Português: 05/10/22

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O tempo da história de O Delfim


             O narrador-escritor visitou a Gafeira pela primeira vez em outubro de 1966, data da abertura da caça, e regressou um ano volvido, na mesma altura, com o mesmo propósito: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”

            Os acontecimentos da obra não seguem uma ordem linear, antes são apresentados de forma pretensamente desorganizada e deliberadamente equívoca ou multifacetada, para que o leitor não concentre a sua atenção na história do adultério e se dedique, tal como o Escritor, à análise e reflexão sobre outras mudanças que ocorreram na Gafeira.

            Neste contexto, o Tempo assume enorme relevância, desde logo porque é o responsável pela nova realidade que vai surgindo. Para o narrador, o Tempo assume várias facetas: tanto pode ser uma lagartixa, “um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente”, “o tempo, o nosso tempo amesquinhado”, como uma nora a girar, a escorrer pela tarde. O Tempo é um relógio cego, um relógio de maquinismos perros. A roda vai rodando minuto a minuto, sente-se, mas não se vê. Este tempo circular, repetitivo, é tão subtil como as mudanças que traz à Gafeira.

            De facto, o tempo da narrativa é circular, contém em si o início e o fim de tudo; passado e presente tornam-se iguais ao futuro e contribuem para a construção do vivido e, sobretudo, para diluir e esbater as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Por outro lado, o tempo condensa os acontecimentos, mas não os esclarece, antes procura passar uma mensagem subversiva, através de jogos de elipses, metáforas, repetições. Além disso, ao fundir o presente com o passado, apontando já para o futuro que se entrevê, as divagações do narrador permitem ao leitor compreender os movimentos da Gafeira e dos seus habitantes, camponeses que o mesmo tempo transformou também em operários.

            O narrador, que é solidário com os camponeses-operários e com a lagartixa, aparentemente imóvel, narra na primeira pessoa do presente do indicativo, o que indica que pertence àquele tempo e apoia a mudança: “Que é o tempo para estas mulheres? (…) E para o Regedor? (…) E para mim que sou o Sr. Escritor? Pergunto e tenho comigo a resposta num pedaço de papel que trouxe há pouco na loja do Regedor, uma licença passada por ordem dos habitantes da aldeia e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra.” Esta referência positiva ao tempo (“o bom sentido”) está ligado à mudança, representada pela licença de caça e em quem a passa, porque implica uma mudança profunda ao nível da própria estrutura social e económica da Gafeira. É por isso que a lagartixa se agita.

            O presente veiculado pelo narrador, a mistura entre passado e presente impede a identificação exata dos diversos momentos da história dos Palma Bravo e da Gafeira. Será particularmente difícil determinar com exatidão os acontecimentos relativos ao adultério e mesmo o relacionamento entre o narrador e os habitantes da casa da lagoa.

            Já no que concerne aos acontecimentos ligados à lagoa propriamente dita, são claros e relatados pelo Regedor, sem quaisquer omissões. Aqui o tempo foi inexorável. Trata-se de um tempo diferente, um tempo que tem de conter em si elementos condizentes com os habitantes da Gafeira, o Homo Lusitaniensis Sp., como lhe chama o narrador, um tempo que tem de ser um retrato fiel da mudança entre a modorra apática e a sociedade de consumo fielmente retratada nos blusões dos filhos dos emigrantes. O tempo na Gafeira retrata uma realidade alienada da qual a ação não é representativa, visto que peca por total falta de clareza e de movimento criativo.

            Para criar toda esta ambiência, o autor vai recorrer à narrativa ulterior, anterior, intercalada e simultânea. No que diz respeito à narrativa ulterior, ela é representada pelas recordações do Escritor, pelas citações que faz de falas de outras personagens, pelas reproduções dos seus apontamentos do ano anterior, algo que viu ou ouviu. A intercalada, por oposição, apresenta a narração que se antecipa ao acontecimento e nela se incluem tanto a mudança como o adultério. A narração intercalada respeita àquela que ocorre entre vários momentos da ação; e simultânea àquela que é feita ao mesmo tempo que acontece a ação.

            Esta anacronia reflete-se na aparente anarquia do tempo da história, que tão depressa nos transporta até ao passado, através de analepses (“volto-me antes para o Largo e, sem querer, torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo depois da missa.”) , como nos antecipa o futuro, por meio de prolepses (“«A Barca do Inferno» – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera.”), da Gafeira.

            Existe ainda o tempo da escrita, transposto para o presente, mas que já existia no passado. Exemplo disso são os apontamentos iniciados em 1966, aquando da primeira visita, e continuados na segunda e que, eventualmente, se misturam com a própria escrita do romance.

O espaço de O Delfim


             O escritor situa-se à janela, o que nos leva a coloca-lo na posição de um observador, não um observador ocasional, mas esclarecido, visto que já tinha estado anteriormente na Gafeira, onde conheceu algumas personagens, nomeadamente a família Palma Bravo; visto que já conhece a história da povoação através da Monografia do Termo da Gafeira; visto que tem curiosidade.
            Ele está num primeiro andar a rever e a pensar. Em quê? “(…) Nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo.” Note-se na expressividade deste excerto. Por um lado, a presença da forma verbal «formigam» significa que as pessoas são vistas por ele à distância, o que propicia a sua atenção e, simultaneamente, o distanciamento que é necessário à clareza de pensamento. Por outro lado, a expressão espacial «lá em baixo» estabelece o contraste entre o narrador, situado «cá», isto é, no quarto, e os outros. Estes considerandos são importantes, na medida em que cada personagem se define em termos de espaço e é a partir da Lagoa que os habitantes de Gafeira medem o mundo, enquanto o escritor o faz solitariamente a partir do seu quarto.
            Esta oposição entre espaços é muito importante, visto que a obra relata uma história de mortes trágicas e a luta pela posse de um determinado espaço físico – a Lagoa. De facto, a personagem Palma Bravo defendo o direito, suspeito, à sua posse exclusiva, enquanto os «camponeses-operários» querem-na para si. Estes últimos acabam por a deter em virtude da degeneração da aristocracia, o que faz com que o tempo circular da Gafeira assuma um sentido progressista e avance para um futuro que não repete o poderio dos Palma Bravo. Deste modo, podemos concluir que esse espaço geográfico constitui um espaço de luta onde cada personagem faz o que está ao seu alcance para conquistar a Lagoa.
            Por outro lado, o quarto é o local onde o escritor se quer fazer representar como numa «fotografia de álbum», todavia esta contém pouco de álbum de família, dado que não é possível encarar a personagem-narrador de frente. Ela olha pela janela, como já foi referido anteriormente, observa a Gafeira e pressente a Lagoa.
            Em termos de estilo, convém notar dois traços característicos da escrita de José Cardoso Pires. Por um lado, o escritor procura mais mostrar as coisas, ao estilo de uma câmara cinematográfica, em vez de as descrever. O cenário onde decorre a ação vai sendo construído à medida que se lhe acrescentam elementos, como, por exemplo, a mesa, a janela, a galinhola, o pato, etc. Cabe ao leitor preencher esse vazio descritivo. Esta fuga à minúcia é uma característica de tipo não naturalista. Nos casos em que Cardoso Pires descreve um espaço de forma mais pormenorizada, faz uso da prosa poética, da qual se obtém um efeito de não precisão. Por outro, o escritor parece preferir o nome ao adjetivo, mais uma vez na tentativa de implicar o leitor na narrativa, dando-lhe a oportunidade de construir o espaço em que a ação se desenrola. Isto não significa que o adjetivo não seja usado; é-o, de facto, mas sobretudo na descrição das personagens, que têm de ser apresentadas de forma mais precisa.
 
1. Gafeira
 
            A personagem-narrador observa a Gafeira a partir da janela do seu quarto, uma localidade que não existe na realidade.
            Outra questão a ter em conta é o significado do vocábulo. Se consultarmos o dicionário, veremos que aquele nome significa «sarna leprosa que ataca os animais; gafa; doença que ataca o gado bovino, causando o inchaço das pálpebras», etc. Assim sendo, podemos concluir que a palavra está associada a doença – atentemos no facto de a lagoa da obra possuir termas e lamas curativas.
            Além disso, convém ter presente que se trata de uma terra caracterizada pelo nevoeiro e pelos fumos diversos que dificultam e encobrem a visão, que é dominada por uma aristocracia decadente, que é marcada por um regime de censura da livre circulação de ideias, que é um espaço de luta, habitado por personagens que são ou virão a ser amputadas, hidrópicas, isto é, figuras doentes que sofrem de alguma doença física ou psicológica. Assim sendo, tendo em conta estes dados, á fácil concluir que o espaço da Gafeira é simbólico: constitui o retrato de um país oprimido, coberto de História e de mitos, conservador e desfasado no tempo, cada vez mais abandonado pelos seus habitantes, a meio caminho entre a agricultura e a indústria, em suma, uma metonímia de um certo Portugal.
 
2. Largo
 
            A palavra «Largo» é grafada no texto em itálico, à semelhança de outros elementos textuais.
            O narrador descreve este espaço como um local «… grande demais, inútil, sem sentido, apesar de estar no coração da comunidade». Esta descrição informa o leitor de que o Largo perdeu o seu sentido por se tratar de um povoado cada vez menor e por as atenções estarem concentradas essencialmente na Lagoa.
            Quando descreve a muralha que envolve o Largo, o narrador estatui o seguinte: «(…) o paredão figura mais como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto num certo sentido.» Este excerto demonstra que o narrador pretende conduzir o leitor na interpretação da muralha enquanto metáfora de algo. Mais à frente podemos ler isto: «Pois é, mas agora o largo é o que se vê. Uma muralha, um espectro. Mais exatamente, um terreiro enfeitado de argolas.» Esta passagem, juntando à anterior, mostra claramente que a narrativa é construída de forma a criar dois níveis de leitura: um, superficial, denotativo; o outro, simbólico, que exige decifração. Terá esta opção narrativa a ver com o facto de a obra ter sido escrita numa época de censura, que obrigava os autores a socorrerem-se de metáforas e símbolos cuja decifração não estava ao alcance de todos os leitores?
            Para concluir, convém reter ainda que, não obstante o Largo ser apresentado como um terreiro vazio, possui alguma vida.

3. Igreja
 
            A igreja é um espaço igualmente simbólico. Ela está unida à muralha, levando a sua sombra “uma mensagem antecipada noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só (…)”. Estes dois elementos configuram uma metáfora da situação opressora que o regime de Salazar impunha a Portugal.
            No que diz respeito ao interior do edifício, o narrador nada diz, visto que tal descrição é descartável, visto que a igreja apenas está identificada enquanto motivo para a crítica ao Estado Novo, cuja ideologia assentava em três pilares: Deus, Pátria e Família.
            A História diz-se que a Igreja enquanto instituição esteve concluída com a situação política vigente então, não usando a sua proeminência para confrontar o regime ditatorial que não respeitava os direitos humanos. No entanto, poderemos questionar se o papel da Igreja se resume unicamente a ajudar a muralha na sua missão opressora? Enquanto espaço, representa, de facto, a disforia, com a sua sombra asfixiante, contudo aparece reabilitada na pessoa do Padre Novo.
            Os três membros do clero presentes na obra simbolizam coisas diferentes: o Abade Agostinho Saraiva, uma personagem de ficção, representa o passado; o Padre Benjamim Tarroso, representa o presente enquanto continuação do passado; o Padre Novo, que constitui um exemplo de catolicismo contestatário, como o foi o bispo do Porto, por exemplo, representa o presente, perspetiva de futuro.
            Por outro lado, convém reter que o Padre Novo é jogador do Olho Vivo, “um passatempo patriótico, exclusivo dos bons portugueses”, o que significa que, mesmo dentro da Igreja, havia almas que possuíam um espírito mais lúcido e atual do que os seus chefes, que acreditavam na democracia, no progresso social, e que, por isso, eram consideradas figuras subversivas. Muitas delas foram perseguidas, presas e torturadas pela PIDE. Por outro lado, é importante notar que o Padre Novo é também conhecido por Padre Vaga-Lume, por fazer sinais com os faróis do carro, avisando, assim, os camponeses que algo não estava bem: o Engenheiro tinha sido avistado na bomba da Shell.
 
4. A loja do Regedor
 
            O Regedor, tal como o Padre Novo, não possui nome próprio, pelo que constitui também uma personagem-tipo. A sua loja é um espaço comercial característico das aldeias do interior do país. Tem quase tudo o que é indispensável à sobrevivência das pessoas, desde fósforos a farinha, tudo disposto numa desorganização arrumada que é controlada pelo dono. Por outro lado, a loja está forrada de editais e é bafienta, refletindo claramente o baixo nível de vida da maioria da população portuguesa da época e o estado débil da economia nacional, que, até há pouco mais de um século, era praticamente medieval. Aliás, esta última palavra, ou um seu sinónimo, surge várias vezes ao longo do texto. Observe-se o rol das contas de um agricultor para o seu assalariado em 1861 ou a forma como a administração paternalista controla o salário do trabalhador, dando-lho, mas em pequenas doses, para o manter na sua dependência.
            Simbolizam também este estado de subdesenvolvimento a furgoneta do almocreve que abastece igualmente a povoação; o facto de a loja acumular as funções de junta de freguesia, o que indicia que o estado não disponibilizava meios para a manutenção dignas das suas instituições; o silêncio fechado das viúvas de vivos; a festa de Natal, os cachecóis e os presentes para os filhos dos camponeses-operários, que constituem ainda marcas de um regime paternalista patrocinado pelo Engenheiro, que pratica a “caridade”.
            Para além de representar a versão oficial do contar das mortes, por ter lido os autos, o Regedor também tem uma história subversiva para contar: a criação de uma cooperativa – uma associação de caçadores que conseguiu o direito de exploração da caça na lagoa, o que representa uma viragem no tempo, isto é, um triunfo do povo sobre a classe não produtora.
            A loja é suficientemente sossegada e pachorrenta para permitir conversas que não se podem ter noutros lugares, dado que termos como “política” e “progresso” não podem ser pronunciadas em todo o lado. Como sói dizer-se, as paredes tinham ouvidos e existia sempre o perigo de quem pisava o risco ser denunciado à polícia. Note-se, porém, que estas conversas falavam de política precisamente por a evitarem, mas nomeando-a: “Nada de política, nada que não fosse rigorosamente dentro da lei”.
            Na parede da loja, pode ver-se um calendário com os seguintes dizeres: John M. da Cunha – Grocery Store & Meat Market – Newark, N. J. O objeto remete, assim, para gente que está emigrada noutros locais e que é recordada diversas vezes, o que é confirmado pela frequente passagem de “viúvas de vivos” pelo espaço narrativo.
 
5. O café
 
            A pensão onde está hospedado o narrador situa-se no fim da rua que vai desaguar no largo e defronte àquela está o café, que conquistou alguma freguesia às “tabernas sonolentas” daquele espaço.
            O café é o local de encontro da aldeia, onde todos vão, desde o habitante ao forasteiro caçador. Por isso, o narrador evita esse espaço, para preservar o seu estatuto de homem empenhado na recordação e na observação. Para além disso, é fácil adivinhar o que lá se passa; as conversas entre o Cauteleiro e o Batedor ou entre caçadores são conhecidas. Por outro lado, é lá que se sabem todas as notícias, desde logo porque o café tem uma televisão, e é lá também que o narrador fica a conhecer grande parte da narrativa enviesada do Cauteleiro. Deste podemos, podemos concluir que este espaço funciona para o Escritor como fonte de informação, mas mais ainda como espaço de oposição. Esta personagem é bastante solitária, pelo que, quando dialoga com alguém, o faz normalmente para obter alguma informação, caso contrário é encontrado no quarto, “no seu posto”, como um “guerreiro das letras”.
 
6. A casa da lagoa
 
            Ad usum Delphini, ou seja, “para uso do Delfim”, é a legenda que o narrador imagina para a casa dos Palma Bravo.
            Mas, afinal, o que é o Delfim? De acordo com o dicionário, o delfim é o primogénito, o herdeiro do trono de França. Ora, se jogarmos ao “olho vivo”, podemos fazer a seguinte associação: herdeiro – Palma Bravo – Delfim – Marcelo Caetano.
            A casa da lagoa é o território exclusivo dos Palma Bravo. É a partir deste espaço que algumas personagens se definem, como, por exemplo, a esposa e o criado mestiço, que representa as ex-colónias portuguesas em África. Por outro lado, a casa acompanha a história da família aristocrática, pelo que, através dela, ficamos a conhecer alguns dos antepassados do Engenheiro.
            Anteriormente, a casa era maior, no entanto, após o terramoto da pólvora, isto é, uma explosão que ocorreu quando um antepassado preparava pólvora para ajudar o exército que pretendia manter a situação política que existia, obrigou a que tivessem de a reconstruir mais pequena. O edifício assenta sobre uma adega – o bodegón. A parte superior é constituída pelos quartos, pela cozinha e, mais importante, pelo estúdio, uma grande sala que o Engenheiro mandou envidraçar para melhor ver e ser visto. Abaixo dos jarrões da varanda sem grades situa-se o pátio, o território do Domingos, o criado. Um pouco mais abaixo estende-se a fumosa lagoa.
 
7. A Lagoa
 
            A Lagoa constitui o espaço referencial por excelência: é a partir dela que os camponeses-operários medem o universo. Isto significa que o largo morreu e que a lagoa passou a ser o móbil da luta entre o Engenheiro e os camponeses-operários e que essa luta é ganha por aqueles que Fernão Lopes apelidou “arraia-miúda”. Esta lógica de tensão entre os espaços é o que marca o lugar do homem no mundo. Salazar, quando declarou que quem não estava com ele estava contra ele, demarcou claramente o espaço político de Portugal durante o seu longo consulado. De um lado, situava-se uma minoria, enquanto no outro estavam todos aqueles – aos milhares – que, mesmo não se envolvendo ativamente no movimento antifascista, ansiavam pela democracia, pelo progresso social e, consequentemente, se opunham ao regime.
            Efetivamente, tudo passa pela Lagoa, cujas águas são contraditórias: milagrosas, queimam, são o sepulcro, o desejo, o motivo de pesca clandestina. Por ser simbólica, cada pessoa tem a sua forma particular de a tornar sua, o que faz com que parte do seu simbolismo permaneça sempre nebuloso.
            A Lagoa é “uma ilha de água cercada de terra”, tal como Portugal é uma península cercada de água e, como ela, ligada à vida por uma estreita passagem. A personagem-narrador conhece-a bem, bem como aos animais que a habitam, e concede-lhe algumas das passagens mais poéticas da obra, em suma, ama-a.
            Quanto mais é nomeada, mais carga simbólica adquire, exatamente o percurso inverso ao das personagens, como é o caso, por exemplo, do Engenheiro, que vai sendo descaracterizado à medida que se vai carregando de epítetos: Infante, Tomás Manuel Undécimo, mitómano que repete os gestos dos avós e se apropria dos seus traços de personalidade mais marcantes, o que vinca a sua falta de personalidade. Como foi referido, com a Lagoa sucede exatamente o oposto: quanto mais epítetos lhe são acrescentados (um halo, uma nuvem, queima, é milagrosa, santa, maldita, omnipresente, criada pela pata de um ganso mitológico) mais mítica se torna.
            Palma Bravo defende este espaço com todas as suas forças, pois sente que o seu fim está próximo, isto é, não propriamente a sua existência física, mas o seu modo de vida, o seu poder. Por seu turno, o narrador urde a sua teia para mostrar as várias facetas da sua degenerescência, como o questionamento sobre a sua virilidade, ou o pôr em causa do regime paternalista, como sucedeu na festa de Natal. De facto, a Lagoa é tão importante para Palma Bravo que é nela que deseja fazer a sua campa, o que indicia também a sua avareza atávica, dado que, não tendo um delfim a quem a deixar como herança, não a vai largar mesmo depois de morto, ou seja, não cede o poder a ninguém. Esta personagem é um homem completamente acabado, apesar dos seus trinta anos, visto que, não obstante limitado, lê os sinais do tempo que são claramente desfavoráveis a quem pretenda perpetuar uma circularidade temporal.
            A ociosidade pode causar o esvaziamento do ser, o que, juntamente com a provável impotência ou homossexualidade de Palma Bravo, fazem da sua esposa, Maria das Mercês, uma mulher “inabitável”, logo insatisfeita, infeliz. Para ela, a Lagoa é um espaço disfórico, isto é, difícil de suportar, um autêntico fardo. Aí, vive sozinha, sem ninguém do seu estatuto cultural com quem possa conviver. Deste modo, aliena-se, embora tente desesperadamente iludir a sua existência vazia fazendo tricô para a caridade, com a televisão e as revistas. Quando finalmente procura realizar-se como mulher com Domingos, que “tinha coração de passarinho” e que, por isso, falece após o coito ou ainda durante o ato na sua cama, ela foge, alucinada pelo medo da vingança do marido ou pelo pânico do pecado da mulher burguesa, acabando por morrer numa zona pantanosa da Lagoa, a Urdiceira.
 
8. O espaço interior
 
            O espaço interior possui uma grande relevância em O Delfim, desde logo porque as confidências, as conversas clandestinas, por serem subversivas, só ocorrem em espaços fechados como o bodegón, o carro do Padre Novo e a loja do Regedor. Exemplo disso é a conversa travada entre a personagem-narrador e o Engenheiro no bodegón (capítulo VIII), durante a qual falam de política e de convicções e que vem demonstrar a supremacia argumentativa do Escritor relativamente ao Engenheiro, que se vai tornando previsível, tão grande é a sua estreiteza de vistas e a circularidade do seu discurso.
            A sabedoria do Engenheiro resido no que viveu e numa sequência de provérbios e máximas bastante duvidosos, dado que, para um provérbio que diz sim, existe outro, igualmente válido, que diz não. Esses provérbios e máximas não vão além do senso comum, enquanto a argumentação do Escritor possui uma finura socrática que o faz prevalecer sobre o marialvismo do seu antagonista.
            O bodegón é um espaço exclusivamente masculino, tal como o Bar da Shell, ou o Cais do Sodré. Porém, mesmo dentro do estúdio existem lugares demarcados. Assim, Maria das Mercês senta-se no chão entre as revistas (Elle, Horoscope, Flama), enquanto o marido fica deitado no maple, com um braço pendurado para a bebida que repousa em cima do tapete. Deste modo, a figura feminina situa-se num plano inferior relativamente ao marido e de igualdade em relação à bebida, o que a reduz à condição de objeto “ad usum Delphini”. De acordo com o lema Deus, Pátria e Família, o papel da mulher é servir o homem, zelando pelo seu bem-estar e pelo da restante família. Por outro lado, o Engenheiro é uma figura marialva, isto é, um macho dominador. Como já foi referido, Maria das Dores é uma personagem marcada pela solidão, para a qual também contribui o facto de não ter filhos, daí ter de se distrair e ocupar o tempo com algo: o tricô para a caridade, a televisão, as revistas, a confeção de bolos, o fumar de cigarros nervosos…
            Dentro das quatro paredes da sua casa, Palma Bravo domina todas as conversas, reduzindo qualquer tentativa de participação da mulher ao silêncio, recorrendo ao sarcasmo ou a qualquer tema que lhe seja desagradável, monopolizando-a. Porém, apesar de Maria das Dores ser uma mulher paciente e resignada, são visíveis nela sinais que indiciam uma mudança, como, por exemplo, a descoberta do seu corpo, ou o aconselhar Domingos a não acompanhar o amor ao Cais do Sodré. Maria das Dores tanto questiona a autoridade do homem que a tornou inabitável que acaba por sucumbir ao adultério com Domingos, com as trágicas consequências já referidas. Mas isso sucede num tempo posterior. Por agora, existe uma rivalidade entre a mulher e o criado, pois ela sente que muita da atenção que é dedicada a Domingos lhe deveria ser dispensada a ela.
            Parece clara a existência de um rancor muito profundo em Maria das Dores e dedicado ao criado, uma sombra do marido, já que Palma Bravo entende ser o Pigmalião, ou seja, o criador de Domingos. Talvez por isso ela concretize o adultério com este, o que faz com que o Engenheiro sofra uma dupla traição, o que só parece comprovar a degenerescência da sua força. Esta espécie de triângulo amoroso é particularmente complexa, nomeadamente por o Engenheiro ser impotente, homossexual ou ambas as coisas. Nas palavras do Cauteleiro, “(…) quem muito fornica acaba fornicado”.
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