domingo, 11 de dezembro de 2022
Análise do poema "Mãos esculturais", de Agostinho Neto
Análise do poema "Para além da poesia", de Agostinho Neto
Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto
A composição é construída, gráfica e
formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio
título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um
número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.
Os cinco versos iniciais formam uma
espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido.
Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do
pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois,
desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se
tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a
compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.
Logo no primeiro verso, a forma
verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização,
refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema
segue em ritmo de caminhada.
São vários os elementos da natureza
evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”;
“asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da
primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que
se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um
percurso.
A segunda estrofe mescla elementos
musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem
das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor».
Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando,
antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do
ser humano”.
A terceira estrofe, através da
presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando
tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o
presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram
inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se
como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das
estrelas.
A quarta estrofe, a última da
primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais
com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou
ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de
raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como
se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do
caminho.
Separando as duas partes está um
verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão
comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.
A segunda parte aponta para a
esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo
a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de
esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das
florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A
água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado,
a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é
o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.
A sexta estrofe alude à “seiva do
raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida,
enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz
do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos
naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o
sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro
promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do
riso / sobre os campos de esperança”.
As duas primeiras estrofes da
segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser
percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança
perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta
predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida
existente para a luta e para a caminhada.
A liberdade reside nos olhos, os
ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado
e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço
ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de
Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território
angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno,
Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas
temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que
existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em
rio).
Ora, a presença do deserto e do rio
reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o
ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um
anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam
as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor
vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento
de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras
feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos
porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural)
ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a
musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”,
oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia
pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.
A última estrofe do poema, a última,
de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical
e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para
a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do
«eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características
desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o
caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento
histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
Análise do poema "Massacre de São Tomé", de Agostinho Neto
Este poema, constituído por trinta e um versos brancos, distribuídos por cinco estrofes, alude a um massacre ocorrido em 1953 na ilha de São Tomé e Príncipe, mais conhecido por massacre de Batepá, e que consistiu na chacina de centenas de são-tomenses pela administração colonial e fazendeiros. O massacre ocorreu na localidade do distrito de Mé Zóchi (chamada Batepá). Estes acontecimentos foram a consequência das relações laborais e sociais no sistema colonial, que distinguia os fôrros – grupo etno-cultural dominante em São Tomé não sujeito ao estatuto de indigenato – dos trabalhadores contratados oriundos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Estes últimos eram considerados inferiores e levados para as ilhas para trabalhar nas roças de cacau e café, tarefas que os fôrros se recusavam a fazer por as considerarem incompatíveis com o seu estatuto.
Esta tensão
acumulada entre os vários segmentos da população do arquipélago e o facto de,
nos anos 50, a mão de obra ter diminuído – dado que tinha sido proibida a sua
importação de Angola, que necessitava dessa força de trabalho – levou ao
extremar dessas tensões entre a administração colonial e as populações de S.
Tomé. O massacre constitui, assim, o culminar desse processo que envolveu vários
micro processos de repressão e de violência nos meses imediatamente anteriores
a 3 de fevereiro de 1953.
Na noite de
1 para 2 de fevereiro desse ano, um soldado do Corpo de Polícia Indígena, de
apelido Amaral, foi morto durante uma rusga noturna na localidade de Caixão
Grande. No dia seguinte – 2 –, Zé Mulato, alcunha do enfermeiro José Joaquim,
que também desempenhava as funções de verdugo às ordens do governador da ilha,
Carlos Gorgulho, chegou a Trindade na companhia de um grupo de homens. Como
retaliação pela morte do soldado Amaral, assassinaram um nativo, na rua, o que
fez com que a população da localidade se refugiasse no mato. Todos aqueles que
não conseguiram fugir foram presos. Enquanto isso, os homens às ordens de Zé
Mulato, armados com espingardas e pistolas, disparavam indiscriminadamente
sobre as pessoas e incendiavam casas e lojas. Pouco depois, juntaram-se-lhes os
colonos brancos, armadas, fazendo-se transportar em jipes, sempre em grupo. As
perseguições e as prisões aumentaram consideravelmente e a violência
propagou-se às povoações de Batepá, Madalena, Santo Amaro e Uba Flor. A partir
de 3 de fevereiro, e pelo menos até ao dia 8, os arredores e a vila de Trindade
foram quase totalmente destruídos.
Em suma, o
massacre consistiu em vários atos de violência – assassinatos, violações, casa
incendiadas –, prisões em massa, o desterro para o campo de trabalho forçado em
Fernão Dias, onde se previa a construção de um cais acostável, além de torturas
em cadeira elétrica e exílio para a ilha do Príncipe de alguns dos mais
destacados membros da elite são-tomense e roubos de terrenos que pertenciam aos
fôrros. O massacre foi mais intenso entre os dias 3 e 7 de fevereiro de 1953,
mas prolongou-se durante vários meses.
Pra, é a
isto que se refere o título do poema. A dedicatória à poetisa e
amiga Alda Graça refere-se a Alda Espírito Santo, uma são-tomense, uma jovem à
altura dos acontecimentos, mais tarde escritora e ativista política, que, em
fevereiro de 1953, escreveu uma carta a alguns amigos, na qual descreveu os
acontecimentos como uma “matança em série, uma loucura coletiva da parte da
quase totalidade da população branca, que cumpriu ordens do governador e seus
acólitos”. Nessa longa carta, Alda Espírito Santo contou também que o povo
são-tomense era explorado e oprimido pelo governador Gorgulho, nomeadamente
através de rusgas noturnas e sequestros para trabalhar nas obras públicas sem
ou com escassa remuneração, submetidos a castigos corporais.
Todo o poema
está revestido de palavras que refletem dor, violência e morte, mas também, em
simultâneo, por palavras de esperança. Logo nos primeiros versos, encontramos
um quadro trágico e sepulcral, quando o sujeito poético afirma que o mar
devolveu os cadáveres “envolvidos em flores brancas de espumas”. As flores
brancas são, frequentemente, usadas em velórios, só que, neste caso, não houve
nenhum funeral, pois os mortos devolvidos pelo mar não receberam uma celebração
formal e com dignidade, por isso as flores são feitas das espumas das águas do
mar, podendo ser um reflexo da resposta da Natureza aos assassinatos dos
africanos. Além das “flores brancas de espumas”, os corpos estavam envolvidos
pelo “ódio incontido das feras sobre sangues coagulados de morte”, o que
evidencia a violência com que foram mortos. O sal das águas do oceano e os
possíveis espancamentos deram origem à coagulação do sangue e as “feras”
simbolizariam os assassinos que causaram as fraturas e levaram à morte das
pessoas.
Na segunda
estrofe, o sujeito poético apresenta símbolos de devastação, como, por exemplo,
o corvo e o chacal, ambos animais que surgem em cena após uma grande matança,
como sucedeu neste massacre. As praias estão cheias de corvos e chacais com
fome e sede dos cadáveres que jazem na areia. É possível associar o corvo e o
chacal aos portugueses, ou aos próprios assassinos, tendo em conta que o corvo é
uma ave carnívora que é considerada benfazeja pelos portugueses, enquanto o
chacal, também ele um mamífero carnívoro, mas que em sentido figurado significa
uma pessoa que explora os mais desfavorecidos, é apresentado como um animal,
que mais do que estar à espera de alimento, representará os próprios exploradores
ou assassinos. O pleonasmo “fomes animalescas de carnes esmagadas na areia”
pode ter uma dupla interpretação. Por um lado, enfatiza a fome dos corvos e dos
chacais e a grande devastação que é visível na praia. Por outro lado, o
adjetivo “animalesco” é usado para designar um comportamento animal por parte
de um ser humano, neste caso, a fome pela ruína, pelo sangue e pela carne que
foi esmagado, isto é, pelo corpo violentado.
Ainda na
segunda estrofe, refere-se que os corpos estão na areia “[…] da terra queimada
pelo terror das idades / escravizadas em cadeias”, o que permite deduzir que o
sujeito poético se refere aos períodos de escravidão vividos pelo continente
africano. A terra designada “queimada pelo terror das idades”, é apelidada
posteriormente “terra verde”. O verde é o símbolo da esperança, neste caso da
esperança ligada às crianças, que assim a designam: “as crianças ainda chamam
verde de esperança”. Deste modo, as crianças constituem o símbolo da pureza,
mas, sobretudo, do futuro, por isso nomeiam a terra queimada através de uma
expressão que remete para algo positivo: a esperança, o alimento essencial para
alimentar a luta pela independência e pelo consequente fim da exploração pelos
europeus.
De seguida,
o sujeito poético afirma que os corpos “se embeberam de vergonha e sal”,
recuperando a ideia do sangue coagulado, dado que a coagulação do sangue ocorre
em contacto com o sal. No caso do poema, ela foi espoletada pelo sal das águas
do mar. A vergonha será proveniente da humilhação que sofreram. Por outro lado,
as águas ensanguentadas de desejos e fraquezas refletem o paradoxo entre o forte
e o fraco: o desejo é o combustível da luta e a fraqueza decorre da tortura
física e da humilhação a que foram sujeitos.
Na quarta
estrofe, o sujeito lírico afirma que “nos olhos em fogo / ora sangue ora vida
ora morte / enterramos vitoriosamente os nossos mortos”, associando os olhos à
memória, visto que os mortos foram enterrados nos olhos, isto é, na visão, como
se fossem guardados num arquivo. Se tivermos em conta que o fogo é um elemento
simbólico que pode representar a ideia de purificação e o entusiasmo, os olhos
em fogo podem aludir a olhos que purificam e a olhos entusiasmados,
interpretação confirmada pelo verso “enterramos vitoriosamente os nossos mortos”,
visto que, apesar de terem sido humilhados e torturados até à morte, não podem
ser considerados derrotados: “reconhecemos a razão do sacrifício dos homens /
pelo amor / e pela harmonia / e pela nossa liberdade / mesmo ante a morte pela
força das horas / nas águas ensanguentadas / derrotas acumuladas para a vitória”.
Assim sendo, a morte não equivale à derrota, antes pelo contrário: pode apontar
para a vitória. A ausência de pontuação no verso “ora sangue ora vida ora morte”,
da penúltima estrofe, sugere a ideia de um tempo que não cessa, que é cíclico.
Por outro lado, a expressão “ora sangue” remete para o nascimento e para a
morte; “ora vida”, para o ciclo da existência; “ora morte”, para a luta e o fim
dessa existência.
Na última
estrofe, o sujeito poético afirma que, para o povo são-tomense, aquela terra
verde “será também a ilha do amor”, remetendo novamente para a ideia da
esperança e da vida, apesar de todas as tragédias que lá sucederam.
Em suma,
este poema põe em confronto colonizado e colonizador, enfatizando o esmagamento
e a opressão de que o primeiro é vítima e apontando para a tentativa permanente
de se reerguer, não obstante a violência que sofre por causa da fusão de
culturas.
Olhando para
si mesmo como sujeito, o homem africano busca uma identidade e passa a refletir
e a agir como uma figura atuante no que diz respeito à sua cultura: o poeta é
visto como alguém que tem a missão de criar a consciência da sua raça. Neste
poema, a função do mar enquanto elemento que devolve ou expele para a terra
africana a violência indicia, em simultâneo, o desvelar da violência que ele
engoliu (ou seja, expõe-na) e a tentativa de analisar os traumas causados pela
redescoberta da sua identidade, que primeiro nega o mar e, gradualmente,
reconhece o seu papel fundamental no ocultar e resgatar de memórias.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
Análise do poema "Confiança", de Agostinho Neto
O poema está
escrito na primeira pessoa do singular (“fui”, “me”, “mim”, etc.), o que nos
permite entender que o «eu» poético representa a voz do povo angolano.
A quintilha
inicial introduz o sentimento de não-pertencimento e apresenta o oceano como o
responsável pela separação de si: “O oceano separou-me de mim / enquanto me fui
esquecendo nos séculos”. Estes versos sugerem, desde logo, a ideia de cisão do
sujeito lírico com a identidade, comum ao povo africano, visto que, a partir do
contacto com a cultura europeia, as suas tradições são reprimidas, passando a
um não-pertencimento, a um entre-lugar, a um não pertencer a isto nem àquilo.
De facto, o negro não faz parte da primeira cultura (a de origem) nem da
segunda (a estrangeira, a europeia). Isto é fomentado pelo mar / oceano, o
agente da transição de culturas e da transformação do negro colonizado num ser
híbrido, dado que o coloca em contacto com a cultura do colonizador. Para o angolano,
o mar é um elemento negativo, causador de dor e sofrimento, pois foi através
dele que veio o colonizador e que, posteriormente à chegada deste, partiram
muitos africanos rumo à escravatura e ao trabalho de contrato (sem haver a
previsão e a certeza do retorno). Além disso, foi no mar que ocorreram muitas mortes
durante estas viagens. Assim sendo, o oceano é apresentado como aquilo que
rompe com o conhecido e como a divisória entre o velho e o novo.
A noção de
passado e presente, de passagem do tempo é visível no uso de termos como “século”
(v. 2), “presente” (v. 3), “tempo” (v. 5) e “história” (v. 6). Neste contexto,
é importante observar a ideia de que o «eu» poético se foi esquecendo de si
mesmo nos séculos, ou seja, foi perdendo a sua identidade ao longo do tempo,
por causa do contacto com o europeu e, sobretudo, ao facto de ter sido
explorado pelo colonizador. Por outro lado, afirma que, no presente, está a
reunir em si o espaço e a condensar o tempo, remetendo para esse terceiro ser
que resultou da fusão entre a cultura africana e a cultura europeia. Essa ideia
de união é traduzida pelo verbo «reunir», que significa “unir de novo”, ou
seja, o que existe no presente é a reunião de tempos distintos, isto é, a
junção do que havia em África e do novo trazido pelo europeu.
A
ambiguidade em torno da identidade do «eu» é reforçada na segunda estrofe: “Na
minha história / existe o paradoxo do homem disperso”. Estes dois versos
reforçam e reafirmam a necessidade presente de reunir o que há em si.
O terceto
seguinte é dominado pela figura do paradoxo, nomeadamente entre «sorrisos» e
«dor», representando a situação do negro que é explorado e trabalha para a
construção da riqueza europeia: “Enquanto o sorriso brilhava / no canto de dor
/ e as mãos construíam mundos maravilhosos”. O negro sofre (“dor”) enquanto é
explorado e trabalha para a alegria (“o sorriso”) e a riqueza do europeu (“as
mãos construíam mundos maravilhosos”).
A quarta
estrofe introduz um exemplo concreto dos sofrimentos a que o africano estava
sujeito, nomeadamente através da descrição de atos de violência física (“John
foi linchado”, “o irmão chicoteado”) e social (“a mulher amordaçada”, “o filho
continuou ignorante”). Atente-se no nome escolhido para uma das figuras do
exemplo: “John”, um vocábulo de origem inglesa, atribuído a um homem africano
de um país colonizado por Portugal. Isto representa a noção de transposição
cultural, reforçando-se, assim, a ideia de repressão e de afastamento da
cultura nativa, original. Por outro lado, a figura do chicote (“o irmão
chicoteado nas costas nuas”) simboliza o sistema colonial, que dele se socorria
para castigar violentamente o negro e o tornar obediente, submisso e servil. A “mulher
amordaçada” representa a ausência de liberdade, a ausência de voz na sociedade
por parte da mulher, bem como a forma como era privada de participar nas
atividades culturais de raiz do colonizado. Quanto ao filho, simboliza a
perpetuação da situação no futuro: a ausência de conhecimento da sua origem, de
quem é no presente e a educação para o trabalho braçal, perpetuando o que é o
presente e a vida dos pais e avós.
Análise do poema "Partida para o Contrato", de Agostinho Neto
O título, “Partida
para o Contrato”, aponta desde logo para a temática da partida, da viagem,
através do mar, de alguém, neste caso para o contrato, que consistia numa espécie
de trabalho semiescravo, a que muitos colonizados se sujeitavam por não haver
outras formas de sustento durante o período de colonização.
A primeira
estrofe, um dístico, remete desde logo para o sofrimento vivido durante uma
despedida, sofrimento esse refletido pelo rosto da pessoa, tanto da que parte
como das que ficam De facto, o rosto reflete o estado de espírito (“retrata a
alma”), caracterizado (“Amarfanhada”) pelo sofrimento. Atente-se na
expressividade do particípio adjetival «amarfanhada». O verbo «amarfanhar»
significa “criar vincos ou pregas”, “amarrotar”, “amachucar”, o que significa
que, de facto, os rostos daquelas pessoas patenteavam marcas físicas do
sofrimento que sentiam.
A segunda
estrofe identifica a pessoa que parte (Manuel), o momento/tempo em que sucede (“Nesta
hora de pranto / Vespertina e ensanguentada”), o local para onde se dirige (a
ilha de São Tomé), o espaço da travessia (o mar) e quem deixa para trás,
possivelmente a mulher amada (“Manuel / o seu amor”).
A terceira
estrofe, um monóstico, é constituída por uma interrogação (“Até quando?”), que
traduz a voz da mulher que fica à espera de Manuel, magoada, desamparada, sem
qualquer noção de quando ele regressará ou se regressará.
A estrofe
seguinte situa-nos numa praia, caracterizada pelo horizonte, pelo sol e pelo barco
que se afogam no mar. A presença do sol, um elemento que indica luz,
luminosidade e calor, e da embarcação, o veículo que transporta Manuel, que
indica movimento e que representa deslocamento, formam a visão que a mulher tem
daquele momento: a sensação de que se está a afogar com a despedida e de que a
sua dúvida, a sua interrogação, não terá resposta. Por outro lado, a presença
da forma verbal «afogam» indicia a presença da morte: os barcos naufragam e os
que neles viajam correm o risco de se afogar, de morrer. Perante este panorama,
o «eu» poético, ao aludir à presença da noite e/ou da escuridão, enfatiza a
tristeza e o sofrimento da mulher (“escurecendo / o céu escurecendo a terra / e
a alma da mulher”).
O terceto
que se segue é todo dominado pela cor negra: “Não há luz / não há estrelas no céu
escuro / Tudo na terra é sombra”. O mesmo sucede nos dois dísticos que encerram
o poema: “Negrura / Só negrura…”. Ora, esta ausência de luz é muito
significativa, pois sugere que não há alegria na vida daquela mulher, nem
sabedoria ou conhecimento (“não há norte na alma da mulher”). A pessoa que não
tem norte é alguém que está sem rumo, que perdeu a direção ou o caminho, que
está confuso e inseguro. Assim se sente a mulher sem o seu amado Manuel. Apenas
resta a cor negra, que sintetiza o sentido de ser negro como aquele que sofre.
A repetição de palavras que remetem para a ideia de escuridão enfatiza a
tristeza da mulher e a dúvida que sente se o tornará a ver, que se espalham com
as ondas do mar, levando as certezas e a alegria.
O «eu»
poético coloca-se, no poema, como observador privilegiado da cena da partida e
dos efeitos que a mesma acarreta para a mulher. Ora, este tópico constitui um
traço identitário dos africanos, neste caso expresso através da descrição dos
sentimentos de uma mulher apaixonada, que traduz o sentimento coletivo
experimentado por todos aqueles que tiveram de passar por um momento ou uma
situação análoga. Note-se, por outro lado, que o mar simboliza um espaço de
dor, de separação (já era assim, por exemplo, nas cantigas de amigo), de
incerteza e a linha que divide o que é familiar e o que é estrangeiro.