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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Análise de "Nova canção do exílio", de C. Drummond de Andrade


             Este poema, constituído por 17 quadras e 1 dístico, foi publicado originariamente na Revista de Domingo do Jornal do Brasil em 1978 e republicado em Poesia numa hora dessas? em 2002, e traça um quadro simultaneamente humorístico e sinistro do final da década de setenta do século XX.

            Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o campeão foi o Guarani.

            Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais futebol por lá”.

            Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção, comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de prosseguir em prova.

            Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia, e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –, comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general (Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31 de dezembro de 1978.

            Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois, de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta (mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões. Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no Mundial do presente ano.

            Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção» pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas, que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta. Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”). A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e 1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas: “Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”. De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares, visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.

            As estrofes seguintes focam outras questões: poluição, assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade, não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na urbe se morre.

            A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real, concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.

            Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras», agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia. Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso aglomerado de figueiras.

            Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros «primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos, que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo), tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de Oliveira, Luana Piovani, etc.

            A nona estrofe explicita o quadro económico e político do ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em 1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo, o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores, substantivos, “mesmo com todo o problema”.

            As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”. A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que, para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras, empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do século XX, assente no «deboche».

            A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de 1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”, palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia» constituem uma rima interna e formam anagramas.

            A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa (“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de 1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”. A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”) reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético «atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o que já se passou há bastante tempo?

            O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte. Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de continuidade.

            As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção “Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.

            A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar para o governo norte-americano.

            Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática, casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a figura do prefeito biónico.

            A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar», conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta (deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média, nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural. De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama, Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos milhões de telespectadores.

            O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.

            Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar (que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre” foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.

            A situação é dramática: as instituições estão contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e reflexão.

 

Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de Luís Fernando Veríssimo”.

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