Quer Fernando Pessoa (o ortónimo)
quer os restantes heterónimos consideram Alberto Caeiro o seu Mestre. Porquê?
Caeiro aponta soluções para os
problemas existenciais e filosóficos que atormentam quer o ortónimo quer os outros
heterónimos.
Caeiro é, desde logo, o único que
consegue atingir a paz, a tranquilidade e a serenidade ao recusar o pensamento
e ao adotar o sentir – "Eu não tenho filosofia, tenho sentidos." –,
precisamente o oposto de Pessoa, que tudo racionalizava e era incapaz de
sentir. Caeiro é, por conseguinte, aquilo que o ortónimo não consegue ser, isto
é, alguém que não procura qualquer sentido para a vida ou para o universo,
porque lhe basta aquilo que vê e sente em cada momento.
Na verdade, todos os «eus»
poéticos pessoanos são atingidos, de uma forma ou de outra, pelo peso excessivo
do pensamento, da razão, do racionalismo, causadores de dor e impeditivos da
felicidade. Assim, Pessoa apresenta-se como incapaz de sentir; Ricardo Reis
controlar as suas emoções através do uso da razão, para evitar a infelicidade;
Álvaro de Campos, na sua fase abúlica, lamenta-se do seu vício de pensar
("Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!"). Pelo
contrário, Alberto Caeiro encontra a felicidade ao recusar o pensamento e a
existência de um lado abstrato / obscuro das coisas, defendendo a existência
apenas do concreto, do objetivo: "Sinto todo o meu corpo deitado na
realidade, / Sei a verdade e sou feliz".
Sintetizando, Caeiro é considerado
o Mestre em consequência dos seguintes princípios poéticos:
▪ Recusa o
pensamento (que implica que se deturpe o significado das coisas que
existem), a filosofia e a metafísica, a essência,
acreditando o poeta apenas na aparência (captada pelos sentidos), eliminando
assim a dor de pensar e alcançando a felicidade;
▪ Sensacionismo:
Caeiro substitui o pensamento, que considera uma doença, pelas sensações que
colhe no exterior objetivo, defendendo que nada existe para além do que é
percetível para o ser humano, para além do que é captado pelos sentidos – ou seja,
devemos percecionar, conhecer e fruir o mundo através dos sentidos, sobretudo a
visão, e o real se reduz à materialidade;
▪ Aceitação
serena do mundo e da realidade tal qual eles são: as coisas são o que são,
resumem-se à sua aparência, não têm significados ocultos, e o poeta aceita-as
como elas são, sem as questionar, sem as pensar, visto que "pensar é não
compreender" (pelo contrário, o ortónimo pensa, vê para além das
aparências, considerando que aquilo que vê é apenas a exteriorização de outra
coisa);
▪ Comunhão
com a Natureza: o ser humano deve submeter-se às leis naturais e não deve
racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as ideias de vida
ou de morte, que existem enquanto verdades absolutas), daí a negação da
existência de significados ocultos na Natureza – neste ponto, aproxima-se do paganismo;
▪ Caeiro
sente-se deslumbrado perante a natureza e a sua diversidade (a “eterna
novidade do mundo”);
▪ Caeiro é o poeta
do real objetivo e do olhar ingénuo sobre o mundo: Caeiro aceita as
ideias de vida e de morte sem mistérios, despojadas de reflexão, de pensamento,
de subjetividade;
▪ Neopaganismo:
Caeiro tem uma visão pagã da existência, resultante da comunhão com a Natureza,
que passa pela descrença na transcendência e pela opção pela sensação,
considerara a única verdade;
▪ Considera
que só o presente existe e deve ser vivido;
▪ Irregularidade
formal (verso livre, irregularidade métrica e estrófica), «seguida» por
Álvaro de Campos.
Note-se, porém, que existe uma
grande liberdade dos discípulos em relação ao seu Mestre. Por exemplo, Ricardo
Reis é discípulo de Caeiro apenas em parte, visto que ama a Natureza e o viver
lúdico da infância, mas não possui a calma e a placidez exibidas pelo Mestre
diante da passagem / do fluir do tempo e da certeza da morte. Reis receia-a e
angustia-se perante a sua mortalidade e a do ser humano em geral.
Por sua vez, Álvaro de Campos,
apesar de amar e reverenciar Caeiro, "exaspera-se por não conseguir viver
os seus ensinamentos". É o próprio Campos que afirma: "Mestre, só
seria como tu se tivesse sido tu".
Fernando Pessoa, por seu turno, é
a antítese do Mestre, porque pensa e sofre em virtude dessa racionalidade e da
consciência. Ele que afirmou que cada um dos heterónimos constitui uma espécie
de drama, o que leva alguns estudiosos da obra pessoana a falar em Poetodrama
relativamente à questão da heteronímia.
Em suma, Caeiro é o Mestre, mas
quer o ortónimo quer os heterónimos seguiram o seu próprio caminho com
liberdade.
Bibliografia:
. COELHO,
Jacinto do Prado, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa;
. Coleção RESUMOS, Poemas de
Fernando de Pessoa;
. JACINTO,
Conceição et alii, Análise de Poemas de Fernando Pessoa;
. MARTINS,
Fernando Cabral (Coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo
Português;
. MATOS,
Maria Vitalina Leal, A Vivência do Tempo em Fernando Pessoa;
. SEABRA,
José Augusto, Fernando Pessoa ou o Poetodrama;
. SENA, Jorge
de, Fernando Pessoa & Companhia Heterónima.