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domingo, 11 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mãos esculturais", de Agostinho Neto


             O poema é constituído por 29 versos brancos ou soltos, distribuídos por seis estrofes, cujo título sintetiza a ideia da beleza da africanidade, adjetivando as mãos como esculturais, isto é, como mãos que são como obras de arte. Por outro lado, a mão simboliza o trabalho e a manifestação, pelo que o título indicia a força, o valor do trabalho e a força da união dos africanos.
            As três primeiras estrofes compõem a imagem de uma África aparente, a que é retratada pelos estrangeiros, pelo que se trata de uma visão parcial do que é a identidade africana. O poema começa por apresentar o olhar vencido e cansado que carrega a memória dolorosa da época da exploração, bem como a imagem do mar em simbiose com o ser africano: “mares negreiros”. Esta expressão traduz o sentimento de aprisionamento e o medo vivido nos lares e o cansaço dos que foram para outros países africanos e que, porque não sabiam se regressariam, se sentiam como estrangeiros, como estando noutro continente. Pode também entender-se que estes versos sugerem que o homem negro sai do seu continente para trabalhar e prosperar fora, mas, ainda assim, carrega a África consigo. O mar é o elemento responsável pela separação e distanciamento, pelo que guarda vivências dolorosas.
            A segunda estrofe desnuda a miséria de África (“Além desta África / de mosquitos”), os contrastes, quando se refere às “almas negras” enfeitadas de “sorrisos brancos” e a caridades e medicinas que matam, e as práticas de feitiçaria (“e feitiços sentinelas”). O dístico seguinte prossegue a descrição das ideias negativas associadas ao continente africano: “África de atrasos seculares e corações tristes”.
            A quarta e a quinta estrofes retratam a verdadeira África segundo os olhos do sujeito poético: possui beleza, força, amor, trabalho e, portanto, produtividade. O «eu» afirma que vê além, ou seja, vê o futuro e o que há de bom no continente explorado. Além disso, fala do amor que nasce da boca virgem, indicando que vem da fala pura, das lianas, que designam os laços com a natureza, com as origens, os quais podem ser compreendidos como o amor que cresce e se difunde e floresce como uma planta trepadeira.
            De seguida, descrevem-se as mãos esculturais, que estão ligadas contra “as catadupas demolidoras do antigo”. As mãos são a metáfora do trabalho e as catadupas (a saída ou corrente impetuosa) a metáfora da violência do passado. Deste modo, o trabalho coletivo constitui a forma de extirpar o mal do passado e de fazer algo novo.
            Na última estrofe, o sujeito poético conclui a sua visão sobre África: além do cansaço vivido, ela está viva e o sujeito poético sente-a nas mãos dos que resistiram (dos fortes) e fundem-se com amor (rosa) e alimento (pão), sendo, portanto, o futuro.
            Em suma, o poema trata o tema da identidade africana e apresenta-se o passado de sofrimento como forma de estabelecer povos fortalecidos, atribuindo-lhes a responsabilidade de construir um futuro independente.

Análise do poema "Para além da poesia", de Agostinho Neto


            Ao contrário de outros textos de Agostinho Neto, este poema representa não apenas o sofrimento dos negros colonizados, mas também as particularidades da sua cultura.
            O sujeito poético abre o poema com uma imagem da natureza, associa as árvores características de continente africano (os embondeiros e as palmeiras) com seres humanos, humanizando-as, ao referir-se a “braços erguidos” para remeter para os galhos e a “silhuetas escuras”, isto é, a sombra das árvores. O sujeito poético realça nestes versos a relação dos africanos com a natureza, nomeadamente com as árvores, que, como já foi referido, são humanizadas, indiciando o seu valor sentimental. Por outro lado, a sinestesia “cheiro verde” e a alusão ao fogo trazem para o poema os cheiros e as cores africanos com estreita ligação à luta africana pela liberdade.
            A segunda estrofe introduz novos ambientes, como a estrada, um quarto e a cama, trazendo distintas visões do povo: os trabalhadores que sofrem (os carregadores bailundos, isto é, indivíduos que pertencem aos grupos étnicos dos Bailundos, de Angola); a mulata enquanto representante da miscigenação e da vaidade feminina da mulher africana (“a mulatinha de olhos meigos” – atentar na expressividade do diminutivo e do adjetivo «meigos»); o homem africano com ideias e desejos estrangeiros como o de “comprar garfos e facas para comer”. Além disso, é apontado um ambiente não retratado concretamente, que é o vestuário da figura feminina: “A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas”, representando a musicalidade e a alegria do povo que dança, ou até a fertilidade.
            Na terceira estrofe, o sujeito poético promove um encontro entre o humano e a natureza (“No céu o reflexo do fogo”; “No ar a melodia quente das marimbas” – as marimbas são um instrumento musical formado por placas de madeira ou de metal, graduadas em escala sobre cabaças, que percutem com banquetas, ou seja, a música produzida pelos homens em contacto com o ar e o fogo também produzido por eles refletindo no céu. “As silhuetas dos homens negros batucando de braços erguidos” constitui a retoma ou a lembrança / semelhança dos baobás descritos na primeira estrofe, reforçando a ideia do encontro entre a espécie humana e a natureza.
            A quarta estrofe repete excertos da segunda, remetendo de novo para a musicalidade que perpassa todo o poema. Por sua vez, o título da composição indicia que a poesia africana não aborda apenas o sofrimento do africano, mas a cultura dos povos. 

Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto


             Este poema faz parte da obra Sagrada Esperança, publicada em 1953, e apresenta-nos a imagem do africano cheio de esperança e à procura da construção da sua identidade nacional.

            A composição é construída, gráfica e formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.

            Os cinco versos iniciais formam uma espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido. Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois, desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.

            Logo no primeiro verso, a forma verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização, refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema segue em ritmo de caminhada.

            São vários os elementos da natureza evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”; “asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um percurso.

            A segunda estrofe mescla elementos musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor». Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando, antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do ser humano”.

            A terceira estrofe, através da presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das estrelas.

            A quarta estrofe, a última da primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do caminho.

            Separando as duas partes está um verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.

            A segunda parte aponta para a esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado, a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.

            A sexta estrofe alude à “seiva do raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida, enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do riso / sobre os campos de esperança”.

            As duas primeiras estrofes da segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida existente para a luta e para a caminhada.

            A liberdade reside nos olhos, os ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno, Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em rio).

            Ora, a presença do deserto e do rio reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural) ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”, oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.

            A última estrofe do poema, a última, de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do «eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Análise do poema "Massacre de São Tomé", de Agostinho Neto


           Este poema, constituído por trinta e um versos brancos, distribuídos por cinco estrofes, alude a um massacre ocorrido em 1953 na ilha de São Tomé e Príncipe, mais conhecido por massacre de Batepá, e que consistiu na chacina de centenas de são-tomenses pela administração colonial e fazendeiros. O massacre ocorreu na localidade do distrito de Mé Zóchi (chamada Batepá). Estes acontecimentos foram a consequência das relações laborais e sociais no sistema colonial, que distinguia os fôrros – grupo etno-cultural dominante em São Tomé não sujeito ao estatuto de indigenato – dos trabalhadores contratados oriundos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Estes últimos eram considerados inferiores e levados para as ilhas para trabalhar nas roças de cacau e café, tarefas que os fôrros se recusavam a fazer por as considerarem incompatíveis com o seu estatuto.

            Esta tensão acumulada entre os vários segmentos da população do arquipélago e o facto de, nos anos 50, a mão de obra ter diminuído – dado que tinha sido proibida a sua importação de Angola, que necessitava dessa força de trabalho – levou ao extremar dessas tensões entre a administração colonial e as populações de S. Tomé. O massacre constitui, assim, o culminar desse processo que envolveu vários micro processos de repressão e de violência nos meses imediatamente anteriores a 3 de fevereiro de 1953.

            Na noite de 1 para 2 de fevereiro desse ano, um soldado do Corpo de Polícia Indígena, de apelido Amaral, foi morto durante uma rusga noturna na localidade de Caixão Grande. No dia seguinte – 2 –, Zé Mulato, alcunha do enfermeiro José Joaquim, que também desempenhava as funções de verdugo às ordens do governador da ilha, Carlos Gorgulho, chegou a Trindade na companhia de um grupo de homens. Como retaliação pela morte do soldado Amaral, assassinaram um nativo, na rua, o que fez com que a população da localidade se refugiasse no mato. Todos aqueles que não conseguiram fugir foram presos. Enquanto isso, os homens às ordens de Zé Mulato, armados com espingardas e pistolas, disparavam indiscriminadamente sobre as pessoas e incendiavam casas e lojas. Pouco depois, juntaram-se-lhes os colonos brancos, armadas, fazendo-se transportar em jipes, sempre em grupo. As perseguições e as prisões aumentaram consideravelmente e a violência propagou-se às povoações de Batepá, Madalena, Santo Amaro e Uba Flor. A partir de 3 de fevereiro, e pelo menos até ao dia 8, os arredores e a vila de Trindade foram quase totalmente destruídos.

            Em suma, o massacre consistiu em vários atos de violência – assassinatos, violações, casa incendiadas –, prisões em massa, o desterro para o campo de trabalho forçado em Fernão Dias, onde se previa a construção de um cais acostável, além de torturas em cadeira elétrica e exílio para a ilha do Príncipe de alguns dos mais destacados membros da elite são-tomense e roubos de terrenos que pertenciam aos fôrros. O massacre foi mais intenso entre os dias 3 e 7 de fevereiro de 1953, mas prolongou-se durante vários meses.

            Pra, é a isto que se refere o título do poema. A dedicatória à poetisa e amiga Alda Graça refere-se a Alda Espírito Santo, uma são-tomense, uma jovem à altura dos acontecimentos, mais tarde escritora e ativista política, que, em fevereiro de 1953, escreveu uma carta a alguns amigos, na qual descreveu os acontecimentos como uma “matança em série, uma loucura coletiva da parte da quase totalidade da população branca, que cumpriu ordens do governador e seus acólitos”. Nessa longa carta, Alda Espírito Santo contou também que o povo são-tomense era explorado e oprimido pelo governador Gorgulho, nomeadamente através de rusgas noturnas e sequestros para trabalhar nas obras públicas sem ou com escassa remuneração, submetidos a castigos corporais.

            Todo o poema está revestido de palavras que refletem dor, violência e morte, mas também, em simultâneo, por palavras de esperança. Logo nos primeiros versos, encontramos um quadro trágico e sepulcral, quando o sujeito poético afirma que o mar devolveu os cadáveres “envolvidos em flores brancas de espumas”. As flores brancas são, frequentemente, usadas em velórios, só que, neste caso, não houve nenhum funeral, pois os mortos devolvidos pelo mar não receberam uma celebração formal e com dignidade, por isso as flores são feitas das espumas das águas do mar, podendo ser um reflexo da resposta da Natureza aos assassinatos dos africanos. Além das “flores brancas de espumas”, os corpos estavam envolvidos pelo “ódio incontido das feras sobre sangues coagulados de morte”, o que evidencia a violência com que foram mortos. O sal das águas do oceano e os possíveis espancamentos deram origem à coagulação do sangue e as “feras” simbolizariam os assassinos que causaram as fraturas e levaram à morte das pessoas.

            Na segunda estrofe, o sujeito poético apresenta símbolos de devastação, como, por exemplo, o corvo e o chacal, ambos animais que surgem em cena após uma grande matança, como sucedeu neste massacre. As praias estão cheias de corvos e chacais com fome e sede dos cadáveres que jazem na areia. É possível associar o corvo e o chacal aos portugueses, ou aos próprios assassinos, tendo em conta que o corvo é uma ave carnívora que é considerada benfazeja pelos portugueses, enquanto o chacal, também ele um mamífero carnívoro, mas que em sentido figurado significa uma pessoa que explora os mais desfavorecidos, é apresentado como um animal, que mais do que estar à espera de alimento, representará os próprios exploradores ou assassinos. O pleonasmo “fomes animalescas de carnes esmagadas na areia” pode ter uma dupla interpretação. Por um lado, enfatiza a fome dos corvos e dos chacais e a grande devastação que é visível na praia. Por outro lado, o adjetivo “animalesco” é usado para designar um comportamento animal por parte de um ser humano, neste caso, a fome pela ruína, pelo sangue e pela carne que foi esmagado, isto é, pelo corpo violentado.

            Ainda na segunda estrofe, refere-se que os corpos estão na areia “[…] da terra queimada pelo terror das idades / escravizadas em cadeias”, o que permite deduzir que o sujeito poético se refere aos períodos de escravidão vividos pelo continente africano. A terra designada “queimada pelo terror das idades”, é apelidada posteriormente “terra verde”. O verde é o símbolo da esperança, neste caso da esperança ligada às crianças, que assim a designam: “as crianças ainda chamam verde de esperança”. Deste modo, as crianças constituem o símbolo da pureza, mas, sobretudo, do futuro, por isso nomeiam a terra queimada através de uma expressão que remete para algo positivo: a esperança, o alimento essencial para alimentar a luta pela independência e pelo consequente fim da exploração pelos europeus.

            De seguida, o sujeito poético afirma que os corpos “se embeberam de vergonha e sal”, recuperando a ideia do sangue coagulado, dado que a coagulação do sangue ocorre em contacto com o sal. No caso do poema, ela foi espoletada pelo sal das águas do mar. A vergonha será proveniente da humilhação que sofreram. Por outro lado, as águas ensanguentadas de desejos e fraquezas refletem o paradoxo entre o forte e o fraco: o desejo é o combustível da luta e a fraqueza decorre da tortura física e da humilhação a que foram sujeitos.

            Na quarta estrofe, o sujeito lírico afirma que “nos olhos em fogo / ora sangue ora vida ora morte / enterramos vitoriosamente os nossos mortos”, associando os olhos à memória, visto que os mortos foram enterrados nos olhos, isto é, na visão, como se fossem guardados num arquivo. Se tivermos em conta que o fogo é um elemento simbólico que pode representar a ideia de purificação e o entusiasmo, os olhos em fogo podem aludir a olhos que purificam e a olhos entusiasmados, interpretação confirmada pelo verso “enterramos vitoriosamente os nossos mortos”, visto que, apesar de terem sido humilhados e torturados até à morte, não podem ser considerados derrotados: “reconhecemos a razão do sacrifício dos homens / pelo amor / e pela harmonia / e pela nossa liberdade / mesmo ante a morte pela força das horas / nas águas ensanguentadas / derrotas acumuladas para a vitória”. Assim sendo, a morte não equivale à derrota, antes pelo contrário: pode apontar para a vitória. A ausência de pontuação no verso “ora sangue ora vida ora morte”, da penúltima estrofe, sugere a ideia de um tempo que não cessa, que é cíclico. Por outro lado, a expressão “ora sangue” remete para o nascimento e para a morte; “ora vida”, para o ciclo da existência; “ora morte”, para a luta e o fim dessa existência.

            Na última estrofe, o sujeito poético afirma que, para o povo são-tomense, aquela terra verde “será também a ilha do amor”, remetendo novamente para a ideia da esperança e da vida, apesar de todas as tragédias que lá sucederam.

            Em suma, este poema põe em confronto colonizado e colonizador, enfatizando o esmagamento e a opressão de que o primeiro é vítima e apontando para a tentativa permanente de se reerguer, não obstante a violência que sofre por causa da fusão de culturas.

            Olhando para si mesmo como sujeito, o homem africano busca uma identidade e passa a refletir e a agir como uma figura atuante no que diz respeito à sua cultura: o poeta é visto como alguém que tem a missão de criar a consciência da sua raça. Neste poema, a função do mar enquanto elemento que devolve ou expele para a terra africana a violência indicia, em simultâneo, o desvelar da violência que ele engoliu (ou seja, expõe-na) e a tentativa de analisar os traumas causados pela redescoberta da sua identidade, que primeiro nega o mar e, gradualmente, reconhece o seu papel fundamental no ocultar e resgatar de memórias.

 
Fonte:
- SILVA, Lediane Moreira, O Mar de Memórias na Poesia de Agostinho Neto.
- Jornal Observador.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Análise do poema "Confiança", de Agostinho Neto


             Este poema é caracterizado pela irregularidade formal: vinte versos brancos e de métrica irregular, distribuídos por uma quintilha, um dístico, três tercetos e uma quadra. Há autores que sugerem que a forma livre da composição poética simboliza a constituição da identidade do angolano, que não segue um padrão, mas que está a ser construída e questionada.

            O poema está escrito na primeira pessoa do singular (“fui”, “me”, “mim”, etc.), o que nos permite entender que o «eu» poético representa a voz do povo angolano.

            A quintilha inicial introduz o sentimento de não-pertencimento e apresenta o oceano como o responsável pela separação de si: “O oceano separou-me de mim / enquanto me fui esquecendo nos séculos”. Estes versos sugerem, desde logo, a ideia de cisão do sujeito lírico com a identidade, comum ao povo africano, visto que, a partir do contacto com a cultura europeia, as suas tradições são reprimidas, passando a um não-pertencimento, a um entre-lugar, a um não pertencer a isto nem àquilo. De facto, o negro não faz parte da primeira cultura (a de origem) nem da segunda (a estrangeira, a europeia). Isto é fomentado pelo mar / oceano, o agente da transição de culturas e da transformação do negro colonizado num ser híbrido, dado que o coloca em contacto com a cultura do colonizador. Para o angolano, o mar é um elemento negativo, causador de dor e sofrimento, pois foi através dele que veio o colonizador e que, posteriormente à chegada deste, partiram muitos africanos rumo à escravatura e ao trabalho de contrato (sem haver a previsão e a certeza do retorno). Além disso, foi no mar que ocorreram muitas mortes durante estas viagens. Assim sendo, o oceano é apresentado como aquilo que rompe com o conhecido e como a divisória entre o velho e o novo.

            A noção de passado e presente, de passagem do tempo é visível no uso de termos como “século” (v. 2), “presente” (v. 3), “tempo” (v. 5) e “história” (v. 6). Neste contexto, é importante observar a ideia de que o «eu» poético se foi esquecendo de si mesmo nos séculos, ou seja, foi perdendo a sua identidade ao longo do tempo, por causa do contacto com o europeu e, sobretudo, ao facto de ter sido explorado pelo colonizador. Por outro lado, afirma que, no presente, está a reunir em si o espaço e a condensar o tempo, remetendo para esse terceiro ser que resultou da fusão entre a cultura africana e a cultura europeia. Essa ideia de união é traduzida pelo verbo «reunir», que significa “unir de novo”, ou seja, o que existe no presente é a reunião de tempos distintos, isto é, a junção do que havia em África e do novo trazido pelo europeu.

            A ambiguidade em torno da identidade do «eu» é reforçada na segunda estrofe: “Na minha história / existe o paradoxo do homem disperso”. Estes dois versos reforçam e reafirmam a necessidade presente de reunir o que há em si.

            O terceto seguinte é dominado pela figura do paradoxo, nomeadamente entre «sorrisos» e «dor», representando a situação do negro que é explorado e trabalha para a construção da riqueza europeia: “Enquanto o sorriso brilhava / no canto de dor / e as mãos construíam mundos maravilhosos”. O negro sofre (“dor”) enquanto é explorado e trabalha para a alegria (“o sorriso”) e a riqueza do europeu (“as mãos construíam mundos maravilhosos”).

            A quarta estrofe introduz um exemplo concreto dos sofrimentos a que o africano estava sujeito, nomeadamente através da descrição de atos de violência física (“John foi linchado”, “o irmão chicoteado”) e social (“a mulher amordaçada”, “o filho continuou ignorante”). Atente-se no nome escolhido para uma das figuras do exemplo: “John”, um vocábulo de origem inglesa, atribuído a um homem africano de um país colonizado por Portugal. Isto representa a noção de transposição cultural, reforçando-se, assim, a ideia de repressão e de afastamento da cultura nativa, original. Por outro lado, a figura do chicote (“o irmão chicoteado nas costas nuas”) simboliza o sistema colonial, que dele se socorria para castigar violentamente o negro e o tornar obediente, submisso e servil. A “mulher amordaçada” representa a ausência de liberdade, a ausência de voz na sociedade por parte da mulher, bem como a forma como era privada de participar nas atividades culturais de raiz do colonizado. Quanto ao filho, simboliza a perpetuação da situação no futuro: a ausência de conhecimento da sua origem, de quem é no presente e a educação para o trabalho braçal, perpetuando o que é o presente e a vida dos pais e avós.

            Os dois tercetos finais afirmam que, a partir do drama (“E do drama intenso”) e da vida intensa de trabalho (“vida imensa e útil”), ressalta a importância do negro para constituição da sociedade como um todo (“As minhas mãos colocaram pedras / nos alicerces do mundo”), principalmente das suas riquezas, pelo que ele também tem direito ao alimento: “mereço meu pedaço de pão”, pão esse que simboliza o sustento, a riqueza, a vida. É neste âmbito que poderemos refletir sobre o título do poema (“Confiança”), que remete exatamente para essa ideia de ter direito ao sustento e à vida, para crença do «eu» segundo a qual tem os seus direitos, tem esperança firme no futuro, que decorre da convicção do valor que tem enquanto pessoa.

Análise do poema "Partida para o Contrato", de Agostinho Neto


           O poema “Partida para o contrato”, de 1945, aborda o tema da despedida e a dor que causa aos entes queridos. É constituído por vinte e três versos livres, sem rima e de métrica irregular, distribuídos por um monóstico, três dísticos, uma sextilha, uma sétima e um terceto.

            O título, “Partida para o Contrato”, aponta desde logo para a temática da partida, da viagem, através do mar, de alguém, neste caso para o contrato, que consistia numa espécie de trabalho semiescravo, a que muitos colonizados se sujeitavam por não haver outras formas de sustento durante o período de colonização.

            A primeira estrofe, um dístico, remete desde logo para o sofrimento vivido durante uma despedida, sofrimento esse refletido pelo rosto da pessoa, tanto da que parte como das que ficam De facto, o rosto reflete o estado de espírito (“retrata a alma”), caracterizado (“Amarfanhada”) pelo sofrimento. Atente-se na expressividade do particípio adjetival «amarfanhada». O verbo «amarfanhar» significa “criar vincos ou pregas”, “amarrotar”, “amachucar”, o que significa que, de facto, os rostos daquelas pessoas patenteavam marcas físicas do sofrimento que sentiam.

            A segunda estrofe identifica a pessoa que parte (Manuel), o momento/tempo em que sucede (“Nesta hora de pranto / Vespertina e ensanguentada”), o local para onde se dirige (a ilha de São Tomé), o espaço da travessia (o mar) e quem deixa para trás, possivelmente a mulher amada (“Manuel / o seu amor”).

            A terceira estrofe, um monóstico, é constituída por uma interrogação (“Até quando?”), que traduz a voz da mulher que fica à espera de Manuel, magoada, desamparada, sem qualquer noção de quando ele regressará ou se regressará.

            A estrofe seguinte situa-nos numa praia, caracterizada pelo horizonte, pelo sol e pelo barco que se afogam no mar. A presença do sol, um elemento que indica luz, luminosidade e calor, e da embarcação, o veículo que transporta Manuel, que indica movimento e que representa deslocamento, formam a visão que a mulher tem daquele momento: a sensação de que se está a afogar com a despedida e de que a sua dúvida, a sua interrogação, não terá resposta. Por outro lado, a presença da forma verbal «afogam» indicia a presença da morte: os barcos naufragam e os que neles viajam correm o risco de se afogar, de morrer. Perante este panorama, o «eu» poético, ao aludir à presença da noite e/ou da escuridão, enfatiza a tristeza e o sofrimento da mulher (“escurecendo / o céu escurecendo a terra / e a alma da mulher”).

            O terceto que se segue é todo dominado pela cor negra: “Não há luz / não há estrelas no céu escuro / Tudo na terra é sombra”. O mesmo sucede nos dois dísticos que encerram o poema: “Negrura / Só negrura…”. Ora, esta ausência de luz é muito significativa, pois sugere que não há alegria na vida daquela mulher, nem sabedoria ou conhecimento (“não há norte na alma da mulher”). A pessoa que não tem norte é alguém que está sem rumo, que perdeu a direção ou o caminho, que está confuso e inseguro. Assim se sente a mulher sem o seu amado Manuel. Apenas resta a cor negra, que sintetiza o sentido de ser negro como aquele que sofre. A repetição de palavras que remetem para a ideia de escuridão enfatiza a tristeza da mulher e a dúvida que sente se o tornará a ver, que se espalham com as ondas do mar, levando as certezas e a alegria.

            O «eu» poético coloca-se, no poema, como observador privilegiado da cena da partida e dos efeitos que a mesma acarreta para a mulher. Ora, este tópico constitui um traço identitário dos africanos, neste caso expresso através da descrição dos sentimentos de uma mulher apaixonada, que traduz o sentimento coletivo experimentado por todos aqueles que tiveram de passar por um momento ou uma situação análoga. Note-se, por outro lado, que o mar simboliza um espaço de dor, de separação (já era assim, por exemplo, nas cantigas de amigo), de incerteza e a linha que divide o que é familiar e o que é estrangeiro.

            Aquele que assiste à partida e que fica está inundado de dúvidas acerca do futuro e encara o mar como elemento de rutura, algo que lhe «rouba» aquilo que lhe é precioso. Para quem parte, o mar assume igualmente contornos de dor e de ausência de certezas em relação ao que será o futuro. Deste modo, o mar configura um elemento que agride o angolano e o traumatiza, ou seja, é um inimigo.

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