Português: Eugénio de Andrade
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domingo, 17 de setembro de 2023

Análise do poema "Rapariga descalça", de Eugénio de Andrade


    O poema abre com uma nota temporal geradora de desconforto: chove. Estamos num dia característico do início da primavera, mais concretamente de abril: “A chuva em abril…” (v. 5). É nesse dia que o sujeito poético observa uma rapariga a descer (verbo de movimento) a rua e que capta a sua atenção. Passa, de seguida, à sua caracterização: caminha descalça (o que indicia pobreza); os seus pés são formosos e leves (a dupla adjetivação enfatiza a sua beleza e a agilidade e leveza do andar); “o corpo alto / parte dali, e nunca se desprende” sugere um corpo que constitui um todo que se apresenta harmonioso e agradável ao olhar. A repetição da expressão “são formosos” (vv. 2 e 3) intensifica a beleza dos pés.
    A caracterização prossegue na terceira e última quadra: ela é alegre (“canta”); corre enquanto desce a rua em direção ao mar, ligeira e veloz (“corre, voa”), como a gaivota que «passa» diante dos «olhos» do «eu» poético; é terrena, mas, perante a visão do mar, transfigura-se em corpo alado e etéreo (“brisa”), transformando-se, assim, no símbolo da leveza e da libertação. Neste passo do poema, destaca-se o recurso à enumeração do verso 11 (“canta, corre, voa”), que sugere a transfiguração da jovem num ser alado e etéreo através da aceleração progressiva do seu movimento. Outro recurso essencial na caracterização é a adjetivação (“pés descalços”, “formosos”, “formosos e leves”, “alto”), que acentua a expressividade do quadro sugerido no poema.
    Na segunda quadra, o «eu» procura traduzir a beleza daquele dia primaveril, apesar de chuvoso. O que o torna belo e permite superar o incómodo da chuva é a observação da passagem da rapariga, que faz com que o dia surja aos seus olhos como “um jogo inocente de luzes, / de crianças ou beijos, de fragatas”. Esta metáfora / imagem forma um quadro que associa àquele dia visões encantatórias de amor e afeto (“beijos”), de viagem (“fragatas”) e de sonho. Na descrição do dia, destaca-se a sinestesia “o sabor do sol” (v. 5), através da qual se opera a fusão dos sentidos (o gosto, a visão e o tato) e sobressaem elementos sensoriais que a chuva sugere, como o ruído da chuva e o brilho das gotas (“cada gota recente canta na folhagem” – v.6 – animização).A metáfora “O dia é um jogo inocente de luzes” (v. 7) constrói uma imagem de luz pura que torna aquele dia um momento de beleza, de inocência, de amor, de viagem e de sonho. A nível estilístico, destacam-se também as sensações, nomeadamente a visão (“Uma rapariga desce a rua.” – v. 1), o paladar (“A chuva em abril tem o sabor a sol” – v. 5), a audição (“Chove” – v. 1) e o tato (“leves” – v. 3)
    Nesta segunda estrofe, as referências ao tempo são muito significativas. Por um lado, sugerem o vigor da primavera (“A chuva em abril tem o sabor do sol” – v. 5); por outro, remetem para um ambiente diurno e luminoso (“O dia é um jogo inocente de luzes” – v. 7); em terceiro lugar, associam, metaforicamente, o ambiente descrito pelo sujeito poético a características da figura feminina, como a inocência e a alegria (vv. 7-8).
    O sujeito, assim que vê a rapariga a descer a rua, não esconde o seu encanto e deslumbramento face à beleza e graciosidade dela. Esse encanto é tal que ele consegue ver beleza naquele dia de chuva. Noutras circunstâncias, sem a imagem da jovem, seria um dia incómodo.
    O poema é constituído por três quadras, num total de 12 versos brancos de métrica irregular, predominando o verso decassílabo. Na primeira, o «eu» traduz o seu encantamento por uma rapariga que desce a rua e, de seguida, descreve-a, salientando a beleza dos seus pés descalços, a elegância do seu corpo alto e a sua graciosidade. Na segunda, o sentimento de encanto intensifica-se. O sujeito lírico capta a beleza daquele dia primaveril, apesar da chuva, motivada pela passagem da rapariga. Na terceira, a imagem da jovem, que, com a sua leveza, graciosidade e agilidade, parece perder a sua condição terrena e se torna etérea, sobrepõe-se à imagem de uma gaivota que passa diante dos seus olhos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Análise de "Que fizeste das palavras"

             O poema, de Eugénio de Andrade, baseia-se no recurso intenso à interrogação retórica. Assim, o «eu» começa por questionar um «tu»: “Que fizeste das palavras?” Com esta interrogação retórica, ele reflete sobre o seu ofício de poeta, que é alguém que trabalha com as palavras. Ora, estas são constituídas por vogais e consoantes, resultam da fusão desses dois elementos.

            As vogais são «azuis» (sensação visual), cor que simboliza a tranquilidade e a paz (a cor azul relembra, por exemplo, o céu e o mar, que reflete aquele), enquanto as consoantes ardem entre o “fulgor / das laranjas [cor quente] e o sol [símbolo de vida] dos cavalos” (animais que representam a força e a vitalidade). Assim sendo, as palavras possuem um grande potencial e diversidade. Por outro lado, estas metáforas traduzem a relação das palavras com a Natureza.

            No terceiro terceto, o «eu» poético associa, metaforicamente, as palavras a “minúsculas sementes” (vv. 8-9), relacionando-as novamente à Natureza. Através desta metáfora (as palavras são sementes), ele sugere que o poeta e uma espécie de semeador, pois fá-las germinar, ou seja, semeia-as e fá-las nascer e crescer, isto é, o poeta constrói o poema como se se tratasse de um ser vivo. Então, isto significa que o poeta é um criador, dá vida (ao poema, à poesia) e tem de ser muito cuidadoso com o seu ofício.

            Por outro lado, a poesia constitui uma tarefa de grande responsabilidade e as palavras têm grande potencial, pois são sementes, de onde surge uma planta. O ofício de poeta é um labor, um trabalho, uma construção e uma consciência do que se faz, com o objetivo de traduzir inquietações ou emoções do ser humano.
 

sábado, 11 de setembro de 2021

Análise do poema "Ver claro"

             Este poema de Eugénio de Andrade centra-se na questão poética. Ele tem início com uma afirmação perentória: “Toda a poesia é luminosa” (v. 1). Quer isto dizer que a poesia contém a verdade que lhe é característica; o problema reside no facto de os sentimentos, as emoções ou os preconceitos do leitor (a metáfora “nevoeiro dentro de si”) o impedirem de “ver claro”, ou seja, de compreender o que lê.

            Há, porém, uma solução para essa incompreensão: o contacto contínuo com o texto poético, ideia traduzida pela reiteração “outra vez”. Esse contacto continuado com a composição poética, por causa da forma insistente como é feito, acabará por familiarizar o leitor com os processos característicos do texto poético, o que fará com que a poesia se torne clara (atente-se na expressividade da hipérbole “ficará cego de tanta claridade” – v. 10).

            Note-se, porém, que o alcançar dessa luminosidade é apresentado sob a forma de condição, traduzida pela oração subordinada adverbial condicional presente entre os versos 6 e 9. Assim sendo, não é certo que o leitor chegue mesmo à compreensão do texto; pelo menos, se não mantiver o tal contacto ativo e continuado com ele.

            Essa dúvida permanece no último verso do texto, através do qual o sujeito poético parece querer abençoar todo o leitor que “viu a luz, a luminosidade” da poesia: “Abençoado seja se lá chegar”.

            Tendo em conta esta análise, o título do texto torna-se ele próprio claro: apontará para uma definição de «poesia», dado que remete para o seu principal objetivo, que passa por observar sem constrições as ideias ou sentimentos expressos pelo sujeito poético.

sábado, 16 de maio de 2020

Análise do poema "Green God", de Eugénio de Andrade

Título

O título do poema surge em inglês. O adjetivo “green” remete para a cor que predomina na natureza – o verde –, a qual nos remete também para questões ambientais.

O nome “God” associa a figura descrita no poema a um “deus”, que, no entanto, possui traços humanos: o corpo (v. 3), os passos (v. 8), os braços (v. 9) e o sorriso (v. 11).

 

Análise do poema

1.ª estrofe

• O corpo do “Green God” é associado, nos dois primeiros versos, à graciosidade das fontes e, nos versos 3 a 5, é comparado a um rio e à sua serenidade.

• As fontes simbolizam a água viva e a pureza, sendo, por isso, símbolo de vida.

• O rio simboliza o movimento, a passagem, a fertilidade, a renovação, a juventude.

• Deste modo, o retrato que a primeira estrofe nos permite traçar do Green God é caracterizado pela graciosidade, pela serenidade, pela juventude e pela vitalidade, em comunhão com a natureza.

2.ª estrofe

• A segunda estrofe abre com nova comparação: “Andava como quem passa / sem ter tempo de parar” (vv. 6-7).

• De seguida, é descrito o processo de vegetalização do corpo: o “deus” vai-se metamorfoseando e fundindo com a natureza, que, por sua vez, se vai transformando à medida que ele passa:

‑ ervas nascem dos seus passos;

‑ troncos crescem dos seus braços;

‑ transforma-se numa flor ao vento, que se vai desfolhando ao dançar (vv. 12-13).

• É um deus, portanto, criador de vida.

3.ª estrofe:

• Esta estrofe inicia-se com nova comparação: o “deus” sorria como quem dança. 

• O vocabulário predominante na estrofe pertence ao campo da dança e realça a vitalidade, a graciosidade e a alegria do corpo, dançando e tremendo ao ritmo da música.

 

Retrato do Green God

▪ É um deus vivo e criador: os seus passos criam ervas e o seu corpo cria troncos.

▪ É um deus que sorri e dança quando passa, criando uma atmosfera de encantamento.

▪ É um deus que se vegetaliza, que transforma e se funde com a natureza. O processo de vegetalização do seu corpo atesta o seu caráter telúrico.

▪ É um deus associado às artes, nomeadamente à poesia, à dança e à música.

 

A tradição literária e a contemporaneidade no poema

▪ O tema da natureza está presente na literatura portuguesa desde a Poesia Trovadoresca, passando pelos clássicos renascentistas, até à contemporaneidade.

▪ O mesmo sucede com a temática do bucolismo, presente na imagem da flauta.

▪ O uso do verso heptassílabo está presente na literatura nacional desde o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, e dos clássicos renascentistas.

▪ A modernidade/contemporaneidade deste poema reside na abordagem ecológica da temática da natureza.

Análise de "Quando em silêncio passas entre as folhas"

O sujeito poético dirige-se a um «tu» que passa, silenciosamente, na natureza.

Essa natureza relembra, de certa forma, o «locus amoenus» clássico: as folhas, a ave, as espigas e as fontes são os elementos que a representam.

O «tu» tem um grande impacto e enormes efeitos na natureza:

faz renascer as aves;

as espigas, maduras, tremem;

as fontes param, contemplando-lhe a face.

Em suma, ele provoca alegria na natureza e é detentor de um poder divino, o de dar vida: ele traz da morte as aves.

O sujeito poético mostra-se fascinado com esses efeitos que o «tu» tem na natureza.

Ainda que curto, o texto é bastante rico em matéria de recursos expressivos:

▪ a personificação da natureza (“comedidas / param as fontes”);

▪ metáfora:

. “tremem maduras todas as espigas”;

. “param as fontes a beber-te a face”;

comparação: “como se o próprio dia as inclinasse”.

Estes recursos enfatizam a humanização da natureza e os efeitos nela provocados pela passagem do ser descrito.

O poema é constituído por uma única estrofe, de 7 versos (sétima), todos eles brancos ou soltos e de rima cruzada, de acordo com o esquema rimático ABCDEDE.

Análise de "Agora as palavras", de Eugénio de Andrade

Ao longo do poema, opõe-se dois tempos: o presente (“agora” – v. 1) e o passado.

Com a passagem do tempo, a relação do sujeito poético com as palavras alterou-se e, no presente, é caracterizada pelo seguinte:

» passou a sentir mais dificuldade em dominar as palavras (“não fazem / caso do que lhes digo” – vv. 3-4), que o ignoram;

» as palavras começaram a resmungar (“A propósito / de nada resmungam” – vv. 2-3);

» as palavras não lhe obedecem (vv. 1-2) ou obedecem-lhe muito menos;

» as palavras desrespeitam-no, desrespeitam a sua idade (“não respeitam a minha idade.” – v. 5);

» as palavras são “ariscas” e escapam-se-lhe “por entre / as mãos” (vv. 16-17);

» as palavras mostram-lhe os dentes, como forma de protesto (verso 17).

A referência à idade do «eu» lírico no verso 5, associada aos dois versos finais, significa que, com a passagem do tempo, aquele reconhece que a sua relação com as palavras se alterou e parece não ter a certeza acerca de quem é responsável por essa mudança. De facto, embora ao longo do texto lhas pareça atribuir, a interrogação desses dois últimos versos parece indiciar que não tem a certeza disso.

Ao longo do poema, predomina a personificação das palavras, a quem são associados atributos humanos e que parecem ter vida própria. Sobretudo no presente, mostram-se independentes, sentem, reagem e lutam com o sujeito poético.

Por outro lado, é-lhes associado um caráter metafórico, ao serem associadas a animais: elas são desobedientes, arreganham os dentes (como um cão, por exemplo), eram controladas pela rédea (como um cavalo) do sujeito poético. Todos estes recursos, incluindo a personificação, contribuem para dar vida às palavras e sugerir que o ofício de ser poeta é bastante exigente.

Os versos 6 a 9 permitem-nos compreender perfecionismo e o processo de criação artística sustentado pelo «eu»: é um processo meticuloso e rigoroso – ele trabalha as palavras com rigor (“mão rigorosa” – v. 8), caracterizado também por um controlo absoluto delas (daí o uso do nome «rédeas») e pela recusa dos artifícios (“a indiferença pelo fogo de artifício.”).

Pelo contrário, no passado, as palavras gostavam do sujeito lírico (“e elas durante muitos anos / também gostaram de mim” – vv. 11-12), eram obedientes, causavam-lhe alegria e entre ambos havia uma relação harmoniosa (“dançavam / à minha roda quando as encontrava.” – vv. 12-13). Esta relação passada entre o «eu» e as palavras é explicitada a partir dos dois pontos.

A metáfora do verso 14 (“Com elas fazia o meu lume”) estabelece uma associação entre palavra, poesia e vida. O lume, o fogo, equivale a vida.

A interrogação final, como já foi referido, aponta para uma explicação alternativa para a mudança operada nas palavras: talvez tenho sido, afinal, o sujeito poético quem mudou, visto que passou a procurar as palavras mais difíceis (“Ou será que / já só procuro as mais encabritadas?” – vv. 18-19).

Ao longo do texto, o sujeito poético enuncia as possíveis causas para esta alteração de comportamento das palavras. Em síntese:

1.ª) o envelhecimento do sujeito poético (“não respeitam a minha idade” – v. 5);

2.ª) o sujeito poético não sabe escolher as palavras mais apropriadas (vv. 18-19);

3.ª) as palavras cansaram-se do controlo excessivo por parte do sujeito poético (“Provavelmente fartaram-se da rédea” – v. 6).

 

Intertextualidade

Se relacionarmos este poema com outros de Eugénio de Andrade, como, por exemplo, “As palavras”, verificamos que, neste último, as palavras se deixavam dominar e controlar pelo poeta, ao contrário do presente, em que se mostram rebeldes, esquivas e indomáveis.

 

Processo de criação artística

O sujeito poético relaciona-se de modo quase conflituoso com a sua poesia, em decorrência da tensão que existe entre a sua vontade de trabalhar as palavras e a incapacidade de o fazer, como confessa nos versos 16 e 17.

Por outro lado, declara todo o rigor, perfecionismo e recusa do “fogo de artifício” com que encara o processo de criação poética.

Análise do poema "Amoras", de Eugénio de Andrade

Neste poema, o sujeito poético começa por associar o seu país a algo positivo – as amoras bravas no verão: ambos têm o mesmo sabor.

De seguida, nos versos 3 e 4, através da personificação, identifica alguns traços negativos do país: a simplicidade e a pequenez (“não é grande” – v. 3), a falta de inteligência (“nem inteligente” – v. 4). Estamos, portanto, perante um país pequeno, fechado (v. 10), pouco inteligente e feio.

A conjunção coordenativa (“mas” – v. 5) introduz uma outra visão do seu país, novamente positiva, como no início do texto: é doce e alegre, mesmo em circunstâncias difíceis, ideia presente na referência às silvas (v. 6), uma planta selvagem que causador e sofrimento quando nelas nos picamos.

No verso 7, o sujeito poético declara que raramente falou no seu país e assinala uma possível (advérbio “talvez”) razão que está na base desse facto: a falta de afeto por ele (“nem goste dele” – v. 8), a juntar aos defeitos apontados anteriormente: a ausência de dimensão, de inteligência e elegância.

O verso 10 associa ao país do sujeito poético um outro traço negativo: o fechamento, o isolamento, a falta de horizontes e liberdade, como se pode inferir da referência a “os seus muros”.

No entanto, a oferta de amoras bravas por parte de um amigo faz com que o sujeito poético ganhe consciência de que o seu país é humilde e alegre, de certa forma, o que o faz libertar-se temporariamente da contrariedade que constituem os “seus muros”, que limitam os horizontes. Nesse momento de generosidade e amizade, os muros parecem-lhe brancos (paz, pureza) e apercebe-se de que o céu é, ali, também azul, ou seja, também ali é possível ter uma existência feliz.

sábado, 9 de maio de 2020

Análise do poema "A sílaba", de Eugénio de Andrade

Assunto: o sujeito poético encara o ato de escrever poesia, por mais ínfimo que seja, como essencial à vida do poeta.

 

Título

O título sugere que a poesia está presente em tudo na nossa vida, desde a realidade mais simples e ínfima, como, por exemplo, a sílaba.

 

Análise

▪ O sujeito poético abre o poema, afirmando que passou toda a manhã à procura de uma sílaba. Esta referência sugere que o ato de escrever poesia é um processo demorado, paciente e pormenorizado: a procura ocupa uma manhã inteira, sendo feita, portanto, de forma lenta e cuidadosa. Em suma, a escrita poética é um processo lento/moroso, aturado e demorado. Repare-se, aliás, na relação que se pode estabelecer desde já desta composição com o título da obra de que faz parte: Ofício de Paciência.

▪ A criação poética é um ato de conquista de cada palavra e é exemplificado através da busca da sílaba perfeita ao longo de uma manhã. Essa sílaba é entendida como fundamental, crucial (“faz-me falta. Só eu sei / a falta que me faz.”).

▪ A conjunção coordenativa adversativa («mas») estabelece uma relação de contraste com os três primeiros versos: o sujeito poético mostra que tem consciência («é certo») da aparente «insignificância» da sílaba (“É pouca coisa”, “quase nada”), mas ela faz-lhe falta, é crucial para que o poema esteja depurado (“Mas faz-me falta.” – v. 4). Por outro lado, isto mostra a insatisfação do sujeito poético; além disso, o processo de criação poética, laborioso como é, está atento ao mais elementar constituinte da palavra: “uma vogal, / uma consoante”.

▪ O verso 6 reafirma, ou confirma, que o ato de escrever poesia é “um processo aturado de atenção, pormenor e rigor” (CAMEIRA, Célia et alii, Mensagens): “Por isso a procurei com obstinação.”.

▪ Essa procura obstinada da sílaba é mais facilmente entendida se a relacionarmos com as referências às estações do ano: a sílaba que irá formar a palavra que irá constituir o poema será o princípio do processo de criação de um produto artístico que permanecerá para além do “frio de janeiro” ou da “estiagem / do verão”, isto é, que permanecerá no tempo.

▪ De facto, o verso 7 apresenta a poesia como uma forma de defesa “do frio de janeiro, da estiagem / do verão”, ou seja, da passagem do tempo. Esta referência às estações do ano constitui então uma metáfora precisamente da passagem do tempo e da efemeridade da vida.

▪ Assim sendo, esta sílaba representa a «salvação» do sujeito poético face à voragem do tempo. Para se defender dela, ele necessita de encontra a sílaba certa (“Uma sílaba. / Uma única sílaba.” – vv. 9-10), ou seja, o poema (sinédoque). O poema / a poesia é a forma que o “eu” lírico encontrou para sobreviver à passagem do tempo.

▪ A sílaba representa a construção do poema, que implica uma busca constante da palavra exata, que conduzirá ao poema «perfeito». Não é uma palavra qualquer que serve para um determinado poema; as palavras combinam-se, nos versos, pelos seus sentidos, sons, etc. Como refere Alberto Caeiro no poema XXXVI, o poeta que é artista põe verso sobre verso, como quem constrói um muro, vê se está bem e tira se não está.

▪ O que está aqui em causa é a busca incessante do sujeito poético pela palavra, pelo verso, em suma, pela poesia que o salvará. A arte poética, um dos temas poéticos preferidos de Eugénio de Andrade, constitui, neste poema, uma reflexão sobre a própria composição poética (aquilo que se costuma designar metapoesia, ou seja, a poesia sobre a própria poesia), na qual o «eu» procura essa «sílaba» que lhe falta.

 

Conceção de arte poética

A poesia é encarada como uma salvação essencial à vida do poeta, uma defesa contra a passagem do tempo, bem como uma vida para a redenção, um instrumento na busca pela perfeição.

Por outro lado, o processo de criação poética é uma tarefa aturada, obstinada, laboriosa e de difícil execução.

 

Estrutura formal

Estrofe: uma décima.

Versilibrismo: o poema é constituído por um número diferente de sílabas métricas.

Rima: ausência de um esquema rimático definido.

 

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O significado de árvores, flores e frutos na poesia de Eugénio de Andrade

     «A obra de Eugénio de Andrade (1923-2005) é rica em alusões a diversas árvores, frutos, flores, e folhas de erva. Neste artigo, examino esta curiosa recorrência na poesia eugeniana, realçando: a) o significado simbólico e a ressonância mítica de certas plantas; b) a associação destes vegetais às idades do ser humano; c) a ligação intertextual com plantas mencionadas em obras de outros autores. O meu objectivo é provar que os elementos vegetais na obra do escritor português não só reflectem uma paixão telúrica, como também apresentam um significado endoliterário e exoliterário, e cultural.»

     O artigo pode ser encontrado aqui [árvores-flores-frutos-eugénio-de-andrade].

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Análise de "As palavras", Eugénio de Andrade

As palavras

São como cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.

Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

                “As palavras” é uma composição poética da autoria de Eugénio de Andrade, pseudónimo do poeta José Fontainhas, nascido a 19 de janeiro de 1923 no Fundão e falecido em 13 de junho de 2005, no Porto, incluído na obra O Coração do Dia.
                Formalmente, o poema é constituído por quatro estrofes, duas sextilhas e duas quadras, num total de 20 versos, maioritariamente brancos ou soltos, à exceção do 1 e do 3, que apresentam rima cruzada, e aborda o tema da reflexão sobre o valor polissémico das palavras.
                Relativamente à sua estrutura interna, o texto divide-se em duas partes: a primeira, constituída pelas primeiras três estrofes e a segunda pela última. Na primeira parte, o sujeito poético descreve as palavras, enquanto na última faz duas interrogações retóricas, chamando deste modo a atenção do leitor para o seu papel de descodificador delas.
                Logo a abrir, as palavras são comparadas a um cristal, revelando-se, assim, desde logo o seu sentido polissémico, devido ao facto de os cristais possuírem várias faces, tal como a palavra possui vários sentidos. Além disso, como os cristais, as palavras podem adquirir vários significados (polissemia), podem ser claras, transparentes, belas, brilhantes, isto é, são “multifacetadas”. De seguida, são identificadas com um punhal, metáfora que remete para a agressividade, dor, morte e sofrimento que podem carregar; com um incêndio, pois podem queimar, destruir, aludindo pois à sua capacidade de destruição e também de regeneração; e finalmente com o orvalho “apenas”, metáfora que nos conduz à suavidade das palavras, capazes de despertar a calma, a brandura, o amor e a esperança.
                A segunda estrofe ensina-nos que as palavras são essenciais na comunicação entre os seres humanos e intemporais, pois têm carregado, através dos tempos, as histórias e os segredos dos homens. Com o passar do tempo vão recebendo novos significados, evoluindo, carregando os segredos da história dos homens e acompanhando os seres humanos como instrumento indispensável de comunicação; trazem consigo um saber muito antigo (“Secretas vêm, cheias de memória”). Em simultâneo, porém, também causam insegurança e agitam as pessoas, fazendo-as estremecer como os barcos, que agitam as águas, e os beijos, que também fazem estremecer. Com efeito, os versos 8 a 10 (“Inseguras navegam / barcos ou beijos / as águas estremecem”) revelam insegurança quer das palavras, que agitam as pessoas, quer dos barcos, que agitam as águas. Ao amor representado pelos beijos, ninguém lhes fica indiferente, assim como às palavras.
                Na terceira estrofe, o sujeito poético caracteriza as palavras como “desamparadas” (porque estão ao alcance de todos), “inocentes” (porque não representam qualquer perigo, mas podem ser usadas e abusadas) e “leves” (quando não têm importância no texto). Estamos na presença de características que conferem alguma fragilidade às palavras, mas não nos devemos esquecer que as palavras podem ser usadas de várias formas, com vários tons. Uma palavra “leve” e “inocente” também pode ofender, caluniar... Por sua vez, a metáfora e a antítese “Tecidas são de luz / e são a noite” realçam as contradições que as palavras contêm (positividade versus negatividade) e o seu sentido conotativo: há as que surgem cobertas de luz, são claras, transparentes, mas estas mesmas podem também ser a noite, podem ser negras, escuras, sombrias. Por seu turno, nos versos “E mesmo pálidas / verdes paraísos lembram ainda”, o sujeito lírico sugere que as palavras podem não ser intensas nem coloridas, mas ainda assim podem ser aprazíveis e alegres, lembrando o paraíso.
                O poema termina com duas interrogações retóricas, através das quais o eu poético chama a atenção do leitor, dizendo-lhe que lhe cabe o papel de intérprete das palavras, do seu significado, de acordo com a sua experiência de vida, com o seu modo de sentir. É o leitor que vai abrir as conchas puras, com as palavras lá dentro cheias de mistério, atribuindo-lhes um sentido. As interrogações retóricas “Quem as escuta? Quem/as recolhe, assim, /cruéis, desfeitas, /nas suas conchas puras?” apelam à releitura das palavras.

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