Português: 15/09/22

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Vida e obra de José de Alencar


     José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, Ceará, a 10 de maio de 1829. Fez os seus estudos elementares e secundários no Rio de Janeiro e, em 1843, foi para São Paulo, onde se formou em Direito. Regressou depois ao Rio e iniciou a atividade de jornalista e advogado. Faleceu em 1877.

    A sua produção literária é vastíssima e insere-se em vários domínios: romance, poesia, história, teatro. Dentre as suas obras, destacam-se Cinco Minutos (1860), As Minas de Prata (1862), Diva (1864), Iracema (1865), O Gaúcho (1870), Senhora (1875), O Sertanejo (1875).

    Foi um escritor que gerou muita polémica: uns julgam-no genial, magistral; outros fazem dele um secundário contador de patranhas de índios e vaqueiros. Uns elogiam o seu estilo e amor à "língua brasileira", outros irritam-se perante a exuberância das imagens. Se os comentários negativos são maus, os positivos correm o risco de o transformar num contador de histórias para adolescentes, o que tem criado a imagem de um romancista que não se pode levar a sério.

    Mas, na verdade, Alencar está para a prosa romântica como G. Dias está para a poesia: é o mais importante ficcionista do Romantismo brasileiro, quer pela sua vasta obra, quer pela variedade dos temas versados e pelo estilo. É um marco na tradição literária brasileira e foi o primeiro escritor a devotar-se integralmente à sua obra, mesmo nos momentos em que era um político.

    No prefácio a Sonhos d'Ouro, Alencar discute o período orgânico da literatura brasileira, dividida em três fases:

  • uma fase primitiva ou aborígene, que são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada (ex.: Iracema);
  • a segunda fase é histórica: representa o consórcio do povo com a terra americana (ex.: Guarani);
  • a terceira fase começa com a independência política e espera escritores que formem o verdadeiro gosto nacional (ex.: Gaúcho).
    Isto mostra que Alencar tinha consciência de ter tratado, nos seus romances, os aspetos fundamentais da realidade brasileira. Apesar dos vários domínios que abraçou, é na prosa de ficção que mais se destaca. Aqui, há sempre um elemento fundamental, que é o índio, como protagonista das lendas e factos históricos.

    Dentro do romance alencariano, podemos destacar alguns tipos:

        -» Romance urbano ou citadino, fruto de uma breve experiência jornalística, de uma observação da sociedade fluminense e da fantasia. Temos neste grupo romances como A Viuvinha, Diva, Senhora, A Pata da Gazela, etc. Obedientes ao figurino romântico, empregam os mesmos expedientes narrativos. Romances de intriga, entretenimento e namoro adolescente giram em torno do conflito de duas forças poderosas: amor e dinheiro, podendo surgir um terceiro membro que é a honra. O caso de Aurélia, heroína de Senhora, mostra perfeitamente este duelo de interesses e sentimentos, numa trama em que o dinheiro atribui à mulher o direito de esconder qualquer nódoa do passado e equiparar-se ao homem amado, a quem o dinheiro dá o direito de se render à evidência dos factos e tornar-se merecedor da mulher amada.
    Tais conflitos podiam dar-se apenas no domínio da burguesia, o que seria uma crítica; mas a forma como está organizado contém é uma apologia dessa classe, gozadora de ócios quase sempre néscios, preenchidos com algum negócio, forma de ação social que inclui o amor. Uma forma de pelintras, passando os dias a tentarem resolver o que chamavam de magna questão: sentimento amoroso que devia desembocar no casamento. Tudo se passa em ambientes burgueses, mesmo quando a história decorre em lugares não citadinos.

        -» Romance indianista: na linha de G. Dias, Alencar concebeu uma trilogia que abarcava o «modus vivendi» do indígena brasileiro: o Guarani retrata o encontro de um índio - Peri - com a civilização branca e portuguesa; em Iracema, temos uma intriga oposta: um europeu, Martim, descobre a vida primitiva do índio por meio da heroína que dá o nome ao romance; em Ubirajara, analisa os silvícolas no seu habitat natural. Nos três casos, o índio é visto com lentes cor de rosa, envolto num véu místico.
    Ser místico, o índio de Alencar é cheio de qualidades em flagrante contraste com o branco. Para os silvícolas vão todas as simpatias, aos brancos fica reservada a pior parte no contexto geral: batem-se em lutas fratricidas ou desconhecem os bons sentimentos dos nativos. A explicação para a idealização do índio reside na possível influência do pensamento de Rousseau, filtrado pela poesia de G. Dias e no facto de Alencar não conhecer de "visu" os heróis de suas narrativas. Quando muito teria convivido na infância com pessoas que lhe teriam contado lendas a respeito. A imaginação fizera o resto.
    O gosto de idealizar, que deliciava os românticos ávidos de exotismo paisagístico, eis o que se vê em Alencar. Quer pela ação, quer pelo código moral, os seus índios são talhados pelo molde dos cavaleiros medievais. Possuem apenas virtudes e chegam a superar os brancos nos mesmos valores de caráter que o Romantismo lhes atribui: autênticos cavaleiros andantes. Torna-se evidente o núcleo da resignada paixão de Iracema. Entrega-se a um branco num desprendimento natural; dá-lhe um filho: Martim regressa à pátria e a infeliz morre. É o quadro típico de um romance de cavalaria, onde o trato amoroso obedecia aos impulsos da sinceridade.
    Se virmos o respeito que o índio mostra pela religião cristã, fica desenhada a fisionomia medievalesca do indianismo de Alencar. Peri converte-se como bom cavaleiro à fé de Ceci e com isso descobre a explicação para o seu comportamento trovadoresco de subserviência mística à mulher. E Iracema morre de amor por se ligar ao branco. Sua morte simboliza a redenção do «pecado» de amar incondicionalmente. A morte recoloca-a no seu mundo original.

        -» Romance histórico, onde o medievalismo de Alencar ganha plenitude: As Minas de Prata, Guerra dos Mascates, Alfarrábios. Aqui põe-se à vontade, sem realizar, porém, o melhor da sua obra, pois pesavam-lhe a sombra de W. Scott e o exemplo de Herculano. O ficcionista esmera-se em situar os dramas numa geografia, para que a natureza sirva de pano de fundo e interlocutora. Ora, o romance histórico dispensa o diálogo com a natureza, porque desloca o eixo da efabulação para o facto documentado, a ação que a efetiva e a personagem que o realiza.

        -» Romance regionalista: O Gaúcho, O Sertanejo, O Tronco do Ipê e Til. O primeiro e o segundo passam-se respetivamente no Rio Grande do Sul e no Ceará. A ação dos outros decorre na baixada fluminense e na "confluência do Atibaia com o Piracicaba". Diferencia-os a geografia.
    Alencar quer, assim, oferecer um retrato das particularidades regionais do Brasil, das tradições e costumes ligados ao folclore. Ao longo dos romances históricos e indianistas apresenta as metamorfoses histórico-étnicas sofridas pelo país; agora ensaia um panorama dos vários aspetos do Brasil.
    No cerne deste tipo de romance temos a mesma visão do mundo presente dos anteriores, a demonstrar o truísmo da unidade na diversidade; os dados exteriores e a cenografia mudam sem comprometer o núcleo primitivo. Mas no regionalismo, Alencar pretendia-se realista.
    Como explicar a unidade na visão do brasileiro? De um lado, Alencar descobriria uma essencialidade imutável; de outro, seria incapaz de ver as diferenças entre os vários tipos de brasileiro. Isto reduz-se a um ponto: o encontro de um arquétipo brasileiro que mostrasse unos a respeito das variedades regionais, históricas, etc. Mas Alencar não pretendeu nem podia determiná-lo. Alencar era de um idealismo absoluto: "idealiza tudo, homens e cousas, não em virtude de uma estética preconcebida, mas porque é isso inerente à sua constituição artística."
    Daqui se pode deduzir que os romances regionalistas são ainda históricos, embora duma história contemporânea: fazem uso dos mesmos ingredientes narrativos presentes nos outros tipos de romance e não fogem à estereotípia medievalesca. A imaginação de Alencar socorre-se de um modelo fixo de protagonista, como se bastasse a verosimilhança do cenário e do enredo.
    Alencar movia-se na esfera do onírico e do fantasioso, não raro articulado aos mitos da infância. Implicando uma visão estacionária da história, tal apego à meninice leva-nos a formular uma hipótese de génese literária que também vale para os restantes românticos. A visão que Alencar tem do Brasil ofende os intelectuais brasileiros, porque ele reduz o brasileiro do campo ou da cidade: se homem, a Peri; se mulher, a Ceci. Isto é uma marca da herança portuguesa.

            Estilo de Alencar

    Ele é poeta na essência de sua cosmovisão e vestia o homem e a natureza de maravilhoso e concebia uma harmonia de paraíso para o mundo. Ao dizerem que Iracema é um poema em prosa, os críticos apenas apreendem uma parte da sua mundividência: poesia.
    Ele pinta a natureza com a imaginação, numa subjetividade em que o «eu» mais se contempla na paisagem do que observa, num idealismo de quem apenas encontra no universo as forças mágicas da infância. Ainda quando despido de recursos poéticos, é lírica a sua visão do mundo. A musicalidade é a característica essencial do seu estilo. Alencar concretiza-o pela utilização de ritmos poéticos e metáforas polivalentes.
    Alencar inaugura uma etapa na história do escritor brasileiro: com ele sai-se de uma atividade literária ocasional e diletante e inicia-se o processo de dignificação do homem de letras brasileiro. Nele se configura, pela primeira vez, a noção de literatura como forma de conhecimento da realidade brasileira e veículo de emoção estética superior.

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