Quando nasceu, Zeus ofereceu-lhe uma mitra de ouro, uma lira e um carro puxado por cisnes.
    A história de Apolo é confusa. Os Gregos apresentam-no como sendo filho de Leto, uma deusa conhecida no sul da Palestina com o nome de Lat, mas simultaneamente ele foi um deus dos Hiperbóreos («os homens que viviam para lá do Vento do Norte»), que Hecateu (in Diodoro Sículo, II, 47) identificou com os britânicos, embora Píndaro os considerasse líbios. Delos era o centro desse culto hiperbóreo, que irradiou para sudeste até à Nabateia e à Palestina, para noroeste até à Grã-Bretanha, passando por Atenas.
    Os deuses, porém, crescem depressa; Témis alimentava-o com néctar e ambrósia, por isso, ao quarto dia de vida, já estava a pedir que lhe dessem um arco e flechas, pedido a que Hefesto acedeu prontamente. Na posse dos objetos, saiu de Delos e dirigiu-se diretamente para o Monte Parnaso, onde a serpente Píton, inimiga da sua mãe, vivia escondida numa caverna e devastava a região, e aí feriu-a gravemente com as suas flechas. Píton fugiu para o Oráculo da Mãe-Terra em Delfos, cidade que tem este nome em honra do monstro Délfine, o companheiro de Píton, porém Apolo seguiu-a até ao santuário e matou-a.
    A Mãe-Terra foi queixar-se de tal afronta junto de Zeus, que, além de ordenar a Apolo que fosse ao vale de Tempe purificar-se, instituiu os Jogos Píticos, em honra de Píton, aos quais Apolo devia presidir em sinal de penitência. No entanto, este último ignorou a ordem de Zeus para visitar Tempe e preferiu, em vez disso, ir purificar-se a Egialeia, na companhia de Artemisa, contudo, como também este local não lhe agradou, dirigiu-se para Tarra, em Creta, onde o rei Cermanor se encarregou da cerimónia. A morte da serpente (há versões que falam num dragão) e a purificação de Apolo eram celebrados de oito em oito anos.
    De regresso à Grécia, Apolo foi procurar Pã, o velho e desacreditado deus da Arcádia, de pés de bode, adulou-o e persuadiu-o a revelar-lhe a arte da profecia, após o que se apossou do Oráculo de Delfos, forçando a sua sacerdotisa, a pitonisa, a ficar a seu serviço. Sabendo da história, Leto encaminhou-se para Delfos com Artemisa, onde se isolou por algum tempo num bosque sagrado, para cumprir um rito pessoal. Todavia, as suas preces foram interrompidas pelo gigante Títio, que a tentou violar, no entanto Apolo e Artemisa, ouvindo os gritos de Leto, acorreram rapidamente e mataram o gigante com uma saraivada de flechas, gesto que agradou a Zeus, que era pai de Títio. No Tártaro, este foi colocado no chão, completamente esticado para que o supliciassem, braços e pernas bem fixos ao solo, o corpo cobrindo a bonita área de nove acres, e dois abutres devorando-lhe o fígado.
    Passado algum tempo, Apolo matou o sátiro Mársias, um dos que seguiam a deusa Cibele: um dia, Atena fez uma flauta de dois tubos dos ossos de um veado e foi tocá-la num banquete onde estavam presentes vários deuses. Às tantas, reparou que Hera e Afrodite se riam com o rosto escondido atrás das mãos, enquanto as demais divindades lhe pareciam deliciadas com a música que ela tocava. Assim, decidiu retirar-se para um bosque na Frígia, pegou na flauta e contemplou-se nas águas de um regato, enquanto tocava. Apercebeu-se, nesse instante, do ar ridículo e cómico com que ficava ao tocar o instrumento, com as faces deformadas e o rosto arroxeado, por isso deitou fora impetuosamente a flauta e lançou uma maldição sobre quem a apanhasse.
    A vítima - inocente - dessa maldição foi Mársias, que tropeçou na flauta, colocou-a na boca e começou a tocá-la. Assim, atravessou a Frígia, atrás de Cibele, fazendo as delícias dos camponeses ignorantes com que se cruzava no caminho e que afirmavam que nem o próprio Apolo seria capaz de tocar melhor, na sua lira. Mársias cometeu o erro de não os contradizer, o que provocou a ira de Apolo, que o desafiou para um concurso: aquele que vencesse teria o direito de infligir ao vencido o castigo que mais lhe agradasse. Mársias aceitou, e Apolo escolheu as musas para júri. Iniciado o concurso, a competição tendia para o empate, dado que às musas tanto agradava o instrumento de um como do outro, quando Apolo sugeriu a Mársias que o oponente virasse o instrumento de pernas para o ar e tocasse e cantasse ao mesmo tempo. Sucedeu que o desafio constituía uma armadilha, pois era impossível executá-lo com a flauta, ao contrário da lira. Pelo contrário, Apolo inverteu a lira e entoou uns hinos maravilhosos em honra dos deuses do Olimpo e, dessa forma, venceu a competição. Posteriormente, Apolo fez cair sobre o adversário uma vingança cruel: esfolou-o vivo e cravou a pele num pinheiro (ou, segundo outras versões, num plátano), junto à nascente do rio que hoje possui o seu nome.
    Mais tarde, Apolo venceu um segundo concurso musical, ao qual presidiu o Rei Midas, tendo enfrentado e superado Pã, tendo-se tornado, a partir daí, o incontestado e conhecidíssimo deus da Música. Por outro lado, desde então o deus passou a animar todos os banquetes das divindades com o som melodioso da sua lira de sete cordas. Outras das suas funções foi guardar em tempos os rebanhos que os deuses possuíam na Piéria, tarefa que, mais tarde, foi delegada em Hermes.
     As vitórias de Apolo sobre Mársias e Pã assinalam as conquistas da Frígia e da Arcádia pelos Helenos, com a consequente substituições, naquela região, dos instrumentos de sopro por instrumentos de cordas, o que apenas não ocorreu no seio do campesinato. É possível que o castigo de Mársias esteja relacionado com o ritual de arrancar a pele ao rei sagrado - como Atena retirou a Palas a sua égide mágica - ou com a extração de toda a casca de um rebento de amieiro para fazer uma flauta de cana pastoril, personificando o amieiro um deus ou semideus. Tanto os Gregos dórios como os Milésios reivindicavam ser Apolo um seu antepassado, ao qual prestavam honras especiais. Os Coribantes, executores das danças das festividades do solstício de inverno, aparecem como filhos de Apolo e da Musa Tália pelo facto de ele ter sido o deus da Música.
    Por causa da sua beleza e estatura e não obstante ter-se sempre recusado a ligar-se pelo casamento a alguém, apaixonou-se e seduziu várias deusas e mortais, tendo gerado vários filhos. Com Ftia, teve Doro e os seus irmãos; da musa Tália, teve os Coribantes; de Corónis, Asclépio; de Ária, Mileto; de Cirene, Aristeu; de Urânia, Lino e Orfeu, etc. Amou igualmente alguns jovens, como, por exemplo, Jacinto e Ciparisso, que se transformaram, aquele em jacinto, este, em cipreste.
    Seduziu também a ninfa Dríope, que pastoreava os rebanhos do pai, no Monte Eta, na companhia das suas amigas, as Hamadríades. Apolo disfarçou-se de tartaruga, com a qual todas elas muito brincaram, e, quando Dríope o aconchegou junto ao seio, transformou-se numa serpente sibilante que assustou e fez fugir as Hamadríades, aproveitando-se ele disso para possuir a ninfa. Esta deu-lhe Anfisso, que fundou a cidade de Eta e construiu um templo para o pai, onde Dríope serviu como sacerdotisa durante algum tempo, até um dia as Hamadríades, pela calada, a afastaram e no seu lugar colocaram um choupo.
    Esta sedução assinala talvez a substituição de um culto do carvalho por um culto de Apolo, ao qual era consagrado o choupo, o mesmo se aplicando à sedução de Ária. O disfarce de tartaruga é uma referência à lira que tinha comprado a Hermes. O nome de Ftia sugere que esta era a expressão outonal da deusa, e quanto à sua pretensão, sem êxito, à posse de Marpessa («a que agarra»), ela reporta-se, aparentemente, ao facto de Apolo não ter conseguido apoderar-se de um santuário Messénio: o da deusa dos Cereais sob a forma de Porca. Por outro lado, a situação do deus ao serviço de Admeto de Feras pode eventualmente estar relacionada com um acontecimento histórico: o descrédito em que incorrem os sacerdotes de Apolo como forma de punição pelo massacre de uma corporação de ferreiros pré-helénicos que desfrutava da proteção de Zeus.
    No entanto, nem sempre Apolo foi sucedido no amor. Certa vez tentou roubar Marpessa a Idas, mas esta manteve-se fiel ao marido. Noutra ocasião, perseguiu Dafne, a ninfa da montanha, sacerdotisa da Mãe Terra e filha do rio Peneu, na Tessália; porém, no momento em que estava prestes a agarrá-la, ela chamou em seu auxílio a Mãe Terra que, num instante, como que por magia, a levou até Creta, onde passaram a chamar-lhe Pasífae. No seu lugar, a Mãe Terra ergueu um loureiro, e das suas folhas Apolo fez uma coroa para se consolar.
    A sua tentativa junto de Dafne não foi fruto de um mero e súbito impulso. De facto, Apolo tinha-se enamorado dela já há muito tempo, tendo mesmo provocado a morte do seu rival Leucipo, irmão de Enómano, que se havia disfarçado de mulher para se misturar nas orgias a que Dafne se entregava na montanha. Sabendo disto, porque tinha o poder da adivinhação, Apolo aconselhou as ninfas a banharem-se completamente nuas, para se certificar de que todas elas eram mulheres e, assim, descobriu a impostura de Leucipo, que as ninfas dilaceraram em pedaços. Corónis («corvo»), mãe de Asclépio, da sua união com Apolo, seria provavelmente um dos títulos de Atena, contodo os atenienses recusaram-se sempre a atribuir filhos a Atena, alterando o mito.
    Aparentemente, este episódio de Apolo perseguindo Dafne, a ninfa da montanha, filha do rei Peneu e sacerdotisa da Mãe Terra, refere-se à tomada de Tempe pelos Helenos, região onde a deusa Dafoene (a «sanguinária») era venerada por um colégio de Ménades orgiásticas que mascavam folhas de louro. Após o desmembramento deste colégio - a narrativa de Plutarco dá a entender que as sacerdotisas teria fugido para Creta, onde a deusa-Lua tinha o nome de Pasífae - Apolo apodera-se do loureiro, cujas folhas, a partir daí, apenas à Pitonisa é permitida a sua utilização. Em Tempe e na Figália, é provável que Dafoene tenha sido uma deusa com cabeça de égua; Leucipo («cavalo branco») era o rei sagrado do culto local do cavalo, todos os anos dilacerado em pedaços pelas mulheres enfurecidas que se banhavam, para se purificarem, após a consumação do crime e não antes.
     Como referido anteriormente, outra das paixões de Apolo foi Jacinto, um príncipe espartano, pelo qual se enamorara o poeta Támiris, o primeiro homem a cortejar alguém do mesmo sexo, bem como Apolo, o primeiro deus a quem tal sucedia. Neste caso, o deus não viu no rival alguém que fosse grande rival, no entanto não deixou de o afastar do seu caminho. De facto, tendo ouvido dizer que ele se gabava de cantar melhor do que as próprias Musas, Apolo contou-lhes, e elas imediatamente roubaram a Támiris a vista, a voz e a memória dos seus arpejos. Mas este não era o único rival do deus. Com efeito, o Vento do Ocidente também se apaixonara por Jacinto, tornando-o loucamente ciumento de Apolo, e um dia, quando este ensinava ao jovem como lançar o disco, o Vento do Ocidente, apanhando o disco no ar, arremessou-o contra a testa de Jacinto, ferindo-o de morte. Do seu sangue brotou a flor do mesmo nome, sobre a qual ainda estão gravadas as suas iniciais.
    Na época clássica, as artes (a música, a poesia), a filosofia e as ciências em geral estavam sob a alçada e a proteção de Apolo. Inimigo confesso da barbárie, simbolizava a moderação, associando-se inclusive as sete cordas do seu alaúde às sete vogais do alfabeto grego, consideradas de significado místico e usadas na música de fins terapêuticos, Finalmente, e porque era identificado com o jovem Hórus, um conceito solar, foi venerado como sendo o sol, cujo culto entre os coríntios tinha sido substituído pelo de Zeus solar. Por outro lado, a sua irmã, Artemisa, foi identificada com a Lua.
    O episódio de Jacinto parece, à primeira vista, não passar de uma singela história sentimental que teria como propósito explicar as características do jacinto grego, contudo ele respeita ao Herói-Flor cretense de nome Jacinto, aparentemente também chamado Narciso, cujo culto foi introduzido na Grécia micénica. Em Rodes, Creta, Esparta, Cós e Tera, foi dado o nome de Jacíntio ao último mês de verão. O Apolo dório usurpou o nome de Jacinto em Tarento, onde este tinha um túmulo de herói. Existia um outro «túmulo» de Jacinto em Amiclas, uma cidade micénica, que viria a servir de base ao trono de Apolo. Nessa época, Apolo era um ser imortal, ao contrário que Jacinto, que reinava apenas durante uma estação do ano: a sua morte, provocada por um disco, recorda a do seu sobrinho Acrísio.
    Desde a conspiração para destronar Zeus, este apenas uma vez se enfurecera com Apolo, nomeadamente quando o filho deste último, Asclépio, o físico ressuscitou um homem, roubando, portanto, a Hades um súbdito seu. Hades, naturalmente, queixou-se no Olimpo, o que levou Zeus a fulminar Asclépio com o seu raio. Em retaliação, Apolo matou os Ciclopes.
    Furioso com esse ato, Zeus preparava-se para banir Apolo para o Tártaro, porém foi demovido por Leto, que lhe implorou o seu perdão, assumindo mesmo o compromisso de fazer com que o filho se emendasse. Assim, a sentença foi reduzida a um ano de trabalhos forçados, período durante o qual Apolo deveria ficar ao serviço do rei Admeto da Trácia. Aconselhado pela progenitora, Apolo não só cumpriu humildemente a sentença, como ainda prestou grandes benefícios a Admeto.
    Servindo-lhe de lição, a partir daí passou a pregar moderação fosse no que fosse: as frases "Conhece-te a ti mesmo!" e "Nada de excessos!" andavam constantemente nos seus lábios. Além disso, trouxe as Musas da sua morada no Monte Hélicon para Delfos; atenuou-lhes um pouco o seu frenesim e levou-as a executarem rítmicas e decorosas danças.
    

    Como deus dos Hiperbóreos, Apolo sacrificava hecatombes de burros, o que o identificava com o «jovem Hórus», cuja vitória sobre o seu inimigo Set os egípcios celebravam todos os anos conduzindo burros selvagens sobre um precipício. Hórus vingava-se do assassinato de seu pai Osíris - o rei sagrado e bem-amado da Tripla deusa-Lua Ísis, ou contra Lat. que o respetivo sucessor sacrificava a meio do verão e em meados do inverno, e do qual Hórus era a própria reincarnação. O mito de Leto perseguida pela serpente Píton corresponde ao mito de Ísis perseguida pro Set (durante os setenta e dois dias mais quentes do ano). Por outro lado, Píton é identificada com Tífon, o Set grego, no Hino Homérico a Apolo, e no escólio a Apolónio de Rodes. O Apolo hiperbóreo é, de facto, um Hórus grego.
    Ao mito foi dada, porém, uma interpretação política: diz-se que a serpente Píton teria sido enviada em perseguição de Leto por Hera, a qual a gerava por partenogénese para contrariar Zeus. Apolo, depois de matar Píton (e provavelmente o seu companheiro Délfine), apoderou-se do templo oracular da Mãe Terra em Delfos - já que Hera seria Mãe Terra, ou Délfine, na sua expressão profética. Aparentemente, alguns dos Helenos do Norte, aliados aos Trácios-Líbios, invadiram a Grécia Central e o Peloponeso, onde se viram confrontados pela oposição dos pré-helenos veneradores da deusa-Terra, mas que, apesar disso, conseguiram tomar os principais templos oraculares da deusa. Em Delfos, aniquilaram a serpente sagrada oracular - no Erectéion de Atenas conservava-se uma serpente semelhante - e passaram a ocupar-se do oráculo em nome do seu deus Apolo Smíntio. Smíntio («rato»), tal como Esmun, o deus da cura Cananeu, tinha como símbolo um rato curativo. Os invasores concordaram em identificá-lo com Apolo, o Hórus hiperbóreo, que os aliados adoravam. Para aplacar os ânimos em Delfos, instituíram-se e celebravam-se regularmente jogos fúnebres em honra do herói morto, Píton, com a presença permanente da sua sacerdortisa.
   

Alcíone

    Do gr. «que protege da tempestade», Alcíone era filha de Éolo, o rei dos ventos, e de Egialeia. Desposou Céix (ou Ceíce), da Traquínia, filho da Estrela da Manhã, Eósforo ou Lucífer, e os dois eram muito felizes, porém, atingidos pelo orgulho, tiveram a ousadia de se compararem e de se fazerem chamar, a ela Hera, e ao marido, Zeus.
    Esta atitude despertou a ira dos verdadeiros Zeus e Hera e, em determinado momento que Ceíce decidiu ir consultar um oráculo, fizeram cair uma tempestade sobre o navio a bordo do qual se encontrava. Em consequência, a embarcação afundou e ele morreu, afogado.
    A partir daqui, as versões variam. Uma afirma que a sombra de Ceíce apareceu a Alcíone, que ficara, contrariada, na Tarquínia, onde, enlouquecida pela dor, se lançou ao mar. Algum deus mais piedoso transformou-os a ambos em pica-peixes. Outra estabelece que o corpo dele foi trazido pelas ondas para a costa, onde a esposa o encontrou. Desesperada, ela transformou-se num pássaro de pio lamentoso, e os deuses operaram nela uma metamorfose análoga à do marido.
    Zeus, compadecido, ordenou que os ventos não soprassem durante os sete dias antes e os setes dias depois do solstício de inverno, os chamados «dias de Alcíone", período em que choca os ovos perto das vagas do mar. De facto, em cada inverno, a fêmea do pica-peixe vem enterrar o seu macho por entre grandes lamentos e, de seguida, construindo um ninho muito cerrado com os espinhos do peixe-agulha, lança-o ao mar, põe os seus ovos e choca a sua ninhada.
    De acordo com vários autores clássicos (Apolodoro: 1. 7. 3; Escólio a Aristófanes: As Aves; Homero: Ilíada, Canto IX; Plínio: História Natural, X; Higino: Fábulas, 65; Ovídio: Metamorfoses, XI: Luciano: Alcíone, I; Plutarco: Quais os Animais mais Astuciosos?), porém, Céix foi transformado em gaivota.
    Alcíone e Ceíce simbolizam a fecundidade física e espiritual, ameaçada pelos deuses e pelos elementos da natureza.

    Alcíone é, também, uma designação atribuída a aves da família Alcedinídeos. O guarda-rios (Alceo atthis), igualmente conhecido por guarda-rios comum e por pica-peixe, é uma ave pequena e ativa que habita ao longo dos rios e ribeiros lentos, com bancos e socalcos arenosos. Possui uma cabeça grande, uma cauda curta e um bico comprido, bem como asas largas e pernas curtas. A zona superior do corpo é de cor azul e verde brilhantes. Alimenta-se do peixe e crustáceos pequenos que apanha mergulhando na água. Um adulto mede cerca de 16 centímetros.

NOTAS:

1.ª) A lenda do ninho do alcião, ou pica-peixe (que não se baseia na sua história natural, pois o alcião ou alcíone não constrói nada que de longe ou de perto se assemelhe a um ninho, mas deposita pura e simplesmente os ovos em buracos à beira-mar) deve estar relacionada com o nascimento do novo rei sagrado no solstício do inverno - depois da rainha que representa a sua mãe, a Deusa-Lua, ter acompanhado o cadáver do velho rei a uma ilha sepulcral. Porém, como o solstício do inverno nem sempre coincide com a mesma fase da Lua, deve entender-se por «cada ano» «cada Grande Ano», de cem lunações, no fim do qual os períodos lunar e solar se encontram mais ou menos sincronizados, e termina o reinado do rei sagrado.

2.ª) Homero relaciona o alcião com Alcíone, um título de Cleópatra, a mulher de Meleagro (Ilíada, IX, 562), e com uma filha de Éolo, guardião dos ventos. A forma grega de alcião (alcyon) não pode, portanto, significar al-cyon, «cão de caça do mar», como geralmente se supõe, mas sim alcy-one, «a rainha que evita o mal». Esta mitologia é atestada pelo mito de Alcíone e Ceíce e pela forma como Zeus e Hera os puniram. 

3.ª) Existe uma outra Alcíone, filha de Plêione («rainha viajando sobre o mar») e de Atlas e que liderava as sete Plêiades. O levantar helíaco das Plêiades, durante o mês de maio, marcava o início do ano da navegação; o seu ocaso assinalava o fim deste período, no momento em que (como Plínio nota numa passagem sobre o alcião) um vento do norte muito frio começa a soprar. As circunstâncias da morte de Ceíce indicam que os Éólios, navegadores de grande reputação, adoravam a deusa a expressão de «Alcíone», visto que esta os defendia dos rochedos e do mau tempo: Zeus provocou o naufrágio de Ceíce atingindo-o com um raio, por animosidade contra o poder da deusa. No entanto, continuou-se a atribuir ao alcião o poder mágico de acalmar as tempestades, e utilizava-se o seu corpo, depois de seco, como talismã para preservar do raio de Zeus - provavelmente, com base no facto de o raio nunca cair duas vezes seguidas do mesmo sítio. O Mediterrâneo é, regra geral, calmo na altura do solstício de inverno.


Bibliografia:
  • BENEDITO, Silvério, Dicionário Breve de Mitologia Grega e Romana. Editorial Presença, Lisboa, 2000.
  • GRAVES, Roberto, Os Mitos Gregos, Publicações D. Quixote, Col. Nova Enciclopédia, Lisboa, 1990.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Actéon

    Aristeu, filho de Apolo e da ninfa Cirene, tivera de Autónoe um filho chamado Actéon, que foi criado pelo centauro Quíron, o qual lhe ensinou a arte da caça, tornando-se, pois, um grande caçador.
    Certo dia, após uma caçada, Actéon e os seus companheiros descansavam num vale, quando ele decidiu explorá-lo. Em determinado momento, encontrou uma caverna, na qual Ártemis, a deusa grega da caça, costumava banhar-se na companhia das suas ninfas.
    Nesse dia, ao penetrar na caverna, Actéon surpreendeu a deusa banhando-se, nua, numa nascente. As ninfas que a acompanhavam tentaram cobrir o corpo de Ártemis, no entanto, como esta era mais alta do que aquelas, nada adiantou tal ação.
    Irritada e encolerizada por ter sido surpreendida daquela forma, a deusa transformou-o em veado e, não satisfeita, enfureceu os cinquenta cães que compunham a sua matilha, açulou-os contra ele. Os animais, obviamente, não o reconheceram, por isso atacaram-no e devoraram-no, tendo depois procurado o dono (que acabavam de matar), ganindo por toda a floresta.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Género literário de Os Lusíadas

     Neste post, encontra-se a classificação de Os Lusíadas como uma epopeia / um poema épico, a definição de epopeia, os elementos característicos da epopeia e os elementos da mesma que podemos encontrar na obra de Camões.

    O post pode ser encontrado no seguinte link: género-de-os-lusíadas.


    Abaixo, um quadro-síntese dos conteúdos desenvolvidos:

 

ELEMENTOS da EPOPEIA

CONCRETIZAÇÃO
n’ OS LUSÍADAS

CARACTERÍSTICAS

 

. A ação: acontecimentos representados ao longo da obra.

 

 

. Viagem de Vasco da Gama, acontecimento culminante da História de Portugal.
 
. Unidade: ligação entre as diversas partes.

. Variedade: inserção de episódios para quebrar a monotonia e embelezar a ação.

. Verdade: assunto real ou, pelo menos, verosímil.

. Integridade: criação de uma intriga com princípio, e fim.

 
. A personagem: os agentes ou heróis da ação.

 

 
. Vasco da Gama.


. O Povo Português (“o peito ilustre lusitano”).
 
. Camões?
 

. E os deuses, mais homens que deuses?

 

 
. Individual e principal, com uma dimensão simbólica um povo de marinheiros.
 
. Herói coletivo, fundamental numa epopeia.
 
. Herói individual (ou coletivo, porque representativo do homem do Renascimento, completo, soldado e escritor, guerreiro e Velho do Restelo?).
 
. Não são meros símbolos, têm paixões humanas, identificam o êxito e o fracasso, a vitória e a derrota (Vénus Baco).
 
 
. O maravilhoso: intervenção de seres sobrenaturais na ação.

 

 
. Júpiter, Vénus, Marte, etc.
 
. Deus (a Divina Providência cristã).
 
. Pagão: deuses pagãos.
 
. Cristão: Deus do cristianismo.
 
. Misto: mistura dos dois anteriores.
 
. Céltico: magia, feitiçaria.
 
 
. A forma.

 

 

 
. Dez cantos.
. Narrativa em versos decassílabos, geralmente heroicos, agrupados em oitavas.
. Rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últimos.
. Esquema rimático: abababcc.
 

Vida e obra de Luís de Camões

 1524 – 1525

Nascimento

Luís Vaz de Camões terá nascido em 1524 ou 1525, provavelmente em Lisboa (ou Coimbra) (não se sabe ao certo a data e o local do seu nascimento), no seio de uma família da pequena nobreza e oriunda da Galiza. O pai chamava-se Simão Vaz de Camões e a mãe, Ana de Sá (ou Ana Macedo, segundo alguns documentos).

 

1535 – 1545

Juventude em Coimbra

Segundo alguns autores, Camões viveu parte da sua juventude em Coimbra, onde se terá instalado desde muito novo, para aí fazer os seus estudos. Através do seu tio, D. Bento Camões, chanceler a Universidade e prior do Mosteiro de Santa Cruz, teve acesso às aulas de Humanidades, regidas pelos frades de Santa Cruz, e contacto com os ideais humanistas, bem como acesso a obras de grandes nomes da literatura renascentistas europeia.

 

Petrarca e a influência renascentista

Francesco Petrarca (1304 – 1374), poeta e humanista italiano, foi um dos grandes exemplos da nova estética do Renascimento. Seguidor da escola petrarquista, Camões viria a adotar os...


A conclusão do post encontra-se no link seguinte: vida-e-obra-de-camões.

Renascimento

     PowerPoint que sintetiza o estudo referente ao Renascimento: power-point-renascimento.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O tema do sacrifício do filho / A intertextualidade no conto "A Aia"


    O tema do sacrifício do filho surge em textos seminais do Oriente, como, por exemplo, a Bíblia, através de Abraão, e a mitologia grega, através de Ifigénia, personagem da Ilíada.
    Na Bíblia, no Génesis, Abraão oferece o seu filho primogénito, Isaac, em sacrifício para provar a sua fidelidade à divindade. Ora, o ritual é interrompido pelo próprio Deus, que considera que o gesto de Abraão constitui já prova de amor e adoração.
    Há uma relação entre o gesto de Abraão e a atitude da aia: a lealdade. Tal como sucede com a figura bíblica, também no conto de Eça se confrontam a fidelidade a um Senhor e o amor ao filho. No entanto, na casa da ama de leite, a lealdade é levada ao extremo, tanto que o amor de mãe se torna secundário perante a submissão à rainha e aos interesses do reino. Ao contrário do que sucede na narrativa bíblica, o sacrifício do filho da aia não é interrompido por nenhum Deus piedoso; o seu filho não é substituído pelo cordeiro, antes se torna o cordeiro que substitui o príncipe.
    O episódio da Ilíada tem contornos semelhantes: o sacrifício de Ifigénia. Agamémnon provocou a ira de...


    Continuação da análise: aqui.

Relação do conto "A Aia" com os contos de fada


    A expressão “Era uma vez” remete-nos para o mundo atemporal da fantasia, bem característico dos contos de fadas.

    Por outro lado, a lealdade da aia à rainha e ao pequeno príncipe, traduzida em última análise no facto de tirar a vida ao próprio filho para salvar a do futuro rei, sugere uma aceitação e uma felicidade em ser servo. Essa servidão atinge o auge no momento em que a serva sacrifica o próprio filho, tornando o amor de mãe em secundário para que a lealdade à rainha e ao reino seja superior e prevaleça.

    Deste modo, a felicidade parece estar reservada aos nobres: quem vai viver e ser feliz é o príncipe e não o bebé escravo. Por outro lado, o bem público parece prevalecer sobre...


    A análise continua aqui → a-aia-e-os-contos-de-fadas.

A moralidade do conto "A Aia"


 
O conto exemplifica a eterna luta entre o Bem e o Mal. A aia, a rainha e a população do reino, por exemplo, representam o Bem: a aia é leal, sente ternura pelo príncipe e comporta-se de forma admirável; a rainha tem amor pelo escravozinho, sente-se “desventurosa” por o reino estar em perigo e “ditosa” pela salvação do filho; o reino tinha “casais e aldeias felizes” e a população era “fiel” e recompensava quem praticava boas ações. Por seu turno, o bastardo e a sua «horda» representam o Mal: o irmão do rei é caracterizado como “bastardo cruel”, “homem depravado e bravio”, “um homem de rapina”, que, com a sua horda, executa a matança.

 
Por outro lado, Eça pretendeu criticar a sociedade do seu tempo, o século XIX, nomeadamente a escravidão e a inferioridade do negro. Apesar de o herói ser uma mulher, escrava e negra, essa ascensão da aia só vem acentuar as diferenças sociais.

 
Eça tem em mira o pensamento dogmático e conservador que estipula a soberania do rei sobre o súbdito, do nobre sobre o plebeu, do rico sobre o pobre; em suma, do senhor sobre o servo que, ao reconhecer essa suposta soberania, é impelido ao sacrifício extremo.

 
Alegoricamente, o tio representa as fissuras da ordem colonialista. Deste modo, Portugal, na sua dimensão intercontinental, apresenta-se como serva possuidora de um filho de pele escura que é capaz de sacrificar em defesa do “status quo”, particularmente das suas relações com a Inglaterra.

 
O conto condena a ambição desmesurada e exalta a fé, a lealdade e a fidelidade, socorrendo-se de um tempo passado, longínquo, mas que porta consigo uma certa autenticidade, na esteira das narrativas tradicionais, como a fábula e a lenda, que são portadoras de uma verdade que ratifica valores coletivos. Ao retomar essa tradição narrativa de base oral, Eça, através da figura da aia, apresenta ao leitor valores como a lealdade, a fidelidade e a fé. Disseminados pelo poder e, uma vez assimilados pelos dominados, esses valores perpetuam a dominação.

 
Publicado em 1893, o conto surge pouco depois do Ultimatum inglês, que colocou Portugal numa situação de submissão e humilhação face à Inglaterra, nomeadamente no que diz respeito à posse das colónias africanas de Chire e das regiões habitadas pelos Macalocos e os Machonas, sob a ameaça de rompimento diplomático (que implicaria perdas económicas incalculáveis) e a invasão da esquadra britânica em Gibraltar. Assim, Portugal passaria da condição de poderoso colonizador com posição de destaque no cenário europeu desde o século XVI, à posição de nação serva e subjugada ao poderio inglês. Tal episódio representa a decadência gradativa do país. O facto de a ação se localizar na Índia, território que Portugal sempre quis atingir, remete para o poderio do império marítimo português, que teve como uma das suas principais conquistas a rota para as Índias em 1492, e tal poderio sucumbia às mãos das imposições inglesas. Assim, Eça pretenderia, com este conto, abordar simbolicamente a situação histórica vivida pro Portugal naquela época.

 
Numa leitura alegórica, a morte do rei – além de ecoar, por similitude – o desaparecimento de D. Sebastião – parece aludir à perda dos ideais colonialistas nostalgicamente evocados através da referência à longínqua Índia, com todos os seus tesouros: “pedrarias, galas e céus sumptuosos”.


A linguagem do conto "A Aia"



Advérbio de modo:
- “magnificamente”, “desoladamente”, “ansiosamente”: contribuem para expressar a emoção da rainha após a morte do rei;
- “Serva sublimemente leal!”: o advérbio de modo e a exclamação realçam a fidelidade da serva.

 
Diminutivo (“filhinho”, “principezinho”, “criancinha”, “corpinho”, “escravozinho”): traduz o carinho que rodeia os dois bebés e realça a forma como a rainha vê o seu filho, isto é, como um ser humano frágil e indefeso (“filhinho”), que urge defender; caracterizam os bebés, acentuando a sua fragilidade e insegurança.

 
Verbos expressivos:

- “tremia”: exprime o receio e a preocupação da Aia pelo principezinho, por causa da sua fragilidade;

- “Então […] arrebatou o príncipe do seu leito de marfim”: o verbo «arrebatar» evidencia a rapidez e a convicção com que a aia troca as crianças de berço.

 
Adjetivação expressiva:

- contribui para a caracterização das personagens: “bela e robusta escrava”, “cabelo louro e fino”, “pobre e de verga”, “cabelo negro e crespo”;

- indicia a preocupação, a ansiedade e a angústia com o destino do principezinho e o seu crescimento: “longa distância”, “anos lentos”;

- “beijos pesados e devoradores”: a dupla adjetivação posposta ao nome realça o afeto, o carinho, o amor que a asia nutre pelo filho.

 

Metáforas:

- “faminto do trono”: exprime o forte desejo do trio por usurpar o trono e o ocupar;

- “E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez” realça a rigidez e a lividez da face da Aia, sugerindo a sua apatia e ausência de vida;

- “cabelos de ouro”: os cabelos louros do principezinho;

- “a flor da sua nobreza”: sugere que os que pereceram faziam parte da elite da nobreza, eram os melhores dentre os melhores;

- “Uma roca não governa como uma espada”: a metáfora e a comparação enfatizam o poder desigual e a fragilidade da mulher (“roca”) em relação ao homem (“espada”) numa sociedade tradicional, isto é, uma mulher não tem a capacidade guerreira de um homem – a rainha é incapaz de defender o reino após a morte do rei;

- “O bastardo, o homem de rapina […]”: a metáfora mostra o caráter violento e cruel do tio do príncipe; por outro lado, o uso do determinante artigo definido confere-lhe um sentido de generalização e singularidade, como se ele fosse o único e o pior de todos os seus semelhantes;

- “acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de oiro e pedrarias”: sugere o brilho intenso produzido pelo tesouro do palácio, bem como a sua beleza a extrema riqueza;

- “… valia uma província.”: sugere que o punhal escolhido pela aia era muito valioso.

 

Comparações:

- “de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face” (vide hipérbole):

- “Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas”: realça a beleza e o brilho dos olhos dos bebés;

- “à maneira de um lobo”: intensifica o caráter cruel e selvagem do tio;

- “Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto”: mais do que qualquer outra pessoa, a aia chorou copiosa e sentidamente a morte do seu rei;

- “Só a ama leal parecia segura – como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidade…”: a comparação aponta para as ideias de proteção e coragem. A ama leal é a personagem que cuida do filho da rainha, que está em perigo por causa de um inimigo que ataca o reino. A comparação entre os braços da ama e as muralhas de uma cidade sugere que ela é capaz de defender o príncipe com a sua força e determinação, mesmo que esteja cercada de medo e insegurança. A comparação também cria um contraste entre a fraqueza da rainha, que apenas sabe chorar, e a firmeza da ama, que parece segura;

- “… um corpo tombando molemente sobre lajes, como um fardo”: indica o modo como o corpo do tio caiu, morto, no chão, isto é, de forma simultaneamente mole e pesada;

- “A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.”: traduz a ideia de que a rainha perdeu toda a esperança e a vontade de viver, pensando que o príncipe foi morto pelo seu tio. Por outro lado, a forma como ela cai, com um suspiro, sobre o berço, indicia a sua dor e a rendição à situação;

- “Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza do que triunfo.”: sugere que os habitantes da cidade, que acabaram de derrotar o inimigo que os ameaçava, não sentem alegria nem orgulho pela sua vitória, mas sim dor e luto pelos seus mortos;

- “… seria no Céu como fora na Terra.”: sintetiza a visão do mundo e as crenças da aia;

- “… arrancou a criança, como se arranca uma bolsa de oiro”: acentua a violência do ato (rapto do bebé) e a sua motivação (o dinheiro).

 

Exclamações:

- “Pobre principezinho da sua alma!”: traduz a ansiedade e a preocupação em torno do crescimento do principezinho, face à sua fragilidade e aos perigos que o cercam.

 

Repetição:

- “forte pela força e forte pelo amor”: reforça a ideia de grandeza do reino, nascida não só da força, mas também do amor.

 

Antítese:

- “cabelo louro e fino” / “cabelo negro e crespo”: marca o contraste físico entre os dois bebés – o príncipe e o escravo;

- “mãe ditosa” / “mãe dolorosa”: a mãe ditosa é a rainha, que fica feliz por o seu filho estar vivo e salvo, enquanto a mãe dolorosa é a Aia, que está triste e repleta de dor pela perda do seu filho.

 

Eufemismo:

- “[…] os seus pajens tinham subido com ele às alturas”: suaviza a morte dos pajens, o que está de acordo com as crenças da aia num mundo para além da morte;

- “O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas.”: traduz a ideia de morte e a crença da aia na vida no céu enquanto réplica da vida terrena. De facto, para a personagem, o céu reproduz a estrutura social existente na terra, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na terra. Esta crença envolvia os próprios animais: “O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas.”;

- “… sucumbira, ele e vinte da sua horda.”: traduz a morte do tio bastardo e dos seus soldados.

 

Hipérbole:

- “de face mais escura que a noite”: exprime o caráter tenebroso e desprezível do irmão do rei, estabelecendo a correspondência entre os traços exteriores e os interiores.

 

Aliteração:

- “passos pesados”: a aliteração em “p” marca a cadência sinistra dos passos (podemos considerar esta expressão também uma hipálage)

- “forte pela força e forte pelo amor”: a aliteração em “f” sugere a fragilidade do príncipe, que não tinha quem o protegesse e defendesse.

 

Enumeração:

- “refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas”: sublinha a valia / a riqueza do tesouro.

 

Interrogação:

- “Que bolsas de ouro podem pagar um filho?”: o narrador suscita a reflexão sobre o valor / o preço da vida humana – um filho não tem preço.

 

Determinante artigo indefinido:

- “Era uma vez”; “um reino abundante”, um rei”:

não permite determinar com precisão o tempo histórico e o tempo cronológico (intemporalidade);

não permite determinar com precisão o espaço físico:

contribui para a exemplaridade da história, cuja mensagem, cujo teor humano pode ser aplicado a muitos tempos e lugares;

traduz o anonimado das personagens.

 

Determinante artigo definido:

- “O bastardo, o homem de rapina […]”: vide metáforas.

 

Sensações auditivas e visuais:

- as sensações auditivas relevam a solenidade do momento e o acontecimento trágico que lhe deu origem: “(…) respeito tão comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do tesouro rolaram lentamente.”; “Um longo «Ah!», lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio ansioso”; “Todos seguiam, sem respirar […]”;

- as sensações visuais relacionam-se sobretudo com a descrição da “câmara dos tesouros”, destacando-se as notações de luz e brilho (que servem também para marcar o tempo cronológico – “a luz da madrugada, já clara e rósea”): “acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias!”; “reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas”; “refulgência preciosa”.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...