Português: 9.º Ano
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quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Análise do 10.° parágrafo do conto "A Aia"

    1. Vários homens / inimigos chegam à porta da câmara onde os bebés dormem, destacando-se um dentre todos. Trata-se de um indivíduo «enorme» (adjetivo que dá conta da sua grande envergadura), de «face flamejante» (adjetivo que destaca o tom do rosto do homem, agitado pela luta travada até chegar ali, ou sugere uma aparência demoníaca), envergando “um manto negro sobre a malha de cota”. O adjetivo «negro», que qualifica o manto, associa mais uma vez a personagem ao Mal, enquanto a cota de malha simboliza a proteção e a prontidão para a batalha. O contraste / antítese entre o negro e a face flamejante intensifica a ideia de que a figura em questão transporta consigo uma ameaça. Simbolicamente, o homem, com o seu manto negro, representa o mal, a destruição e a morte.


    2. A ação do homem, provavelmente o próprio tio bastardo, é marcada pela rapidez e pela violência. Desde logo, a sua chegada é qualificada, através do advérbio «bruscamente», como brusca e repentina. O facto de se fazer referência a outros homens que o acompanham indicia que não está e não age sozinho.


    3. Ao entrar, olhou em direção aos berços, o que revela o seu objetivo: o principezinho. A sequência de ações que se seguem e o modo direto e cru como são descritos evidenciam a urgência e a agressividade da personagem. Assim, ela correu para o berço de marfim, “arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro” (esta comparação acentua, por um lado, a violência e a brusquidão do rapto do bebé e, por outro, a sua motivação; além disso, ao comparar a criança a uma bolsa de ouro, o narrador sugere que aquela é vista como um objeto de grande valor, não como um ser humano).
    Por último, o homem abafa os gritos da criança, gesto que reforça a brutalidade do rapto e a tentativa de a silenciar, de modo que ninguém se aperceba e o persiga, e abala furiosamente. O manto negro que é usado para abafar o bebé pode ser analisado como uma metáfora da supressão da sua vida.
    Atente-se na expressividade das formas verbais, todas de ação (“olhou”, “correu”, “arrancou” e “abalou”), as quais revelam a violência e a rapidez com que o rapto é consumado.

sábado, 30 de novembro de 2024

Análise do 9.° parágrafo do conto "A Aia"

    No que diz respeito à categoria tempo, este parágrafo confirma o seguinte: a maioria dos acontecimentos do conto tem lugar à noite. Neste caso, o evento é a invasão do palácio pelo tio bastardo e da sua horda, na tentativa de matar o principezinho e subir ao trono.
    O facto de se tratar de uma noite escura e de silêncio ajuda criar um ambiente de suspense e de mistério, bem como de ameaça iminente. Com a escuridão, os sentidos das personagens estão mais alerta, daí que estejam mais atentos a pequenos ruídos ou movimentos. Por outro lado, a noite é uma fase do dia em que as pessoas se encontram mais vulneráveis, pois encontram-se maioritariamente a dormir. Em terceiro lugar, a ausência de luz facilita a aproximação dos inimigos ao palácio, todavia o silêncio é um obstáculo ao ataque, dado que qualquer ruído será mais facilmente escutado pelos vigias.


    Quando às personagens, é o que sucede com a aia, que, quando se prepara apara adormecer, com os sentidos ainda assim despertos, “adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe…”. Ou seja, a protagonista pressente o que está a acontecer, no seu permanente estado de alerta para proteger o príncipe.
    Determinada, a ama procura confirmar o seu pressentimento e, após tê-lo feito, perante a ameaça iminente (“Num relance tudo compreendeu – o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe!”), não hesita e troca os bebés de berço para proteger o príncipe. A sua ação é rápida e firme, sem espaço para hesitação: “Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga – e tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real…”.
    Deste modo, a aia sacrifica o seu próprio filho por um bem maior: a defesa do príncipe e, consequentemente, do reino. Por outro lado, com este gesto, a protagonista confirma o seu forte senso de dever e lealdade… mas a que custo!
    Além disso, a troca de bebés mostra que a aia é uma mulher decidida e astuta. De facto, ela não pensa sequer em confrontar os invasores, optando por fazer uso de uma estratégia engenhosa para os enganar e, assim, salvar o príncipe, deitando-o no berço simples e pobre. Os assaltantes concluem, como se verá no parágrafo seguinte, que o príncipe dorme no berço rico, de acordo com a sua condição nobre. O plano da aia é simples, mas eficaz.
    Apesar da astúcia, frieza e racionalidade demonstradas na troca de bebés, o seu amor de mão está sempre presente, como se constata pela intensa emoção que evidencia (“entre beijos desesperados”) quando concretiza a sua ação.
    Por que razão uma mãe como a aia sacrificaria o seu próprio filho tão amado?

1.º) Por lealdade ao rei e à rainha.

2.º) Por um bem maior: o de todo o reino.

3.º) Por acreditar na vida além da morte.

4.º) Por acreditar que a vida depois da morte é uma continuação da vida terrena.


    Relativamente à linguagem, a deste parágrafo espelha alguma formalidade, mático e elevado. É o que sucede, por exemplo, através do recurso a expressões como “arrebatou o príncipe” ou “atirando os cabelos para trás”, que conferem à narrativa uma certa grandiosidade.
    Outro recurso importante são os verbos de ação. Formas verbais como «descerrou», «arrebatou», «atirou» ou «cobriu» criam uma sensação de movimento, de dinamismo e urgência. Por exemplo, o verbo «arrebatar» evidencia a rapidez e a determinação com que a aia troca os bebés de berço. Por outro lado, a presença de outras formas verbais, no pretérito perfeito («adivinhou», «escutou») remete para ações já concluídas.
    Em terceiro lugar, destacam-se as sensações, nomeadamente as visuais e auditivas. A alusão ao som de “passos pesados e rudes” (hipálage e adjetivação) e de um corpo “tombando molemente” (advérbio de modo) criam a noção de imagens auditivas intensas, vívidas, o que sucede igualmente com as sensações visuais, como “um clarão de lembranças, brilhos de armas…”.
    Outro recurso relevante é a antítese. Esta é visível, por exemplo, entre o silêncio inicial e o súbito som de luta, ou entre a nobreza e o requinte que rodeiam o príncipe e a humildade e simplicidade do escravozinho. A troca de berços para salvar o príncipe reflete esses contrastes, pois o que permite, à partida, aos invasores, saber qual dos dois bebés é o príncipe é exatamente o berço: o mais rico é aquele onde dorme a vítima que buscam.
    Como é característico do conto, o narrador socorre-se da economia de diálogos, ou seja, não existe diálogo, havendo apenas a registar uma única fala em discurso direto, da autoria da aia. O efeito da ausência de diálogos prende-se, por um lado, com a construção de uma ação rápida e, por outro, com o aumento da tensão narrativa.
    A adjetivação é bastante expressiva, como sucede ao longo do conto. Assim, o adjetivo «curto», em “curto rumor de ferro e de briga”, sugere que o ruído que a aia ouviu ou pressentiu é breve, mas é o suficiente para a deixar em alerta. Por seu turno, a dupla adjetivação “pesados e rudes” a qualificar os passos sugere a aproximação de alguém ameaçador e rude. De facto, além da adjetivação, podemos vislumbrar na expressão a presença da hipálage, que consiste na atribuição de uma característica que pertence a uma pessoa a algo relacionada com ela. Assim, a lentidão e a rudeza, que, na realidade, pertencem à pessoa que caminha, são transferidas para os seus passos. Por outras palavras, o indivíduo que a aia ouve a caminhar é pesado e rude. Quanto ao adjetivo «desesperados», qualifica os beijos que a aia dá ao filho quando o retira do seu berço e o coloca no do príncipe, enfatizando o desespero e a dor infinita que sente ao fazê-lo e, assim, condená-lo à morte. No fundo, a protagonista vive um drama pessoal intensíssimo, dividida entre o seu instinto de mãe e o dever de proteger a vida do príncipe.
    A obra de Eça de Queirós inovou bastante no uso do advérbio. Neste excerto, a locução adverbial “à pressa” dá conta da rapidez com que a aia se veste por causa da urgência da situação: ela tem de se certificar rapidamente da causa e origem do barulho que ouviu. Da celeridade da sua atuação, depende a vida do príncipe. Por sua vez, o advérbio «violentamente» enfatiza a ânsia e a tensão que se apoderam da protagonista e a necessidade de agir rapidamente. Além disso, dão nota da necessidade de correr a cortina para evitar que alguém, a partir do exterior, consiga ver o que ela vai fazer: trocar os bebés de berço. Na frase imediatamente anterior, deparamos com «molemente», advérbio que traduz o modo como o corpo cai, já sem vida ou resistência. Já «rapidamente» expressa a celeridade com que a aia agiu, sem hesitação.
    Por último, a comparação “um corpo tombando molemente sobre lajes, como um fardo” caracteriza o modo como o corpo de um interveniente na luta caiu no chão, isto é, de forma simultaneamente mole e pesada.

Análise do 8.° parágrafo do conto "A Aia"

    O parágrafo abre com a alusão ao ambiente geral que se vive no palácio real: “um grande temor enchia o palácio”. Na ausência do rei (morto) e do herdeiro, o príncipe (bebé de berço), quem governa agora é uma mulher (a rainha) entre mulheres. Este passo (“uma mulher entre mulheres”), por um lado, constitui um contraste entre a fraqueza associada ao género feminino e a força esperada em quem reina num contexto de crise. Quando um qualquer perigo espreita um reino, espera-se que haja uma liderança forte, o que não acontece neste caso, transparecendo uma sensação de fraqueza, representada pelo facto de quem lidera ser uma mulher.
    Por fim, o tio bastardo decide agir. O narrador prossegue a sua caracterização através da metáfora “homem de rapina”, que reafirma o seu caráter violento e cruel. Além disso, o recurso ao determinante artigo definido «o», em “O bastardo, o homem de rapina”, confere-lhe um sentido de generalização e singularidade, como se ele fosse o único e o pior de todos os do mesmo género.
    De seguida, o narrador referencia as suas ações e atitudes:

1.ª) Erra no cimo das serras, onde passa o seu tempo, uma posição estratégia que confirma a sua imagem de predador que está à espreita, ao longe, aguardando a melhor ocasião para atacar.

2.ª) Desce à planície com a sua horda, ou seja, abandona, por fim, as montanhas à frente de um grupo de facínoras (o termo «horda» evoca um grupo violento e desorganizado).

3.ª) Enquanto se encaminha para o palácio real, deixa um sulco de matança e ruínas (metáfora), isto é, destrói as aldeias e casais por onde passa, destruindo e matando o que encontra por onde passa. Esta ação confirma a caracterização traçada no texto até aqui: é um homem violento, bárbaro, cruel e impiedoso.

    De seguida, o narrador descreve os preparativos de defesa da cidade:

1.º) Reforço das portas da cidade: “As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes.

2.º) Monitorização das atalaias: “Nas atalaias ardiam lumes mais altos.”. Desta forma, aumenta-se a vigilância durante a noite.

    No entanto, a defesa da cidade enfrenta um grande problema: a falta de disciplina – “Mas à defesa faltava disciplina viril.” –, ou seja, não há uma força organizada, uma liderança enérgica e decidida, normalmente associada ao papel dos homens em tempo de guerra-

                Por que razões falta disciplina:

1.ª) “Uma roca mão governa como uma espada.” (comparação e metáfora): uma mulher (“roca”) é frágil comparativamente ao homem (“espada”) numa sociedade tradicional, ou seja, uma mulher não tem a capacidade guerreira de um homem – a rainha é incapaz de defender o reino após a morte do rei. A metáfora da «roca» (objeto usada para fiar) e da «espada» (arma de combate) sugere que, embora a rainha esteja disposta a liderar a defesa do palácio e a exercer o seu papel de rainha, não possui a força nem a experiência para o fazer, o que resulta numa liderança frágil e emocional (note-se que os termos usados apontam para os papéis tradicionais atribuídos a mulheres e homens: a roca remete para tarefas domésticas, enquanto a espada se associa à violência, à ação, à morte; a mulher é um ser mais recatado, circunscrito ao ambiente caseiro, aos filhos, ao cuidar da casa e criar uma família, enquanto o elemento masculino está mais predisposto à violência física).

2.ª) “Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha.” (eufemismo: o uso do verbo «perecer» destina-se a suavizar a ideia de morte): a elite guerreira da nobreza morrera na guerra juntamente com o rei, pelo que restavam apenas aqueles que não possuíam capacidade estratégia e militar, bem como força, para lutar.

3.ª) “E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva.”: a rainha está mais preocupada com a segurança do filho do que com o reino, daí que passe o tempo a correr do e para o quarto do filho, o que faz com que não haja uma liderança adequada e efetiva.

    Nesse ambiente de medo e desorganização, apenas a aia permanece «segura», enquanto protege o príncipe. A comparação dos seus braços às muralhas de uma cidade sugere a força e a determinação com que defende o herdeiro do trono. Por outro lado, estabelece um contraste entre a firmeza da escrava e a fraqueza da rainha, que apenas sabe chorar.

Análise do 7.° parágrafo do conto "A Aia"

Personagens


    Apesar na sua crença na vida para além da morte e da sua continuação noutro plano, enquanto mãe, não deixa de recear pelo destino do principezinho, o que mostra que está consciente dos perigos que agora corre, após a morte do pai: “[…] também ela tremia pelo seu principezinho!”. Atente-se na expressividade do determinante possessivo «seu», que reflete a devoção, o cuidado e o afeto maternal que a aia sente pelo príncipe, que trata como se fosse seu filho. Além disso, mostrou-se, ao longo do tempo, ansiosa e extremamente preocupada com o destino do herdeiro do trono, reconhecendo a sua fragilidade e o longo caminho que terá de percorrer até ao estado de adultez: “[…] pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada […]”. Muito tempo passaria ainda até que ele pudesse ocupar o seu legítimo lugar no reino e exercer o poder.

    Deste modo, a aia não esconde a sua preocupação com o destino do principezinho, sobretudo por causa da ameaça constante do tio bastardo, que deseja usurpar o trono e, para tal, terá de se desfazer do sobrinho. Este receio, esta preocupação revelam o seu forte sentido de dever, responsabilidade e lealdade.

    Apesar de todo o afeto que nutre pelo príncipe, a aia possui um amor superior pelo próprio filho. Ao contrário do herdeiro do trono, que está relacionado com o poder e rodeado de inimigos e de perigos, o pequeno escravo, por causa dessa sua condição, está livre dessas questões, daí que a mãe sinta que está mais protegido do que o príncipe: “Esse, na sua indigência, nada tinha a recear na vida.”

    Este parágrafo torna claro que, não obstante demonstrar uma ternura por ambas as crianças, o faz de formas diferentes. Assim, os beijos q     ue dá ao príncipe são “ligeiros”, enquanto os entregues ao escravozinho são “pesados e devoradores”, metáfora que significa que são mais intensos, viscerais, profundos e possessivos. Outra metáfora – “Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despidos das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço…” – apresenta-o como desprovido, desde o seu nascimento, de qualquer riqueza ou estatuto social, pois até a sua nudez é coberta apenas por um “pedaço de linho branco”. Contrariamente ao príncipe, que está destinado a assumir grandes possibilidades, a deter enorme poder e a viver rodeado de riqueza, o pequeno escravo nada tem a perder em termos materiais, porque nada possui.

    Ora, essa ausência de bens materiais e de estatuto social, proporcionam-lhe uma certa liberdade e proteção física e emocional: as preocupações e os problemas associados ao poder e à riqueza, que pesarão, no futuro, sobre o príncipe, não o atingirão: “[…] nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo.”

    Por outro lado, a afirmação segundo a qual “A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe” quer dizer que, embora o príncipe seja o herdeiro de um trono e, em termos materiais, a sua vida possa ser considerada mais importante, logicamente, para a aia, a vida do seu filho possui mais valor. Que a razão justifica esta postura? O escravozinho tem à sua frente uma existência com menos cuidados e preocupações que, na sua mente, “enegrecem a alma” dos que possuem e exercem o poder. Assim sendo, uma vida simples e humilde são superiores, na ótica da aia, a uma existência marcada pelo exercício do poder e das responsabilidades que caberão ao príncipe.

    Outra personagem visada neste excerto é o tio bastardo, que é descrito como uma pessoa «cruel», sombria e ameaçadora. Fisicamente, tem a pele escura (comparação hiperbólica “de face mais escura que a noite”) e, psicologicamente, possui uma maldade interior superior, mais profunda do que a sua expressão exterior (comparação hiperbólica “coração mais escuro que a face”), é extremamente ambicioso e deseja fortemente o trono (“faminto do trono”), que procura usurpar sem quaisquer escrúpulos. Além disso, retoma-se neste parágrafo a metáfora do lobo, de atalaia, à espera da presa (“… espreitando de cimas do seu rochedo entre os alfanges da sua horda!”), ou seja, sugere-se que está à espreita, a observar e a esperar o momento oportuno para atacar, tal como faz um animal predador. Assim sendo, confirma-se que o tio representa uma ameaça constante para o príncipe e o reino.


Elementos simbólicos

 
    A peça de linho branco que envolve o corpo do príncipe é simbólica. Por um lado, o branco está associado, tradicionalmente, à pureza e à simplicidade, parecendo enfatizar a ideia de que uma vida despojada de ambições e preocupações é extremamente valiosa. Por outro lado, poderemos estar perante uma crítica ao fardo que constitui uma existência caracterizada pela riqueza e pelo exercício do poder.

domingo, 20 de outubro de 2024

Análise do 6.° parágrafo do conto "A Aia"

A aia

1. Caracterização

     A aia nascera no palácio, o que significa que sempre ali vivera e a sua vida fora dedicada a servir o rei, daí a sua lealdade absoluta, a sua submissão e servidão, que não são, todavia, exercidas por se tratar de uma mera obrigação, antes constituem uma paixão, uma espécie de religião, e a fazem feliz. O seu único propósito é servir o rei e o reino e os seus interesses. Daí não ser de estranhar que o seu choro pela morte do rei tenha sido o mais sentido. A sua fidelidade e dedicação são inabaláveis: “Tinha a paixão, a religião dos seus senhores”.

2. Crenças – Conceção de vida e de morte

    A aia é crente, pois acredita na vida depois da morte, o que a ajuda a superar / aceitar essa perda: “Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida na Terra se continua no Céu.” Além disso, para ela o Céu reproduz a estrutura social existente na Terra, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na Terra: “O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam nesse reino celeste retomar em torno dele a sua vassalagem.” Deste modo, a morte do rei não representa um fim definitivo, mas apenas uma transição para outro reino, onde continuará a reinar, de modo semelhante ao que fazia em vida, o que reflete a sua crença na vida após a morte, onde as relações e hierarquias se manteriam intactas.
    Deste modo, quando chegar o dia da sua morte, espera reencontrar o rei, seu senhor, e continuar a desempenhar o seu papel de serva, retomando o seu trabalho de fiação e preparação de perfumes, repetindo as ações realizadas em vida. O Céu é uma continuação idealizada e eterna do que ela já conhece, numa espécie de servidão eterna: “… e feliz na sua servidão”.


Linguagem

    A linguagem do parágrafo pertence, em parte, ao domínio do religioso e do sagrado, para transmitir, desta forma, as suas crenças.
    A comparação “Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto…” enfatiza o facto de a aia ter chorado copiosa e sentidamente a morte do seu rei, mais do que qualquer outra pessoa.
    O eufemismo “O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas.” Suaviza a morte dos pajens, o que está de acordo com as crenças da aia num mundo para além da morte. Por outro lado, traduz a convicção da aia na vida no céu enquanto réplica da vida na Terra. De facto, para a serva, o céu reproduz a estrutura social terrena, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na Terra. Esta crença envolvia os próprios animais e os objetos (cavalos e armas).
    Face ao exposto, é evidente a antítese entre vida e morte, que, neste caso, não são abordadas como opostos, mas como continuidade, o que anula o contraste. A morte do rei constitui uma tragédia pessoal e coletiva e é chorada como tal, porém, para a aia, não constitui um fim definitivo, antes uma transição para outra forma de existência que, na prática, consiste na continuação da ordem social e do papel da aia existentes na Terra.
    Relativamente à adjetivação, a presença de adjetivos como “grande [rio]” e “[reino] celeste” realçam a grandiosidade e o sentido trágico da morte, ao mesmo tempo que evidenciam a dimensão quase mitológica do evento.

 
Elementos simbólicos

    O uso de símbolos é constante ao longo do conto, como sucede também neste parágrafo, no qual se destacam os seguintes, alguns revisitados:

a) o “grande rio” onde o rei encontrou a morte simboliza a passagem da vida para a morte;

b) o raio de lua descreve a ascensão da aia ao céu mágico;

c) o cavalo de batalha, as armas e os pajens simbolizam o poder do rei e a hierarquia social existente no reino, que se conservarão no Além.

 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Análise do 5.° parágrafo do conto "A Aia"

Personagens

    Este parágrafo apresenta uma nova personagem: o escravozinho, o filho da escrava que amamenta o príncipe.
    Socialmente, enquanto filho de uma escrava, a sua condição é igualmente a de escravo. Além disso, embora tenha nascido na mesma noite que o príncipe e seja rodeado dos mesmos cuidados e tratado com o mesmo carinho, a sua condição de vida é claramente mais humilde. O seu berço é “pobre e de verga”, o que simboliza a sua condição inferior e subalterna na sociedade. No entanto, cola-se-lhe à pele uma certa dignidade e inocência, a ele que é alvo do mesmo amor, cuidados e atenção que o príncipe, incluindo por parte da rainha. Fisicamente, é um bebé de berço, tem o cabelo negro e crespo e olhos brilhantes (“Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas” – comparação).
    À semelhança do que sucede com as restantes, também o filho da aia é uma personagem anónima, sendo identificado pela sua condição social, daí ser designado pelo narrador como o «escravozinho». Esta designação não deixa dúvidas de que é um escravo, portanto socialmente inferior.
    A aia, a mãe do escravozinho, é uma escrava que dá título, nome e sentido à história, cuja função é exercer um papel maternal, isto é, criar ambas as crianças. Fisicamente, é bela e robusta, qualidades que sugerem vigor físico. Psicologicamente, é uma serva leal, traço que se revelará fundamental para o desenrolar dos acontecimentos. A sua lealdade e dedicação são tais que cuida do futuro rei com o mesmo desvelo e carinho que dedica ao próprio filho: “A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho – o outro seria o seu rei.” Ou seja, se a um a liga o sangue, ao outro é a lealdade a quem lhe é superior.
    Por sua vez, o principezinho, sempre tratado de forma carinhosa, por meio de diminutivos, fisicamente, tem o cabelo louro e fino e os olhos brilhantes. Social e psicologicamente, dada a sua nobreza de sangue, é de condição social superior, portanto privilegiada, e rico, como o demonstra o facto de dormir num berço “magnífico e de marfim entre brocados”. Ele representa o futuro da monarquia e do reino, daí ser, de certa forma, o centro das atenções e das preocupações das demais personagens. Nesta fase inicial da sua existência, é tratado de modo igual ao do escravozinho, sem privilégios de monta, à exceção do berço em que dorme. Assim, ambos partilham da mesma atenção, cuidado e carinho, sugerindo que, na infância, não existem as barreiras e diferenças que, no futuro, os separarão.
    A caracterização do príncipe e do escravozinho revelam um conjunto de semelhanças e diferenças entre as duas personagens:

a)      Semelhanças:
i)      viviam no mesmo castelo
ii)    tinham nascido na mesma noite de verão (símbolo de um destino partilhado?)
iii)  alimentavam-se do mesmo seio = a aia amamentava ambos (estão ligados simbolicamente desde os primeiros momentos de vida)
iv)  eram ambos beijados pela rainha
v)    eram tratados pela aia com o mesmo carinho, como se fossem os dois seus filhos
vi)  os olhos de ambos eram brilhantes (igualdade na beleza e no brilho)

b)      Diferenças:
 
 

Principezinho

Escravozinho

Aparência física
simboliza o contraste étnico e social entre ambos

. cabelo louro e fino

. cabelo negro e crespo

Condições materiais

. berço magnífico e de marfim

. berço pobre e de verga

Condição social
. classe social: nobreza / realeza – príncipe herdeiro do trono
. rico e privilegiado
. filho da rainha

. classe social: escravo

. pobre e humilde
. filho da escrava

Situação

. frágil e vulnerável

. nada tinha a recear


Linguagem e recursos expressivos

    A adjetivação assume também grande relevância neste parágrafo, preferindo o narrador o uso da dupla adjetivação na elaboração do retrato das personagens. Assim, a aia é caracterizada como «bela e robusta», enfatizando a sua beleza física e a sua robustez física. Os dois traços têm o condão de a humanizar, sugerindo que, apesar de ser de condição social inferior, é um ser humano que se destaca pela aparência física atraente (o primeiro) e enfatizar o seu lado maternal e capacidade de nutrição. A dupla adjetivação é o recurso usado para dar conta das características físicas dos dois meninos: o cabelo louro e fino do príncipe sugere uma imagem de delicadeza, pobreza e fragilidade da personagem (na tradição cultural ocidental, o cabelo louro é assiduamente associado à nobreza e pureza, o que sugere a sua condição social destacada); o cabelo negro e crespo do escravozinho contrastam com o do vizinho de berço e são associados a pessoas de origem africana, enfatizando, portanto, a identidade / origem étnica e social da personagem – filho de uma escrava. A adjetivação expressiva é utilizada ainda para descrever os berços. Assim, o do príncipe é magnífico, adjetivo que sugere riqueza, enquanto os nomes «marfim» e «brocados» enfatizam as ideias de sofisticação e privilégio. Por seu turno, o do pequeno escravo é «pobre» e feito de «verga», nome que expressa a simplicidade do objeto, denunciando a sua condição social inferior. Em suma, estes adjetivos vincam os contrastes sociais e materiais entre as duas crianças, bem como os traços físicos e psicológicos que distinguem as personagens.
    O retrato dos dois infantes assenta também na figura da antítese, que evidencia as características contrastantes que os diferenciam, como é o caso da cor da pele e do cabelo, a qualidade e o material dos berços.
    A comparação dos olhos de ambas as crianças a pedras preciosas realça o seu brilho e beleza.
    Outro recurso impactante e reiterado ao longo do conto é o diminutivo, aplicado às duas crianças. «Escravozinho» enfatiza a tenra idade da personagem, bem como as ideias de inocência e fragilidade, traços partilhados por ambos os infantes. Por outro lado, evidencia o facto de a condição social ser uma espécie de ferrete que a sociedade impõe desde a nascença ao filho da aia e que o acompanhará ao longo da vida. Em terceiro lugar, o termo carrega, por si, uma conotação de submissão e inferioridade, o que é enfatizado pela redução ao diminutivo, que veicula, nesta aceção, as ideias de pequenez e submissão. No fundo, reflete a mentalidade da época medieval, durante a qual as pessoas escravas eram tratadas como inferiores e menos importantes do que as restantes.


Elementos simbólicos

    O berço de marfim simboliza a riqueza e o privilégio de quem nele dorme, o príncipe, enquanto o de verga traduz a humildade e a condição social inferior do pequeno escravo.
    O facto de os dois bebés serem amamentados pelo mesmo seio pode simbolizar a igualdade na primeira infância, antes que as normas sociais se impusessem e pusessem em marcha o estatuto de cada um.

domingo, 13 de outubro de 2024

Análise do 4.° parágrafo do conto "A Aia"

 ● Personagens

    O terceiro parágrafo termina com a referência aos inimigos que ameaçavam o reino e a vida do pequeno príncipe. Na sequência, o quarto introduz um desses inimigos, o maior: o tio bastardo. O retrato que o narrador traça dele é implacável.
    De facto, ele é retratado como uma personagem vil, destacando-se pela sua depravação, caráter bravio e brutalidade. Além disso, é um homem dominado pela ambição material e grosseira, movendo-se pelo desejo de alcançar a realeza, não pelo poder que ela lhe proporcionaria, mas pelos tesouros a que teria acesso.
    Fisicamente, vive isolado num castelo nas montanhas, o que reflete a sua natureza sombria, rodeado por uma «horda de rebeldes». A comparação com um lobo, um animal predador, sugere que se trata de alguém feroz e selvagem, violento e cruel, predisposto à violência. Estamos perante uma figura que vive isolada e que lidera um grupo de malfeitores, afastado da civilização, que planeia assaltar o trono à força. De forma calculista e impiedosa (“de atalaia, espera a presa”), conspira contra o frágil e indefeso sobrinho, que perspetiva como uma presa fácil.
    Em suma, o tio bastardo é apresentado, desde o início, como um vilão cruel e sinistro, ávido de riqueza e que, qual lobo faminto, aguarda a ocasião certa para atacar a presa indefesa e saciar a sua ambição.
    Metaforicamente, o príncipe é apresentado como a presa do tio bastardo, enfatizando-se mais uma vez a sua tenra idade, fragilidade e vulnerabilidade (observar a expressividade do diminutivo «criancinha»). Por seu lado, a imagem de um “rei de mama” destaca a ironia da situação em que se encontra: apesar de ser o herdeiro de um reino vasto e abundante (“senhor de tantas províncias”) e de ser detentor de um título que lhe dá grande poder, não tem qualquer controlo sobre o seu destino e é um ser indefeso, incapaz de compreender e se defender dos seus inimigos e dos perigos que o espreitam.
    Essa ideia é acentuada pela imagem final, que no-lo apresenta a dormir pacificamente no seu berço e que contrasta com o perigo que o rodeia. Na mão, segura um guizo de ouro, um brinquedo infantil que simboliza a sua inocência e despreocupação, ao passo que o ouro indicia a riqueza e o poder que o cercam, mas que, em simultâneo, são os responsáveis pela existência dos inimigos que o ameaçam.

Espaço físico e social

    O espaço físico apresentado neste parágrafo assenta na alternância entre dois lugares: o castelo nas montanhas, habitado pelo tio bastardo, e o ambiente doméstico e protegido do pequeno príncipe, que dorme pacificamente no seu berço.
    O primeiro espaço é uma fortaleza isolada, situada no cimo dos montes, um local de difícil acesso e afastado da civilização, que enfatiza o distanciamento físico e emocional de quem nele habita em relação ao reino e seus habitantes. O tio bastardo vive como um pária, rodeado de uma horda temível, elementos que indiciam que o local em que habitam é selvagem, caracterizado pela desordem e violência, além do isolamento e solidão. A comparação da personagem com um lobo que, de atalaia, espera a presa, intensifica o caráter predatório do espaço, associando o castelo a uma espécie de covil inóspito e extremamente perigoso. Em suma, o castelo é um reflexo do seu dono: isolado, sombrio e ameaçador.
    Por sua vez, o príncipe vive num espaço contrastante, um espaço interior: um quarto onde dorme sossegadamente no seu berço, um local caracterizado pelo afeto, pela segurança e pelo cuidado. Não obstante, embora se encontre aparentemente seguro e protegido, cercado pelas riquezas do reino que, eventualmente, governará no futuro, há um perigo que o espreita vindo das montanhas.
    No que diz respeito ao espaço social, o parágrafo anterior e este introduzem uma questão relevante. Com a morte do rei, o pequeno príncipe, sem o saber e sem querer, enquanto herdeiro do trono, é o detentor do poder e da autoridade no reino, mesmo que futuro, daí que seja o foco da ação do tio, que necessita de se livrar dele para se apossar do trono. O guizo de ouro que aperta entre as mãos é o símbolo, neste contexto, da sua posição social elevada, a mesma que desperta a cobiça dos inimigos e coloca a sua vida em perigo.
    Por seu turno, o tio é uma figura marginalizada no âmbito da sociedade retratada no conto, tanto por causa de se tratar de um bastardo, de um filho ilegítimo, fora do casamento, como pelos eu comportamento rebelde e predatório. De facto, ele vive à margem da sociedade, isolado, liderando uma horda, o que tem como (outro) motivo a ambição desmedida pela riqueza e pelo poder.
    Esta personagem representa a corrupção e a ganância, que acabam por minar as relações sociais e políticas. Apesar de bastardo, não deixa de fazer parte da família real, desde logo porque é irmão do falecido rei, porém a sua ilegitimidade e o seu comportamento colocam-no em conflito com os seus. Essa ilegitimidade contrasta com a legitimidade e a pureza do príncipe, que, não obstante ser uma criança, é encarado como o legítimo candidato ao trono.

Posição do narrador

    Ao longo do conto, maioritariamente, o narrador é objetivo, porém há momentos em que se apresenta como subjetivo, visto que:
a.       usa uma linguagem judicativa: ao descrever o tio bastardo, caracteriza-o como «depravado e bravio»;
b.      socorre-se de termos (por exemplo, a interjeição «ai») que deixam transparecer a sua emotividade, sugerindo compaixão pelo príncipe.

Linguagem

    Um dos recursos mais importantes do capítulo é a adjetivação, concretamente aquela que caracteriza o tio bastardo:
a.       os adjetivos «bravio» e «depravado» enfatizam a sua natureza selvagem e vil;
b.      o adjetivo «grosseiras» e o nome «cobiças» revelam a sua faceta ambiciosa e avarenta;
c.       o adjetivo «bastardo» destaca a ilegitimidade social (alguém nascido fora do casamento), mas também, pelo comportamento, moral (fulano de tal é um bastardo, isto é, desonesto, de caráter duvidoso).
    O tio é também comparado a um lobo (“à maneira de um lobo que, de atalaia, espera a presa”), comparação essa que enfatiza o caráter cruel e selvagem da personagem. Como um predador, escondido, espera o momento certo para atacar. Assim sendo, podemos deduzir, desde já, que agora que o rei morreu, o tio se prepara para descer dos montes e atacar o palácio e o sobrinho bebé. O perigo é iminente. Assim se cria um clima de tensão e expectativa.
    O uso da interjeição «Ai», seguida da exclamação, traduz(em) a preocupação e a compaixão do narrador relativamente ao príncipe e ao seu destino.
    As figuras do tio – ambicioso, perigoso, selvagem – e do sobrinho – frágil, vulnerável, inocente, desprotegido – constituem um contraste, uma antítese.
    A construção da figura do príncipe está rodeada de uma certa ironia. Embora seja o herdeiro do trono e, em consequência, detenha grande poder e autoridade em tese, não passa de uma criancinha, de um «rei de mama», ou seja, alguém que é totalmente incapaz de exercer o seu poder e autoridade. Neste contexto, a expressão «rei de mama» sugere, em simultâneo, a sua posição de privilégio (detentor de poder e autoridade) e a sua absoluta fragilidade e vulnerabilidade, traços que contrastam com o que se espera de um rei, visto tradicionalmente como uma figura de poder e força.

Elementos simbólicos

    O guizo de ouro reveste-se de uma simbologia particular. Enquanto brinquedo infantil, representa a inocências e a despreocupação da criança; o facto de ser de ouro, torna-o símbolo de riqueza e poder, elementos que, no contexto do conto, se constituem como fonte de cobiça e conflito.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Análise do 3.º parágrafo do conto «A Aia»

    Este parágrafo é dominado pela descrição da reação da rainha à morte do marido, caracterizada por uma profunda dor e tristeza. A manifestação física visual dessa reação são as lágrimas, o choro. Por outro lado, a dor é distribuída pelas várias facetas da monarca. Assim, como rainha, chora o facto de o reino ficar sem um governo forte, de forma intensa, mas também digna (atentar na expressividade do advérbio de modo «magnificamente», refletindo a grandeza e o respeito que ela tinha pelo esposo. Em segundo lugar, chora «desoladamente» (novo advérbio de modo expressivo) o esposo, ou seja, como mulher, perde o marido, fica viúva, ressaltando neste passo a perda pessoal do companheiro amado, cujos traços físicos («formoso» e psicológicos («alegre») tornam a perda mais impactante e difícil de suportar. Todavia, o que mais a angustia é, no papel de mãe, o facto de o filho de ambos ficar desamparado e à mercê dos inimigos (atentar no valor expressivo do terceiro advérbio de modo – «ansiosamente» –, que remete para um perspetivar angustiado do futuro). Em suma, a rainha sente dor não apenas pela perda pessoal do marido, mas, sobretudo, pela vulnerabilidade em que ficam o filho e o reino.
    Neste parágrafo, conhecemos também mais duas características do rei, uma física («formoso») e outra psicológica («alegre»). Quanto ao príncipe, é enfatizado o facto de ser uma criatura frágil (convém não esquecer que é um bebé de berço) e ficar desamparado com a morte do pai, rodeado de inúmeros inimigos.

    No que diz respeito à linguagem, além da expressividade dos advérbios de modo já abordada, destaca-se a linguagem elevada e solene («magnificamente») usada para descrever o luto e a reação da rainha à morte da esposa, carregados de dignidade, apesar da tremenda tristeza e dor. Essa linguagem, no fundo, adequa-se ao caráter nobre das personagens e do meio em que se inserem.
    A anáfora e o paralelismo [“chorou (…) chorou (…) chorou”] enfatizam a intensidade e a multiplicidade da(s) perda(s) sentida(s) pela rainha: primeiro, como rainha, do rei; depois, como mulher, do esposo; por último, como mãe, do pai do filho. Esta progressão de perdas reflete a profundidade crescente do seu sofrimento. Neste contexto, podemos considerar também a existência de uma enumeração dos diferentes papéis que o rei desempenhava, que enfatiza que a perda sofrida pela rainha não é apenas política (a de um monarca, líder de um reino), mas sobretudo pessoal (a do companheiro afetivo e do pai do seu filho).
    Por sua vez, a aliteração em «f», presente em “forte pela força e forte pelo amor”, sugere a fragilidade do príncipe, que, com a morte do pai, não tinha quem o protegesse e defendesse dos perigos e inimigos que espreitavam. Por outro lado, a repetição do adjetivo «forte» reforça a ideia de grandeza do reino, nascida não só da força, mas também do amor.
    Em “o braço que o defendesse”, podemos vislumbrar uma metáfora / sinédoque que sugere a ausência de alguém que protegesse e defendesse o príncipe. Por último, o quantificador «tantos» enfatiza, sem quantificar, a grandeza da ameaça enfrentada pelo bebé, os perigos que o espreitavam. Além disso, nota-se aqui um claro contraste (antítese) entre o elevado número e a força de inimigos e a vulnerabilidade e fragilidade em que vivia.


terça-feira, 8 de outubro de 2024

Análise do 2.º parágrafo do conto «A Aia»

 ● Ação


    A ação do segundo parágrafo gira em torno de dois acontecimentos: a derrota do rei numa batalha e a notícia da sua morte.
    O rei partiu em busca de conquistar terras e da consequente fama obtida no campo de batalha, porém a derrota destruiu esses sonhos.


Personagens


    O rei é apresentado como alguém sonhador e ambicioso, pois partiu para a guerra em busca de fama e de novas terras e reconhecimento. Os seus sonhos e esperanças, porém, são estilhaçados pela derrota na guerra, redundam em fracasso trágico. A sua morte simboliza o fim das ambições de conquista e fama, gerando uma sensação de perda profunda.
    A outra personagem focada no segundo parágrafo é o cavaleiro que traz a notícia da derrota na batalha e da morte do rei. A sua única função no texto é a de mensageiro, a do portador de más notícias, as quais introduzem uma mudança nos acontecimentos. A sua descrição física dá conta do seu estado deplorável: “com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos”. Ele está exausto, passou por grandes dificuldades, sobreviveu a uma batalha sangrenta, que lhe trouxe um grande sofrimento físico e emocional. O seu aspeto físico e as armas danificadas representam a violência da batalha: o sangue seco, por exemplo, sugere claramente que o combate foi brutal, causando inúmeras mortes e destruição. Ele é um sobrevivente, o único do exército do rei, mas traz consigo a marca da derrota e da tragédia; é um homem vitimado pelos horrores da guerra, refletindo o fracasso das expectativas de conquista e glória.


Tempo e espaço

    A esmagadora maioria dos acontecimentos do conto ocorre à noite, como se pode comprovar neste parágrafo, pois quer a partida do rei quer a sua morte têm lugar nesse momento do dia.
    No caso do espaço físico, há referência ao “pó dos caminhos” percorridos pelo cavaleiro desde o campo de batalha até ao palácio e à margem de um grande rio, o local onde o rei tombou e cuja simbologia é abordada no ponto que reflete sobre os elementos simbólicos do parágrafo.

Elementos simbólicos

     Quer a partida do rei para a guerra, quer a sua morte estão intimamente ligadas à Lua. De facto, quando embarca em busca do “seu sonho de conquista e fama”, a Lua está na fase cheia, o que simboliza o seu sonho e a ilusão da conquista e da fama; porém, a sua morte ocorre quando a mesma Lua está a minguar. Ora, a fase minguante é a que antecede os três dias em que não brilha, em que «morre», portanto o minguar da Lua simboliza / reflete exatamente a derrota das tropas do rei e a sua morte. Ou seja, o ciclo lunar constitui uma metáfora da trajetória do rei: um período breve de glória e ambição desagua na derrota e na morte.
    Por outro lado, o monarca pereceu trespassado por sete lanças, sendo que este número está associado à tragédia, à morte, neste caso, do rei, morte essa que é indiciada pelas armas rotas do cavaleiro e acentuada pelo sangue e pelo facto de regressar sozinho ao reino. Além disso, a morte tem lugar “à beira de um grande rio”, o qual representa o limiar entre a vida e a morte, neste caso concreto, do rei e da elite da sua nobreza guerreira.

Linguagem

    Neste parágrafo, a Lua é personificada, como se fosse uma testemunha muda da partida do rei: “A Lua cheia que o vira marchar…”. Posteriormente, já minguante, reflete a perda e a derrota. Os nomos «sonho», «conquista» e «glória» sugerem a ambição e o ideal do rei, o que contrasta com, por exemplo, o adjetivo «perdida» e o nome «morte», que dão conta da derrota do monarca e da destruição do seu ideal, sonhos e ambição.
    Por outro lado, as descrições pautam-se por um grande visualismo, como é o caso da do cavaleiro (“Com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos.”), que enfatiza a violência da batalha e o desgaste físico e o cansaço da personagem, motivados pela longa jornada que teve de fazer e que é refletida pela longa jornada que teve de fazer e que é refletida pelos nomes presentes na expressão «pó dos caminhos».
    Na expressão «trespassado por sete lanças», podemos eventualmente vislumbrar uma hipérbole, que enfatiza a violência que rodeou a morte do rei. Por seu turno, a metáfora “a flor da sua nobreza” sugere que os que pereceram na batalha eram a elite da nobreza, os melhores e mais nobres cavaleiros dentre os melhores, reforçando a magnitude da derrota e da perda.

domingo, 6 de outubro de 2024

Análise do 1.º parágrafo do conto «A Aia»

O tempo cronológico e os contos de fadas

    O conto abre com a expressão “Era uma vez”, que transporta o leitor para o mundo dos contos tradicionais populares, caracterizados pela presença de reis, rainhas, príncipes e por um mundo de fantasia e imaginação.
    Por outro lado, a expressão situa a história num tempo indefinido e indeterminado, afastado do tempo concreto, criando, assim, uma noção de atemporalidade, ou seja, de uma época qualquer, reforçando o caráter simbólico da narrativa. Isto permite que a história seja percecionada não como um evento específico e situado num determinado local e tempo concretos, mas como algo que poderia acontecer em qualquer momento da história humana.
    Por outro lado, convém não esquecer que os contos populares veiculam uma lição ou ensinamento moral, transmitindo valores ou comportamentos, pelo que a fórmula de abertura, ao associar-lhes o conto de Eça de Queirós, sugere que a história que vai ser narrada contém um desfecho moralizante. No entanto, embora o texto pareça ter um início leve e fantasioso, na realidade prepara o terreno para a abordagem de temas profundos e um desfecho trágico, que contraria o típico «Casaram e viveram felizes para sempre».
    Além disso, a aia, uma humilde serva, normalmente um tipo de personagem secundária, assume grande relevância e um papel crucial no desenvolvimento da ação. O seu sacrifício heroico remete também para os contos populares e de fadas, nos quais por vezes figuras aparentemente secundárias e / ou desprovidas de profundidade psicológica desempenham papéis de enorme relevância e assumem um estatuto de grande importância moral ou heroica.

O tempo histórico

    Quanto ao tempo histórico, tal como sucede com o da história ou com o espaço físico, não encontramos, para já, qualquer notação que permita localizar a ação numa época concreta. No entanto, uma série de elementos presentes ao longo do texto permite situá-la na Idade Média. A existência de uma monarquia hereditária (o pequeno príncipe é o herdeiro do trono) sugere a existência de uma organização social característica da época medieval, marcada pela concentração do poder nas mãos do rei e pela continuidade dinástica. Em segundo lugar, a referência às searas abundantes aponta para uma economia de tipo agrário, onde a riqueza do reino estava associada ao cultivo da terra. Em terceiro lugar, a partida do rei para a guerra situa-nos no contexto das guerras medievais, de campanhas militares organizadas para defender ou conquistar territórios.

O espaço

    No que diz respeito ao espaço físico, a expressão “senhor de um reino abundante em cidades e searas”, por um lado, situa a ação num espaço indeterminado e indefinido (vide tempo); por outro, apresenta-no-lo como vasto e próspero / rico, simbolizando as cidades o poder político e a estrutura / organização social e as searas a fertilidade e a riqueza económica, o que indicia que o reino é bem governado e seguro, imagem que passa a estar ameaçada com a partida do rei para a guerra, facto que o deixa e aos súbditos, bem como a família (a rainha e o filho de ambos), numa situação de vulnerabilidade.
    Neste parágrafo, existe a menção a outro espaço físico – “terras distantes” –, o local para onde o rei e o seu exército partem, pois é aí que se vai desenrolar a guerra – outro espaço indefinido e indeterminado. Por um lado, o facto de o lugar ser distante enfatiza a separação e a distância enorme entre o rei e a sua família, o que acentua a situação de vulnerabilidade e o perigo crescente que a cerca. Por outro lado, estabelece-se aqui uma espécie de contraste entre o mundo externo, caracterizado pela violência e pela imprevisibilidade, e o espaço interior presumido, o palácio, que estaria conotado com a segurança, mas que agora, porém, também está ameaçado.
    No que se refere ao espaço social, a ação decorre essencialmente no ambiente da corte, representado pelo palácio real, pelo casal de soberanos e pelo seu filho bebé. Por outro lado, as personagens apresentadas neste primeiro parágrafo – o rei, a rainha e o filho – pertencem à realeza. De facto, a história desenrola-se na corte, no seio da nobreza, sendo que o monarca e a sua consorte ocupam o topo da estrutura social. O rei surge ligado ao exterior e à ação, ao estatuto de herói, enquanto a rainha é remetida para uma posição mais passiva e confinada ao lar. A sua solidão e tristeza refletem a saudade do esposo, mas também a sua posição subalterna enquanto mulher numa sociedade patriarcal, dominada por homens. Além disso, o reino é caracterizado como vasto, abundante e rico, quer em cidades, quer em riqueza. Por último, esta parte do texto indicia os diferentes papéis desempenhados pelo rei e pela rainha, que surge numa posição de dependência, juntamente com o filho, relativamente à figura do poder. De facto, a sua ausência cria uma lacuna de poder no espaço doméstico e abre caminho para que a fragilidade se instale no palácio.

Personagens

    O rei é apresentado como um nobre “moço e valente” (jovem e corajoso), o que permite, desde já, associá-lo à figura do herói que parte para combater em terras distantes. Por outro lado, é rico e poderoso (reina num “reino abundante em cidades e searas”) e ambicioso, dado que parte para a guerra em busca de fama e de novas terras, mas também imprudente, pois a sua partida deixa o reino e a sua família desprotegidos, logo vulneráveis. Note-se também que todos estes elementos permitem associar o conto ao mundo medieval e cavaleiresco, onde os monarcas tinham necessidade de defender os seus reinos através da guerra.
    Por último, há que notar que o rei não possui nome próprio, portanto é uma personagem anónima, outro traço herdado do conto tradicional popular e que caracteriza todas as restantes personagens do texto (a rainha, o príncipe, a aia, o escravozinho, etc.). De facto, todas elas são anónimas, sendo designadas pela sua condição social (o rei, a rainha, a aia, etc.) ou pelas suas características psicológicas. Este traço serve para conferir intemporalidade ao conto, à semelhança do que sucede com o tempo e o espaço.
    A rainha, igualmente nobre e jovem, é caracterizada como “solitária e triste”, traços que têm como causa direta o sentimento de abandono, pois o marido partiu para a guerra e deixou-a só. Para a sua tristeza, preocupação e saudade concorrerá também a responsabilidade de criar e proteger o filho de ambos. Por outro lado, a situação da rainha remete para o tema batido da espera e da solidão femininas. De facto, já na cantiga de amigo, encontramos a mulher que espera, ansiosa e preocupada, o homem, que partiu (para a guerra, por exemplo).É o caso, a título exemplificativo, de cantigas como “Sedia-m’ eu na ermida de San Simion” ou “Ai flores, ai flores do verde pino”. Ela enfrenta não apenas a saudade, mas também a responsabilidade de manter a estabilidade familiar e proteger o herdeiro do trono.
    Por último, o príncipe, igualmente nobre, é uma figura rodeada de carinho (diminutivo «filhinho»), mas apresentada como inocente e frágil, desde logo por ser um bebé de berço e, além disso, por causa da ausência do pai. Convém não esquecer, neste contexto, que se trata do herdeiro do trono, por isso carece de proteção constante. Ele simboliza o futuro e a continuidade do reino.

Narrador

    No que diz respeito à presença, o narrador é não participante e heterodiegético, visto que não é personagem e, por conseguinte, não participa na ação. Assim, a narração é feita na terceira pessoa (“partira”).
    Relativamente à focalização, o narrador parece ser omnisciente, visto que conhece os pensamentos e os sentimentos das personagens, como é o caso do estado de espírito após a partida do marido para a guerra: “solitária e triste”.
    Por último, no que diz respeito à posição, o narrador é predominantemente objetivo, ou seja, apenas se refere ao que observa ou conjetura, no entanto há várias passagens que o apresentam como subjetivo, como, por exemplo, o uso da interjeição “Ai”.

Linguagem

    No primeiro parágrafo, assume preponderância a dupla adjetivação. Assim, a expressão «moço e valente» caracteriza o rei de forma idealizada, quase heroica. Por outro lado, «solitária e triste» traduz a angústia, a solidão, o isolamento e a desproteção da rainha ao ver o marido ausente.
    Por sua vez, o diminutivo «filhinho» sugere o amor e o carinho que rodeiam o frágil príncipe. Por outro lado, aponta para a tenra idade da criança, que vive no seu berço, «dentro das suas faixas», protegido. Em terceiro lugar, o diminutivo acentua a inocência, a fragilidade, a vulnerabilidade do bebé indefeso, dependente dos cuidados maternos e das figuras que o cercam, como a aia. A combinação do diminutivo com a imagem do bebé enfaixado no berço acentua a sua absoluta incapacidade para se proteger ou agir por conta própria. Ele é um símbolo da vulnerabilidade do próprio reino, que depende da sua sobrevivência. Além disso, o recurso ao diminutivo contrasta com a imagem do pai, apresentado como jovem e valente. Assim, o rei é apresentado como símbolo do poder e da força e valentia, enquanto o filho é o oposto: indefeso e sem qualquer força ou poder político.
    Outro recurso muito importante é o determinante artigo indefinido («um» e «uma»):
- “Era uma vez”; “um reino abundante”, um rei”:
não permite determinar com precisão o tempo histórico e o tempo cronológico (intemporalidade);
não permite determinar com precisão o espaço físico:
contribui para a exemplaridade da história, cuja mensagem, cujo teor humano pode ser aplicado a muitos tempos e lugares;
traduz o anonimato das personagens.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Vida e Obra de Oscar Wilde

    Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde, um ícone literário irlandês dono de uma vida intensa, rica em experiências e caracterizada pelo talento, nasceu a 16 de outubro de 1854, em Dublin, Irlanda. O seu pai, Sir William Wilde, foi um médico aclamado(cirurgião de ouvidos e oftalmologista), nomeado cavaleiro pelo seu trabalho como consultor médico nos censos irlandeses. Mais tarde, fundou o Hospital Oftalmológico St. Mark, inteiramente às suas custas, para atender os pobres da cidade. Além disso, publicou obras sobre arqueologis, folclore e o escritor Jonathan Swift. Por seu turno, a mãe de Wilde, Jane Francesca Elgee, que escreveu sob o pseudónimo de Speranza, foi uma poeta revolucionária (este intimamente ligada à Rebelião dos Jovens Irlandeses de 1848) e uma autoridade em mitologia e folclore celta, aclamada pela tradução para inglês de Sidonia, a Feiticeira, uma obra da autoria de Wilhelm Meinhold que influenciou posteriormente o filho.
    Desde cedo, Oscar Wilde revelou-se uma criança curiosa, inteligente e estudiosa. Depois de ter frequentado a Portora Royal School, em Enniskillen, entre 1864 e 1871, onde se apaixonou pelos estudos clássicos e alcançou o prémio de melhor aluno nos dois últimos anos de frequência, bem como o segundo prémio em desenho no último, recebeu a bolsa Royal School para estudar no Trinity College, Em Dublin, onde permaneceu entre 1871 e 1874. No final do primeiro ano, portanto em 1872, obteve o primeiro posto no exame da escola sobre clássicos e foi premiado com uma bolsa de estudos, a maior homenagem concedida a alunos de graduação. Após a sua formatura em 1874, Wilde recebeu a Medalha de Ouro de Berkeley para o melhor aluno do Trinity College na disciplina de grego. Seguiu-se, entre 1874 e 1878, a Magdalen College, em Oxford, onde foi contemplado com a bolsa Demyship para estudos adicionais. Em Oxford, Wilde continuou a destacar-se pelo seu brilhantismo enquanto aluno, mas também como poeta, ao encetar as suas primeiras tentativas de escrita criativa. Em 1878, ano da sua formatura, um seu poema, intitulado “Ravenna”, granjeou-lhe o Prémio Newdigate de melhor composição de versos em inglês por um estudante de Oxford.
    Depois de se formar em Oxford, Oscar Wilde mudou-se para Londres, indo morar com o seu amigo Frank Miles, um retratista popular entre a alta sociedade londrina. Na capital inglesa, continuou a escrever poesia e começou a estabelecer-se nos círculos sociais e artísticos graças à sua inteligência e à sua extravagância. Rapidamente, o periódico ilustrado Punch, famoso pelo seu humor satírico e pelas caricaturas e desenhos animados, fez de Wilde o objeto satírico do seu antagonismo aos estetas por causa da sua alegada escassa devoção masculina à arte. Na sua ópera cómica, intitulada Patience, Gilbert e Sullivan basearam parcialmente a personagem Bunthorne, um “poeta carnal”, em Oscar Wilde. Em 1881, este publicou, a expensas próprias, o livro Poemas, uma coletânea que recebeu elogios moderados por parte da crítica, mas que o estabeleceu como um escritor promissor. No ano seguinte, em 1882, viajou para Nova Iorque, para participar numa turnê de palestras pelos Estados Unidos, que o levou também ao Canadá. No total, em cerca de nove meses, terá proferido 140 palestras. Quando aportou em Nova Iorque, terá declarado, nos serviços da alfândega, nada mais ter a declarar além da sua genialidade. Durante a sua estada no continente americano, Wilde foi hostilizado pela imprensa local, por causa das suas poses lânguidas e dos seus trajes, entre os quais se destacavam a jaqueta de veludo, as calças até aos joelhos e as meias de seda preta. Em simultâneo, contactou com algumas das principais figuras norte-americanas ligadas à literatura, como, por exemplo, Henry Longfellow e Walt Whitman.
    Concluída a viagem por terras do tio Sam, Wilde regressou a Inglaterra e, de imediato, deu início a novo ciclo de conferências pelo país e pela Irlanda, o qual se estendeu até 1884. Este conjunto de palestras, bem como a poesia que ia produzindo, permitiu-lhe estabelecer-se como um dos principais defensores do “aesthetic mmovement”, uma teoria de arte e literatura que enfatizava a busca da beleza por si mesma, em vez de promover qualquer ponto de vista político ou social.
    Em 29 de maio de 1884, Oscar Wilde desposou Constance Llloyd, uma mulher de famílias ricas filha de um proeminente advogado irlandês. Desse matrimónio resultaram dois frutos, Ciryl, nascido em 1885, e Vyvyan, em 1886. Um ano após o enlace, foi convidado para dirigir Lady’s World, uma revista inglesa, entre 1887 e 1889, depois de ter sido revisor da Pall Mall Gazette. Durante esses dois anos, revitalizou a revista, expandindo os assuntos que abordava e, consequentemente, o público alvo, nomeadamente focando não só o que as mulheres vestiam, como também as suas ideias e sentimentos, sobre diversas matérias, como a literatura, a arte e a vida moderna. Não obstante, deveria ser uma publicação que também os homens pudessem ler com prazer.
    A partir de 1888, enquanto ainda dirigia a Lady’s World, Oscar Wilde iniciou um período de fervilhante criatividade e escrita, durante o qual deu à luz grande parte das suas obras literárias. Assim, nesse mesmo ano, publicou O Príncipe Feliz e Outros Contos, uma coletânea de histórias infantis. Em 1891, publicou Intentions, uma coletânea de ensaios em que defendia os princípios do esteticismo, e, de seguida, O Retrato de Dorian Gray, tida como a sua obra-prima (publicada na Lippincott’s Magazine, em 1890, e em forma de livro, revisto e acrescentado de seis capítulos, em 1899), na qual o protagonista, Doriam Gray,um jovem belo, deseja (e consegue) que o seu retrato envelheça enquanto ele permanece jovem e leva uma vida de pecado e prazer, e o escritor mistura elementos sobrenaturais típicos do romance gótico com o decadentismo francês. A obra foi recebida com violentas críticas, que a acusavam de imoralidade, apesar do seu desfecho de acordo com a moral coincidente com o castigo do Mal.
    Em 1891, foram ainda publicadas outras duas obras: Crime e Outras Histórias de Lord Arthur Savile e Uma Casa de Romãs. Em fevereiro de 1892, estreou a sua peça O Leque de Lady Windermere, um texto que obteve enorme sucesso e popularidade, bem como a aclamação da crítica. Em 1893, saíram Salomé e Uma Mulher sem Importância e, sucessivamente, O Marido Ideal (1895) e A Importância de se chamar Ernesto (1895), a sua peça mais famosa.
    Neste período em que desfrutava de enorme popularidade e sucesso literário, Oscar Wilde iniciou uma relação amorosa com um jovem chamado Alfred Douglas. Em 18 de janeiro de 1895, o pai do rapaz, o marquês de Queensberry, ao tomar conhecimento do caso, acusou o escritor de ser um sodomita. Apesar de a homossexualidade de Wilde ser um segredo aberto, instado por Alfred, processou o marquês por difamação, uma decisão que arruinou a sua vida. De facto, o caso fracassou, pois as evidências foram contra si e o escritor desistiu do processo. Incentivado pelos seus amigos a fugir para França, Wilde recusou, o que levou à sua prisão e julgamento, durante o qual testemunhou de forma brilhante, porém o júri ficou num impasse e não chegou a qualquer conclusão. O julgamento teve início em março de 1895 e neste o marquês de Queensberry e os seus advogados apresentaram provas da homossexualidade de Oscar Wilde, concretamente passagens das suas obras literárias e cartas de amor endereçadas a Alfred Douglas. Foram estes dados que levaram à rejeição do caso de difamação e à sua condenação e prisão sob a acusação de “indecência grosseira”. Assim, em 25 de maio de 1895, Oscar Wilde foi sentenciado a dois anos de prisão e trabalhos forçados. A maior parte do seu encarceramento foi cumprida na prisão de Reading, a partir da qual escreveu uma longa carta a Alfred repleta de recriminações contra o jovem por o ter incentivado a levar uma vida de dissipação e a distraí-lo da criação literária.
    Oscar Wilde foi libertado da prisão em maio de 1987, fisicamente frágil e de saúde debilitada e emocionalmente exausto e falido. Partiu rapidamente para Paris, na tentativa de se regenerar como escritor, e aí viveu em hotéis baratos e apartamentos de amigos, tendo mantido um breve encontro com Alfred. Durante esse período, escreveu muito pouco, tendo-se destacado unicamente um poema completado em 1898 sobre o tempo passado na prisão – The Ballad of Reading Gaol –, no qual denunciava as condições precárias e desumanas da prisão. Não obstante os seus problemas financeiros, Wilde manteve-se alegre e foi visitado por amigos leais como Max Beerbohm e Robert Ross.
    Oscar Wilde morreu, vítima de meningite aguda causada por uma infeção no ouvido, em 30 de novembro de 1900, aos 46 anos. Nos momentos que antecederam a sua morte, foi acolhido no seio da Igreja Católica Romana, que há muito admirava.

    Uma vida em síntese:

. Nome: Oscar Wilde.

. Data de nascimento: 16 de outubro de 1854.

. Cidade natal: Dublin.

. País natal: Irlanda.

. Género: masculino.

. Obras principais: O Retrato de Dorian Gray, A Importância de se chamar Ernesto.

. Géneros literários: poesia, ficção e teatro.

. Data de falecimento: 30 de novembro de 1900.

. Local de morte: Paris.

. País: França.

 
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