Português: 07/01/2021 - 08/01/2021

sábado, 31 de julho de 2021

Análise do Canto X da Ilíada

             O Canto X decorre na mesma noite que o IX, mas, ao nível do conteúdo, constitui uma pausa no combate. Em vez disso, Homero concentra-se sobretudo na questão da espionagem e da guerra psicológica. A única ligação de continuidade entre os dois cantos é o desespero dos Gregos, que é acentuado pela teimosia de Aquiles, que tira o sono de Agamémnon e Menelau e os deixa tão desesperado que estão dispostos a quase tudo para o fazer regressar à luta. No entanto, nessa noite existem duas embaixadas, uma de espionagem, efetuada em pleno território inimigo, e outra tendo como destino final a tenda de Aquiles. A primeira é caracterizada pelo êxito, enquanto a segunda redunda em fracasso. O dado comum às duas expedições é a figura de Ulisses.

            O rei de Ítaca é caracterizado como uma pessoa inteligente e astuta, no entanto também algo traiçoeiro, pois promete falsamente a Dolon que não será morto. Algo parecido sucede com Diomedes, que, logo depois de manifestar sentimentos de amizade com um inimigo, executa um homem indefeso e se questiona sobre qual seria a pior coisa que ele poderia fazer.

            No que diz respeito ao desenlace da incursão no território troiano, não é tanto a perda de um pequeno número de lutadores e de uma carruagem que afetará o decurso da guerra em termos materiais, mas antes o que o ataque representa em termos de desmoralização. Em contraponto, este pequeno sucesso simboliza um impulso de motivação junto da parte grega.

            Por outro lado, as diferenças linguísticas e de técnica compositiva entre este e outros cantos da Ilíada levantam algumas questões sobre a autoria desta parte da obra. Foi composto por Homero para mostrar uma perspetiva diferente da guerra, ou tratou-se de um acrescento introduzido por um colaborador posterior? Seja como for, constitui uma pausa na batalha e introduz uma nota diferente numa fase do conflito em que os Gregos estão a sofrer grandes revezes.

Resumo do Canto X da Ilíada

             Agamémnon e Menelau não conseguem dormir, tal é sua preocupação com o curso dos acontecimentos, e, eventualmente, acordam os outros comandantes e reúnem-se em campo aberto para planear o movimento seguinte. Nestor sugere que enviem um espião, a coberto da escuridão noturna, que se infiltre no acampamento troiano e tome conhecimento dos planos do inimigo. Diomedes oferece-se como voluntário e é acompanhado por Ulisses. Os dois homens armam-se e, apoiados por Atenas, a quem oram, esgueiram-se em direção ao campo adversário.

            No lado troiano, Heitor é assaltado por uma ideia semelhante e quer saber se os Gregos planeiam fugir. Ele seleciona Dolon, um homem muito feito, mas veloz como um relâmpago, para desempenhar o papel, e promete recompensa-lo com a carruagem e os cavalos de Aquiles. Dolon parte para a sua missão, mas é avistado por Diomedes e Ulisses, que rapidamente o capturam. Os dois gregos interrogam-no, e ele, na esperança de conservar a sua vida, informa-os das posições dos Troianos e dos seus aliados, bem como de que os Trácios, recém-chegados ao local, eram especialmente vulneráveis a ataques. Ulisses promete poupar Dolon, mas Diomedes mata-o e tira-lhe a armadura.

            De seguida, os dois espiões aqueus penetram sorrateiramente no acampamento trácio adormecido, onde matam doze soldados e o seu rei, Rhesus, que chegara atrasado à batalha e, por isso, nem chega a combater. Além disso, roubam os cavalos e as carruagens do monarca trácio. Atenas avisa-os que algum deus zangado pode acordar os outros soldados, o que faz com que Diomedes e Ulisses e retornem ao seu acampamento na carruagem roubada, onde são recebidos calorosamente pelos seus camaradas, que já os viam mortos.

Análise do Canto IX da Ilíada

             Esta segunda interação entre Agamémnon e Aquiles, concretizada neste caso através de intermediários, é marcada por questões de orgulho e honra mais uma vez. A iminência da derrota força o chefe dos Aqueus a pôr de lado o seu orgulho, mas apenas na medida do necessário, argumentando que estava louco e cego quando confrontou Aquiles (Canto I), responsabilizando o seu estado mental instável pelo sucedido e não assumindo, assim, a responsabilidade total e consciente pelo episódio. Neste passo da obra, Agamémnon mostra-se sensato ao aceitar a sugestão de Nestor de se reconciliar com Aquiles, no entanto o seu recuo estratégico não é propriamente uma admissão de culpa nem resulta na sua humilhação. Por exemplo, há a considerar que ele nunca faz um pedido de desculpas, antes procura comprar a lealdade de Aquiles, em vez de procurar um entendimento sério e honesto. Além disso, a aceitação da proposta da parte do filho de Tétis significaria que este se submeteria à autoridade de Agamémnon. Ora, Aquiles é igualmente um homem orgulhoso e percebe que, não obstante Ulisses ter omitido sabiamente a exigência do líder aqueu de que o chefe dos Mirmidões se curvasse perante si, a falta de um pedido de desculpas. Ele não quer tesouros, mas antes a reparação do ultraje de que fora vítima, a reparação da honra e da glória pelas quais tanto trabalhou. A única honra de que necessita é o destino que Zeus lhe reservou: a de uma morte gloriosa. Por outro lado, como julga não ter uma vida muito longa, os tesouros de pouco lhe serviriam.

            Note-se que a oferta de presentes muito valiosos é um gesto muito importante e significativo, pois os gregos da época observavam a posse de bens materiais, ganhos na guerra ou concedidos por reis, como sinónimo de honra pessoal. No entanto, no caso vertente da Ilíada, a oferta generosa de Agamémnon está associada à afirmação do seu status superior: “Deixa-o curvar-se diante de mim! Eu sou o rei maior” (IX.192). Isto só vem confirmar que o rei dos Gregos, embora parecendo sensato e mais pragmático, é tão orgulhoso e egocêntrico como Aquiles.

            A embaixada enviada por Agamémnon constitui uma das cenas mais comoventes da Ilíada. Durante o encontro, são contadas várias narrativas, que cada lado usa para persuadir o outro, mas o poeta socorre-se delas para humanizar Aquiles e para nos apresentar sumariamente aspetos do seu passado e antecipar o futuro. Além disso, este episódio relembra-nos a sua cólera e o seu orgulho, contudo, em simultâneo, revela-nos as pressões que sofreu em Ftia (uma antiga região da Tessália, na Grécia setentrional, a pátria dos Mirmidões) e destaca o dilema que enfrenta, mostrando-nos os seus conflitos interiores.

            A forma mais cândida como Aquiles responde ao apelo de Ájax mostra que ele valoriza o respeito dos seus companheiros, embora não pareça particularmente incomodado por estarem a morrer na sua ausência. No entanto, o seu orgulho sobrepõe-se a isso e ele não consegue perdoar a ofensa à sua honra. Até este momento da obra, a cólera de Aquiles parecia ser justificada, todavia a recusa da proposta de Agamémnon por uma questão de orgulho lança uma sombra sobre a sua figura. Aquiles é descrito e age como um deus e o egocentrismo e a mesquinhez da sua reação lembram os rancores de divindades como Hera e Poseidon.

            Os discursos deste canto constituem demonstrações da habilidade oratória, um talento que os Gregos valorizavam imenso, tanto quanto a perícia no campo de batalha. Fénix faz referência a esses dois valores quando afirma ter criado Aquiles para ser um homem de palavras e de ação. O discurso de Ulisses é o mais bem estruturado, sendo constituído por um conjunto de apelos diferentes para tentar mudar o intento do filho de Tétis.

Resumo do Canto IX da Ilíada

             Os Aqueus estão desesperados. Agamémnon chora e declara que a guerra foi um fracasso, por isso propõe regressar à Grécia em desgraça, contudo Diomedes argumenta contra tal cobardia e afirma que ficará e lutará, mesmo que todos os outros partam. Nestor intervém de seguida, comungando das palavras do companheiro, e sugere a reconciliação com Aquiles, de modo que ele possa regressar ao combate. Reconhecendo a validade do discurso de Nestor, Agamémnon decide oferecer ao chefe dos Mirmidões um conjunto de presentes bastante valioso: Briseida, um futuro saque, uma das suas filhas e sete cidades. Isto obviamente se regressar à guerra e reconhecer a sua autoridade. Três homens entregam a proposta: Ájax, Ulisses e Fénix, o velho que criou Aquiles.

            A embaixada grega encontra-o a tocar lira na sua tenda com o seu amigo Pátroclo. Ulisses verbaliza a proposta de Agamémnon, mas Aquiles recusa-a, por causa do seu orgulho ferido e declara que pretende retornar à sua terra natal, onde poderá viver uma vida longa e prosaica, em vez da gloriosa, mas curta, se decidir ficar. Dirigindo-se a Fénix, propõe-lhe que o acompanhe, mas este pede-lhe, de forma emocionada, que fique. E recorda a história de Meléagro, outro príncipe guerreiro que, durante um episódio de raiva, se recusou a lutar, para mostrar como era importante responder aos apelos de amigos indefesos. Ájax incentiva Aquiles a conquistar o amor dos seus camaradas e coloca a sua ausência em perspetiva, mas ele mantém-se irredutível, sentindo ainda na carne o insulto de Agamémnon.

            Quando Ulisses e Ájax regressam e transmitem a resposta de Aquiles, os Gregos ficam perplexos e afundam-se de novo no desespero.

Na aula (XL): definição de cobiça

      - O que é a cobiça?

     - É uma festa, não é?

André A.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Publicidade não enganosa


 

Análise do Canto VIII da Ilíada

             O desfecho da guerra vai alternando, no entanto, no final do presente canto, tudo parece apontar para a derrota dos Gregos. Heitor esteve prestes a apoderar-se das suas fortificações, e os seus subordinados parecem mais determinados do que nunca. O desespero mútuo por causa da guerra que esteve na origem de um cessar-fogo anterior deixou de se fazer notar. Se antes os Troianos ansiavam pelo fim do conflito, agora querem vencê-lo a todo o custo, e o facto de acamparem, nessa noite, fora das muralhas de Troia demonstra o quão desejam combater os inimigos.

            No que diz respeito aos deuses, há que salientar o facto de Zeus, até este ponto da estória, se ter mantido em grande parte fora da guerra, limitando a sua intervenção a supervisionar as ações e diferendos dos outros deuses e a enviar sinais/sonhos ocasionais. No entanto, neste momento, assume o controle direto dos acontecimentos, mudando a sua dinâmica de forma considerável: proíbe os outros deuses de intervirem e mergulha de cabeça na luta. Antes, as intervenções das demais divindades em favor do lado que apoiavam acabava por manter a luta equilibrada, não dando a nenhum dos exércitos grande vantagem sobre o outro; todavia, a entrada em cena de Zeus a favor dos Troianos faz pender a balança claramente para o seu lado. Esta reviravolta súbita no desenrolar da trama constitui uma mudança significativa no que diz respeito à dinâmica humana no poema. Com efeito, tudo se desenvolve no sentido de preparar o regresso de Aquiles ao combate. A própria declaração de Zeus a Hera, segundo a qual apenas o retorno do líder dos Mirmidões poderá salvar os Gregos do desaire, é sinónimo disso e dá sinal de que o foco narrativo se vai concentrar, a breve trecho, na sua figura e ação. Até agora, presenciámos as consequências nefastas (para os Gregos) da cólera de Aquiles; o Canto VIII prepara o cenário para uma explosão dessa sua fúria no campo da batalha.

            Neste passo da obra, existem diversos aspetos simbólicos que convém destacar. Os navios gregos simbolizam o lar e a possibilidade de fuga e de regresso ao seu conforto. Assim sendo, a intenção de Heitor de os queimar constitui uma ameaça direta à sua sobrevivência individual e enquanto povo. Sem nenhum outro meio de fuga, eles seriam feitos prisioneiros e massacrados. Esta possibilidade é tanto mais significativa se tivermos em conta que a esmagadora maioria dos homens gregos se encontram ali, tendo muito poucos ficado em casa. Além disso, aqueles são os melhores dos Gregos. Deste modo, a sua eventual derrota implicaria que os homens e os governantes mais destacados, fortes e nobres ali morreriam ou ficariam encalhados, deixando as suas cidades e reinos à mercê de quem os quisesse conquistar.

            Por outro lado, a nova postura de Zeus faz com que a balança penda fortemente a favor dos Troianos, o que torna imprescindível o regresso de Aquiles ao campo de batalha. O palco foi devidamente preparado, para que o protagonista da peça assuma finalmente o seu papel e ocupe o seu lugar central.

Resumo do Canto VIII da Ilíada

             No Olimpo, Zeus proíbe os outros deuses de interferir na guerra e, de seguida, viaja para o Monte Ida, perto de Troia. Aí, pesa o destino dos dois lados em confronto e os Gregos saem a perder. Então faz recair uma chuva de relâmpagos sobre o exército aqueu e vira a maré da batalha a favor dos Troianos, o que causa o recuo dos inimigos. Heitor e os seus comandados avançam, procurando derrubar a nova muralha dos Aqueus e queimar os seus navios. Entrementes, o marido de Andrómaca dirige.se a Nestor, que se encontra no meio do campo de batalha e é salvo por Diomedes, que o puxa para a sua carruagem bem a tempo, sendo perseguidos por Heitor. Hera, adivinhando a derrota iminente dos Gregos, inspira Agamémnon a despertar as suas tropas. O comandante aqueu reúne os seus soldados, desperta o seu orgulho, apela à sua coragem e bravura e ora a Zeus para permitir que os seus homens sobrevivam. O deus acolhe a oração e envia um sinal: uma águia transportando um cervo nas suas garras. Este sinal inspira os Gregos a lutar e eles eliminam alguns inimigos, nomeadamente o arqueiro Teucro, um dos melhores entre os aqueus, até ser ferido por Heitor e a maré da batalha mudar de novo. O comandante troiano rechaça os Gregos para trás das suas fortificações, até aos seus navios. Desesperadas, Hera e Atenas, contrariando as ordens de Zeus, preparam-se para interferir na luta, mas aquele envia-lhes a deusa Íris para os advertir acerca das consequências que tal interferência acarretará. Tendo consciência de que jamais poderão competir com Zeus, as duas deusas recuam e são informadas de que, na manhã seguinte, terão a última oportunidade de salvar o exército aqueu. E acrescenta que apenas o regresso de Aquiles poderá impedir a sua derrota,

            Nessa noite, os Troianos estão tão confiantes na sua superioridade e na vitória iminente que acampam na planície, portanto fora das muralhas que protegem Troia, e Heitor ordena aos seus homens que acendam múltiplas fogueiras para que os Gregos não possam fugir sem serem vistos. A noite salva as tropas de Agamémnon da derrota, mas Heitor tem em mente dar-lhes o golpe de misericórdia no dia seguinte.

Análise do Canto VII da Ilíada

             Homero, durante a narração, estabelece vários paralelismos. No caso deste canto, os desejos e as ações dos Gregos e dos Troianos são apresentados de forma paralela. Por exemplo, Heitor ataca Ájax com uma determinada arma e este contra-ataca usando o mesmo utensílio de guerra, geralmente causando mais dano no adversário; durante a trégua, o poeta descreve a dor dos Troianos enquanto queimam os seus mortos para, de seguida, fazer o mesmo com a dos Aqueus. A existência de uma causa comum, de uma dor comum, etc., e o seu reconhecimento vinculam os inimigos aos mesmos princípios de honra.

            Um desses princípios comuns prende-se com o respeito pelo outro e a dignidade individual. Exemplo disso é o duelo entre Heitor e Ájax, que termina com a troca de armas e com um pacto de amizade. O equilíbrio entre valores opostos, como a amizade e a inimizade, são uma das evidências de um indivíduo digno.

            Outro desses princípios tem a ver com a importância dada ao sepultamento dos mortos. Tal como o fantasma de Pátroclo afirma no Canto XXIII, o espírito de uma pessoa não entraria no mundo dos mortos até que fosse devidamente sepultado. Deixar uma alma por enterrar ou, pior, deixá-la como carniça para os animais selvagens, era um desrespeito para com o morto e pelas tradições religiosas da época. É tudo isto que preside ao estabelecimento da trégua na guerra. Note-se que, no caso da Ilíada, os corpos eram queimados numa pira, embora também houvesse casos na época de enterramento. Os ossos sobrantes na pira eram guardados numa jarra ou caixa decorativa, ou, em alternativa, enterrados junto ao local onde o corpo fora incinerado.

            Por último, uma chamada de atenção para a atuação dos deuses, que volta a revelar a sua mesquinhez e superficialidade. A preocupação, no final do canto, de Poseidon ao ver os Gregos erigir as suas muralhas tem a ver unicamente com o facto de tal obra poder ofuscar a muralha que ele construiu em redor de Troia. Por outro lado, a cena chama a atenção para o respeito que é devido sempre aos deuses, pois eles podem destruir as obras humanas com grande facilidade e por mero capricho.

Resumo do Canto VII da Ilíada

             O retorno de Heitor e Páris ao combate revigora as tropas troianas, mas Apolo e Atenas decidem finalizar a refrega naquele dia. Para tal, determinam a realização de um duelo. Assim, a deusa envia uma mensagem telepática a Heleno: Heitor deverá desafiar o guerreiro grego mais forte para lutar. É isso que o herói troiano faz: aproxima-se da linha inimiga e desafia-a a indicar alguém para combater consigo. Menelau é o único que tem coragem e dá um passo em frente, mas Agamémnon, consciente de que o irmão não é páreo para Heitor, dissuade-o do intento. Nestor, que é demasiado velho para responder ao desafio, exorta os seus companheiros a responder a Heitor. Nove guerreiros aqueus respondem ao chamamento e, dentre eles, Ájax é selecionado por sorteio.

            Heitor intimida-se com a envergadura do gigante, mas não cede. Ataca-o ousadamente, mas cada golpe é bloqueado pelo enorme escudo do adversário. Ájax fere ligeiramente o troiano e derruba-o com uma pedra. Como a noite está a chegar, arautos estimulados por Zeus cancelam a luta. Os dois heróis concordam em encerrar o duelo e trocam presentes em sinal de amizade.

            Nenhum dos lados está ansioso por regressar ao combate no dia seguinte. No acampamento grego, Nestor insta os seus companheiros a solicitar uma trégua de vinte e quatro horas para enterrar os mortos. Por outro lado, aconselha-os a construir fortificações à volta do acampamento para proteção. No lado adversário, Príamo faz uma proposta semelhante no que diz respeito à questão dos tombados em combate. Além disso, Antenor, o seu conselheiro, pede a Páris que devolva Helena e, desta forma, ponha fim à guerra, mas o príncipe troiano recusa, propondo como alternativa devolver todo o tesouro que trouxe consigo de Esparta. Quando os Gregos são confrontados com esta proposta no dia seguinte, compreendem o desespero dos Troianos e sentem a sua fraqueza, recusam o acordo, mas concordam em observar um dia de cessar-fogo para sepultar os respetivos mortos. Os Aqueus aproveitam também a pausa para construir uma trincheira em torno dos seus navios, tarefa que é observada por Zeus e Poseidon, que planeia destruir assim que os homens partirem.

Análise do Canto VI da Ilíada

             Este canto é marcado por duas cenas ilustrativas da brutalidade e da humanidade características da guerra. A brutalidade é exemplificada pela cena do prisioneiro troiano: Menelau está inclinado a mostrar misericórdia por ele, porém Agamémnon diz-lhe que nenhum inimigo deverá ser poupado, nem mesmo uma criança ainda na barriga da mãe. Já o encontro de Diomedes e Glauco exemplificam o outro lado da guerra, onde impera a amizade, considerada então sagrada, nomeadamente para com os hóspedes, e que passava de geração em geração. Em sentido contrário, a ação de Páris ao fugir com Helena desrespeita o princípio que deve caracterizar a relação entre um hóspede e o seu anfitrião. A cena de Diomedes e Glauco representa a vitória da amizade sobre a honra e a glória conquistadas na guerra, o que constitui um sinal de esperança para a humanidade.

            Esta cena contém também um simbolismo profundo no contexto da Ilíada. De facto, Glauco compara a vida dos seres humanos a gerações de folhas que morrem e renascem na primavera. Esta comparação simboliza o ciclo da vida: Glauco e Diomedes são as folhas velhas que morrerão, que serão levadas pelo vento e esquecidas.

            A ação de Heitor remete para a importância de viver uma vida nobre e honrada e caracterizada pela conquista da glória individual, não obstante o preço que seja necessário pagar. Andrómaca receia que o marido morra na batalha e pede-lhe que não volte. Apesar de ele estar consciente das terríveis consequências que a sua eventual derrota acarretará para a sua família, a sua pátria e especialmente a esposa, e de que a vida humana é muito frágil, pois é controlada pelos deuses, e não se pode prever como ou quando desembocará na morte, o seu sentido de honra e o desejo de glória não lhe permitirão seguir outro caminho. Uma vida sem honra não é digna de ser vivida.

            Este episódio tem outra função: humanizar a figura de Heitor. Tal é conseguido em vários momentos: as palavras que dirige a Andrómaca; a interação carinhosa com o filho; a cena em que a mãe amamenta o filho, que evidencia o modo como a guerra separa as famílias e priva os inocentes dos seus pais; o episódio em que Heitor assusta o filho com a crista do capacete ao retirá-lo, que mostra como o grande guerreiro troiano, que acaba de afirmar a sua aspiração à glória imortal e a sua vontade férrea de lutar contra o inimigo, também possui um lado carinhoso e ternurento. Além disso, a cena alivia a tensão dramática, pois afasta o olhar do leitor do horror da guerra, mas, em simultâneo, enfatiza a tragicidade da mesma: a inocência de uma criança de tenra idade versus o horror do combate.

            Os últimos cantos têm em comum o confronto entre deuses e humanos. Se estes se envolvem na sua guerra terrível, os primeiros perdem-se nos seus próprios conflitos, muitas vezes, arcados pela futilidade e mesquinhez. Curioso, porém, é o facto de as disputas entre as divindades olímpicas acarretarem mais violência entre os homens. Por outro lado, as lealdades e as motivações dos deuses mostram-se mais superficiais do que as dos humanos. Por exemplo, não cumprem os pactos que estabelecem com grande facilidade, como acontece com Ares, o deus da guerra, que se tinha comprometido a auxiliar os Gregos, mas acaba por se passar para o lado troiano. Quando a guerra não lhes corre de feição, reclamam do árbitro, ou seja, de Zeus. Em suma, a imagem que ressalta dos conflitos no Olimpo é a de uma família disfuncional.

Resumo do Canto VI da Ilíada

             Com os deuses afastados da batalha, os Gregos fazem os Troianos recuar em direção a Troia, e Menelau faz refém um cocheiro troiano, chamado Adestro, que lhe roga que o liberte. O ex-esposo de Helena está inclinado a atender ao pedido em troca de um resgate, mas Agamémnon convence-o a matar o prisioneiro, o que os irmãos fazem em conjunto.

            Heleno, um adivinho, exorta Heitor a regressar a Troia e a pedir a sua mãe, Hécuba, e às demais mulheres nobres que orem no templo de Atenas e façam oferendas à deusa. De seguida, vai ao encontro de Páris, que se retirou da batalha, alegando que estava demasiado triste para lutar. Heitor e Helena não escondem o seu desprezo pelo irmão e companheiro, o que faz com que Páris regresse ao combate. Depois Heitor visita a sua esposa, Andrómaca, que está ocupada com o filho de ambos, Astianax, e observa, ansiosa, o combate que decorre em baixo, na planície. Ela implora ao marido que se retire da luta, mas ele recusa a ideia, pois a sua honra não o permite e, se o fizesse, morreria de vergonha, além de que não pode fugir ao seu destino, seja ele qual for. Então beija o filho, que se assusta inicialmente com a crista do capacete, mas acaba por corresponder ao afeto do pai numa cena familiar comovente. Quando Heitor regressa à batalha, Andrómaca sofre, convencida de que o esposo morrerá em breve. No caminho, encontra o irmão e os dois voltam à refrega.

            Neste canto, há um outro momento digno de destaque. Diomedes e Glauco, um troiano, enfrentam-se no campo de batalha. O grego questiona-se quem será o inimigo, pois não se tinha apercebido da sua presença. Glauco informa-o, então, sobre a sua linhagem, e acabam por descobrir que os seus antepassados trocaram presentes de amizade entre si. Os dois declaram também amizade um pelo outro e trocam as armaduras.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Uma análise de Que farei com este livro?

     
     O trabalho aqui divulgado é uma análise da obra Que farei com este livro?, da autoria de José Saramago.
     Trata-se de uma tese de mestrado, de Cybele Regina Melo dos Santos, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

     O trabalho pode ser encontrado no link seguinte: tese.

Podcast Que farei com este livro?


    Que farei com este livro? é o título de um podcast, da autoria de Catarina Duarte Almeida, que está disponível em qualquer plataforma de streaming.

     Nas palavras da autora, « trata-se de um podcast de frequência semanal, de episódios curtos, que dá uma breve explicação dos conteúdos programáticos do ensino secundário». A ligação para o primeiro episódio, reproduzido neste caso no Spotify, é este: Que farei com este livro? [clicar no link].

     Com a autorização da autora, iremos publicando os episódios que for produzindo, com a respetiva ligação.

Gavin MacLeod


1931 - 29/05/2021

 

Análise do Canto V da Ilíada

             O Canto V constitui, essencialmente, a aresteia de Diomedes, a mais longa e sangrenta (à exceção da de Aquiles, nos Cantos XX a XXII), que, no fundo, procura compensar a ausência de Aquiles, não obstante não conseguir, em última análise, fornecer a força que o líder dos Mirmidões costumava proporcionar ao exército aqueu e ao combate, como o demonstra a observação de Hera, segundo a qual, enquanto o filho de Tétis combateu, nenhum cavalo de Troia se aventurou para além dos portões da cidade.

            Tal como sucede na aristeia, Diomedes é inspirado e auxiliado por uma divindade (neste caso, Atenas), as suas armas salientadas e a sua vitória certa, apesar de se encontrar ferido. Estilisticamente, o poeta recorre a determinados símiles para descrever as cenas da batalha; por exemplo, compara a ação de Diomedes a água furiosa e os seus ataques a um leão «louco por garras».

            No que diz respeito aos deuses, mais uma vez parecem dar pouca ou nenhuma importância às consequências das suas ações para os humanos, exceto se se tratar de um seu protegido naquela ocasião. O que lhes interessa essencialmente, de forma mesquinha, são os conflitos entre si. Por outro lado, quando comparados com os homens, os deuses parecem mais frágeis no que toca a lidar com a dor e o sofrimento. A título exemplificativo, citem-se os casos de Afrodite e Ares, que, quando são feridos, recolhem logo ao Olimpo e se queixam, quais crianças, ao «pai» Zeus, enquanto Diomedes continua a combater depois de ser ferido.

            As descrições das batalhas são longas e frequentemente centram-se nos massacres em massa que as caracterizam, mas alternam com apontamentos individuais. O poeta, em diversos momentos, apresenta-nos a personagem que acabou de morrer ou está em vias disso, dando-nos a conhecer os seus antecedentes, as suas origens e educação, enfatizando frequentemente a perda que o seu passamento constitui para o seu exército e a sua pátria. Além disso, Homero alterna descrições de mortes de combatentes troianos e aqueus, estratégia que impede que a narração se torne monótona e dê conta do fluxo e refluxo da batalha.

            Por outro lado, as provocações são um elemento bastante importantes no contexto das batalhas. Os soldados desafiam a coragem e a honra dos seus companheiros para se incentivarem e motivarem para o combate. Por exemplo, Sarpédon diz a Heitor que os seus comandados estão a lutar bem melhor para defender Troia do que os troianos do filho de Príamo. Durante os combates, os homens provocam também os seus inimigos com o intuito de os desanimar, e até os próprios deuses usam esse estratagema, como, por exemplo, quando Hera humilha os Aqueus, dizendo-lhes que Aquiles nunca permitiu que os Troianos passassem além dos portões da cidade.

Resumo do Canto V da Ilíada

             Diomedes, um soldado aqueu, é ferido por Pândaro, o que o leva a orar a Atenas, que lhe confere uma força sobre-humana e o poder de discernir os deuses no campo de batalha, mas alerta-o para não atacar nenhum, à exceção de Afrodite.

            Dotado dos seus novos poderes, Diomedes massacra todos os inimigos que lhe surgem pela frente. Eneias e Pândaro perseguem-no, mas Atenas guia-lhe a lança, que proporciona uma morte horrível ao arqueiro, enquanto o herói da Eneida é ferido e só não encontra a morte graças à intervenção de Afrodite, sua mãe. Diomedes fere também a deusa, cortando-lhe o pulso e mandando-a de volta ao Olimpo, onde Dione, a sua mãe, a cura, e Zeus a adverte para não voltar a interferir na guerra. Quanto a Eneias, é tratado por Apolo, que o cura e devolve, posteriormente, à batalha, mas nesse percurso acaba por ser atacado por Diomedes, gesto que configura uma transgressão ao acordo que tinha feito com Atenas de não agredir qualquer outra divindade além de Afrodite. Apolo avisa severamente o guerreiro grego e afasta-o do seu caminho, enquanto retira Eneias do campo de batalha e deixa uma réplica do troiano no solo, para servir de motivação aos companheiros. Por último, o deus do Sol incentiva Ares a lutar por Troia, informando-o de que um aqueu (Diomedes) acabou de ferir a sua irmã (Afrodite).

            Graças à ajuda divina, os Troianos parecem ganhar vantagem na contenda, sobretudo graças à ação conjunta de Heitor e Ares, demasiado fortes para os inimigos. Os heróis de ambos os lados vão vingando a morte dos seus homens. Alarmadas com o recuo dos Gregos, Hera e Atenas obtêm de Zeus a permissão para intervir no conflito em auxílio dos Aqueus. Assim, Hera confronta os Gregos com o facto de Aquiles nunca ter permitido que os inimigos saíssem para além dos seus portões, enquanto Atenas permite que Diomedes ataque outros deuses e o incentiva a acometer Ares, que é atingido pela carruagem e voa de regresso ao Olimpo, onde reclama de Zeus, que lhe responde que mereceu o seu ferimento. Atingido o seu propósito, Hera e Atenas retiram-se também do campo de batalha.

Análise do Canto IV da Ilíada

             Ao contrário das religiões contemporâneas, os deuses gregos incorporam em si as mesmas paixões e falhas dos seres humanos e interagem com estes frequentemente. A diferença entre uns e outros é que as entidades divinas são eternas, enquanto a humanidade é mortal. A imortalidade divina transforma os seus conflitos em algo trivial e até algo caricato, em contraste com o sofrimento, a dor e a morte que marcam a existência terrena. Como não existem consequências para si, os deuses encontram até prazer nos conflitos em que se envolvem, o que pode ajudar a explicar o facto de Hera e Atenas não aceitarem a trégua entre Troianos e Aqueus, que poderia significar o fim daquela guerra interminável e a instauração da paz, e tudo fazerem para a batalha prosseguir, para vingarem o seu orgulho ferido com a questão do pomo de ouro.

            Deste modo, a guerra é retomada, havendo referências à morte de personagens menores e a confrontos individuais entre figuras bem mais notáveis. As descrições dos ferimentos que os lutadores vão sofrendo são terríveis, baseadas numa fórmula característica. Esses ferimentos são provocados por espadas, lanças, flechas e pedras, que cortam, dilaceram, esmagam diferentes partes do corpo, com a exposição ocasional de um ou outro órgão interno. Tudo isto é apresentado pelo poeta com diferentes detalhes específicos, no sentido de criar uma panóplia diversificada de mortes no campo de batalha.

            Retirar a armadura ao inimigo derrotado ou apossar-se do seu cavalo constituem prémios valiosos cuja reivindicação aumenta a honra do vencedor e desonra o derrotado. Só que a ânsia de obter estas recompensas por vezes têm consequências fatais para quem as deseja alcançar, dado que o coloca numa situação de alguma vulnerabilidade. É exemplificativa disto a referência à primeira morte na obra: um soldado, após a morte do inimigo, procura imediatamente retirar a armadura do corpo do morto, «distrai-se» e acaba por ser assassinado.

            Por outro lado, nem o partido Aqueu nem o Troiano são apresentados no poema como melhores do que o outro. Tal é demonstrado pela imagem de dois soldados, um grego e outro troiano, jazendo mortos um ao lado do outro, enquanto companheiros seus prosseguem a luta e vão tombando à sua volta. Este facto não pode ser dissociado de outra questão, a da inexistência de vilões propriamente ditos no poema. De facto, se é verdade que o poeta narra os eventos na ótica grega, de modo algum vilaniza os Troianos, até porque, noutros momentos, os contendores foram aliados e combateram pelo mesmo objetivo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aliança que dois povos estabeleceram para combater as Amazonas. A violência, o sofrimento, a dor e a morte recaem sobre ambos os exércitos de forma semelhante; o alívio sentido no momento em que se acorda que o duelo entre Menelau e Páris porá fim ao conflito é o mesmo para uns e outros; os combatentes das duas fações desejam que o culpado pela eventual quebra da trégua seja massacrado e as suas mulheres estupradas; quando o cessar-fogo é efetivamente rompido, fica claro que nenhum dos partidos é o culpado, dado que o tiro de Pândaro sobre Menelau só é dado porque Atenas a tal conduz. Assim sendo, é perfeitamente lícita a conclusão de que os únicos que, verdadeiramente, retiram prazer da guerra e a quem prolongar são os deuses, que manipulam os seres humanos para atingir os seus propósitos.

Resumo do Canto IV da Ilíada

             No Olimpo, os deuses discutem sobre a guerra. Zeus argumenta que Menelau venceu o duelo com Páris, pelo que o conflito bélico deveria terminar, como acordado entre Gregos e Troianos, e Helena ser devolvida aos primeiros. A esta ideia opõe-se Hera, que não se satisfaz com a vitória grega, antes deseja a destruição completa de Troia. No final da discussão, Zeus cede e envia Atenas ao campo de batalha para levar os Troianos a quebrar a trégua.

            Assim, disfarçada de soldado troiano, a deusa convence o arqueiro Pândaro a disparar sobre Menelau. Ele dispara, mas Atenas, que não deseja que o ex-esposo de Helena seja morto, unicamente quer que os Aqueus tenham um pretexto para regressar ao combate, desvia a flecha, que apenas fere levemente Menelau.

            Deste modo, o objetivo do Olimpo é alcançado: a trégua foi quebrada. Agamémnon reúne o seu exército e estimula e desafia o orgulho dos principais guerreiros, narrando os grandes feitos dos seus pais. A batalha recomeça e a carnificina também, destacando-se as ações de Ulisses e Ájax, que liquidam várias figuras menores do lado troiano. Como sempre, os deuses não ficam à margem e intervêm no desenrolar dos acontecimentos, com destaque para Atenas, que ajuda os Gregos, e Apolo, que está ao lado dos Troianos. E assim os humanos atuam como meros joguetes manipulados pelos deuses.

Análise do Canto III da Ilíada

             Nos dois primeiros cantos, o poeta apresenta os comandantes das forças aqueias; neste, introduz as principais figuras do campo troiano, nomeadamente Príamo, Heitor, Páris e Helena. A ex-rainha de Esparta é descrita como simpática: ela lamenta profundamente o custo do episódio por si protagonizado e chega a desejar ter morrido antes de fugir com Páris, o que mostra a sua vergonha e a consciência da sua responsabilidade na morte de tantas pessoas. O seu remorso e arrependimento, a consciência de que agiu mal e é a causa de tanto sofrimento são bem evidentes quando observa as fileiras do exército aqueu. A cena torna-se pungente quando questiona se os seus irmãos (Castor e Pólux), que não consegue vislumbrar no seio dos Aqueus, se terão recusado a integrar a expedição grega e a lutar por uma irmã tão odiosa, desconhecendo que, na realidade, estão mortos, pelo que a sua ausência não se deve à raiva ou à vergonha pela irmã, mas antes por fazerem parte da vasta lista de vítimas do conflito que ela originou. Quando Afrodite a junta no quarto a Páris, Helena resiste e parece não nutrir grande afeição por ele, chegando inclusive a criticá-lo pela sua cobardia. No entanto, enquanto deusa, Afrodite tem o poder de forçar a ex-esposa de Menelau a amar Páris, o que gera, junto do ouvinte/leitor, uma situação contraditória que exemplifica a complexidade humana: Helena ama e despreza Páris em simultâneo.

            Ao contrário dela, Páris não parece sentir grande pudor ou sentido de responsabilidade pelo seu papel no espoletar da guerra, no que contrasta com Heitor. Ao avistar Menelau, Páris foge, o que lhe vale a crítica do irmão, muito mais consciente do ideal de honra, crítica essa motivada pela desgraça e sofrimento que trouxe, tanto a si mesmo como a todo o exército troiano. E chega mesmo a desejar que Páris tivesse morrido antes de consumar o rapto da bela Helena e, com isso, desgraçar o seu povo. É esta crítica de Heitor que faz com que Páris aceite duelar com Menelau, embora contrariado; porém, a luta rapidamente se torna embaraçosa para o lado troiano, e ele tem de ser salvo da morte por Afrodite, a deusa grega do amor (também designada, no Canto V, como «deusa cobarde»), e não por um deus ligado à guerra. O príncipe troiano culpa até os deuses pelo desfecho da contenda (algo que o poeta jamais sugere e que é desmentido, por outro lado, pelo esforço desenvolvido por Menelau durante o duelo, clarificador da ausência de ajuda a seu favor), mas não mostra qualquer incómodo ou contrariedade quando a deusa o leva para o seu quarto. E é este passo da Ilíada que mais contribui para o esboço de um retrato profundamente disfórico de Páris: enquanto está recolhido nos seus aposentos, fazendo amor com Helena, o exército troiano é forçado a continuar a lutar em nome da mulher que ele roubou aos aqueus. Esta conduta revela toda a cobardia de Páris e colide com o código de honra do herói, o que desagrada ao seu próprio exército, que o odeia «como a morte».

            Por seu turno, Príamo emerge como a personagem mais humana. Dada a sua idade avançada, já não pode participar na guerra como combatente, pelo que a sua intervenção não é movida por qualquer desejo de honra ou glória. Os anciãos de Troia querem devolver Helena aos Gregos, porém o velho monarca opõe-se-lhe. Ele não a culpa pelo sucedido e trata-a com humanidade e compaixão, não obstante toda a desgraça que fez recair sobre a cidade.

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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Resumo do Canto III da Ilíada

             O exército troiano marcha em direção ao homónimo aqueu. Páris, o príncipe de Troia, avança corajosamente à frente das suas forças e desafia os Aqueus para um combate individual com qualquer um deles, mas, quando é confrontado por Menelau, o marido de Helena, acobarda-se e recua, escondendo-se nas fileiras do seu exército. Heitor, seu irmão e comandante das forças que defendem Troia, humilha-o, afirmando que é mais belo do que corajoso. Com o orgulho ferido por causa da ofensa do irmão, Páris concorda em duelar com Menelau, declarando que o desenlace do duelo corresponderá ao fim da guerra e à restauração da paz, pois decidirá de vez qual dos dois terá Helena como esposa.

            Enquanto os dois inimigos se preparam para o combate, a deusa Íris, disfarçada de Laódice, irmã de Heitor, visita Helena no palácio real e convida-a a assistir ao duelo entre Páris e Menelau. Ela junta-se então a Príamo e a outros anciãos da cidade, identifica e descreve os guerreiros aqueus mais fortes, nomeadamente Ulisses, Agamémnon e Ájax. O rei troiano fica impressionado com a força e o esplendor dos Aqueus, mas acaba por abandonar o local, pois não suporta ficar e assistir à morte do seu filho Páris.

            O combate tem início e nenhum dos dois consegue ferir o outro ao arremessar as suas lanças. Menelau acaba por quebrar a espada no elmo de Páris e, de seguida, agarra-o pelo capacete e começa a arrastá-lo pelo solo, procurando estrangulá-lo com a tira do capacete. Contudo, Afrodite, uma deusa aliada dos Troianos, intervém e rompe a tira para que se solte das mãos de Menelau, que, frustrado, pega de novo na sua lança e prepara-se para a espetar no inimigo, porém a deusa volta a interferir, levando o troiano para o seu quarto no palácio de Príamo. Além disso, ela convoca Helena, que censura Páris pela sua cobardia e, a seguir, se deita com ele.

            De volta ao campo de batalha, os Troianos e os Aqueus procuram Páris, que desapareceu magicamente da sua frente. Perante isto, Agamémnon declara Menelau o vencedor do duelo e exige o retorno de Helena.

Análise do Canto II da Ilíada

             Em ambos os seus poemas, Homero inicia a narração da ação «in medias res», ou seja, quando ela já vai a meio. O mesmo fará, por exemplo, Camões, muitos séculos depois, quando inicia a narração da viagem de Vasco da Gama à Índia quando ela já se encontra ao largo de Moçambique. O trajeto entre Lisboa e o país africano é relatado posteriormente sob a forma de analepse.

            No caso da Ilíada, é referido no início deste canto que a guerra entre Aqueus e Troianos já dura há mais de 9 anos. O motivo que esteve na sua origem é referido «en passant», presumindo-se que os ouvintes já conhecem toda a história: Zeus designou Páris, um príncipe troiano, para decidir qual das deusas – Hera, Atenas ou Afrodite – era a mais bela. Essa disputa teve origem numa velha lenda, segundo a qual o chefe dos deuses olímpicos e o seu irmão Poseidon desejavam desposas Tétis. No entanto, Prometeu profetizou que o filho da deusa seria maior do que o seu pai, por isso as divindades resolveram dá-la como esposa a Peleu, um homem já idoso, procurando, assim, que a profecia não se concretizasse. Desse enlace nasceu Aquiles. Tétis, sua mãe, mergulhou-o nas águas do rio Estige (o curso de água que atravessava o Inferno) ainda bebé para o tornar invulnerável. Tal de facto sucedeu, exceto no calcanhar por onde a mãe a segurou enquanto o mergulhava no rio (daí surgiu a expressão «o calcanhar de Aquiles», que designa o ponto fraco de cada pessoa). Aquiles tornou-se um poderoso guerreiro quando atingiu o estado adulto, porém era mortal, e foi alertado por sua mãe de que tinha dois destinos possíveis: por um lado, combateria em Troia e alcançaria a glória eterna, mas morreria jovem; por outro, permaneceria na sua terra natal e teria uma vida longa, contudo seria logo esquecido assim que perecesse. A escolha feita pelo líder dos Mirmidões é conhecida. Mas a lenda não se esgota aqui. Para o casamento de Tétis e Peleu, foram convidados todos os deuses exceto Éris, a deusa da Discórdia (a discórdia, naturalmente, não era bem-vinda a um matrimónio). Ofendida, marcou presença no enlace invisível e depositou na mesa um pomo de ouro com a inscrição «Para a mais bela». Hera, Atenas e Afrodite discutiram entre si qual seria a destinatária do fruto. Zeus, que não desejava atrair para si o odioso da decisão e a fúria das perdedoras, designou Príamo para resolver a contenda, no entanto, como já era idoso, o rei apontou o seu filho Páris, na altura um pastor de rebanhos, para proceder à escolha. Cada uma das três deusas procurou suborná-lo: Hera ofereceu-lhe o poder político e a oportunidade de ser o rei mais forte de todos os tempos; Atenas, habilidade na guerra e a possibilidade de ser o homem mais sábio de sempre; Afrodite, a mulher mais bela do mundo. Páris escolheu a oferta desta última e entregou-lhe o pomo, atraindo em simultâneo a fúria das outras duas deusas. Esse ser feminino era Helena, filha de Zeus e de Leda, esposa de Tíndaro (e irmã gémea da rainha Clitemnestra, de Castor e Pólux), rei de Esparta. A jovem possuía diversos pretendentes, e o seu pai adotivo hesitava em tomar uma decisão acerca do marido da sua filha, temendo ofender os demais. Ulisses, rei de Ítaca, resolveu a questão, levando a que todos os pretendentes jurassem proteger Helena e a sua escolha, qualquer que ela fosse. Em última análise, a jovem escolheu Menelau. Tempos depois, uma embaixada troiana deslocou-se a Esparta, cidade de que o dito Menelau era rei. Dessa embaixada diplomática fazia parte Páris, que, assim que viu Helena, se apaixonou por ela, graças à ação de Afrodite. Os dois acabaram por fugir para Troia, o que deixou enfurecido o marido da bela mulher, o qual relembrou aos antigos pretendentes o juramento feito. Agamémnon, irmão de Menelau, reuniu então um enorme exército de mil barcos e atravessou o mar Egeu, em direção à cidade de Troia, iniciando um cerco que durou dez anos.

            Se, no Canto I, o poeta destacou as figuras de Agamémnon, o seu orgulho e teimosia, e de Aquiles, homem corajoso, mas também orgulhoso e temperamental, e o seu conflito, no II são salientados Ulisses e Nestor, que são trazidos a primeiro plano a propósito da debandada dos soldados em direção aos seus navios, para regressarem a casa. Os discursos que ambos proferem a propósito desse evento destacam o seu papel de conselheiros sábios e previdentes, astutos e com clareza de espírito, características fundamentais para fazer retornar o exército ao cumprimento do propósito que o tinha trazido ali. Por outro lado, os seus discursos não deixam dúvidas de que são os mais talentosos dos Aqueus em matéria de oratória e retórica.

            Além de estar na origem dos dois discursos de Ulisses e Nestor, a fuga dos soldados gregos cumpre três propósitos no poema. Por um lado, evidencia o dramatismo da situação vivida pelos Aqueus: o seu líder, afinal, não tem consciência da baixa moral que se instalou entre as suas tropas, daí a incredulidade quando assiste à debandada e desistência da guerra. A celeridade e a ansiedade com que os soldados fogem exemplificam a dor e o sofrimento que vivem, mas demonstram igualmente como o prosseguimento futuro da batalha será mais difícil ainda, em razão da saudade e da falta de motivação para o combate que revelam. Por outro lado, ao dar conta, de forma tão enfática, do sofrimento dos Gregos, o poeta enfatiza, com antecedência, a glória que constituirá a vitória final dos Aqueus, já que estes estiveram muito próximos de abandonar o campo de batalha e regressar a casa cobertos de vergonha e caídos em desgraça. O facto de os homens mostrarem que são capazes de superar o seu sofrimento, o seu desespero e o desejo de retornar para casa, para junto dos seus, em direção à vitória na guerra indicia claramente a imensidão do triunfo grego. Em terceiro lugar, a fuga leva à enumeração das forças aqueias. Seguindo o conselho de Nestor, elas organizam-se por cidade e clã, o que garante a motivação dos soldados: ao lutarem lado ao lado com os seus amigos e familiares, o seu investimento emocional no combate estaria garantido e a distinção entre corajosos e cobardes seria mais fácil de fazer. Até a tarefa de construir o catálogo parece constituir um exercício grandioso, justificando a nova invocação das musas por parte do poeta. Embora a listagem possa constituir uma tarefa enfadonha para o leitor atual, ela seria, na época, motivo de orgulho, emoção e inspiração. A conquista de Troia foi um feito épico, glorioso, para o qual contribuíram muitos homens e muitas cidades, incluindo as menores. Cada grego que escutava a história e ouvia citar a sua cidade e os seus líderes e heróis antigos lendários como participantes desse triunfo histórico sentiria um orgulho desmedido, ao ver evocada a sua herança honrosa.

            Estilisticamente, neste canto voltam a destacar-se traços da oralidade, como as repetições. Por exemplo, no seu início, Zeus envia a Agamémnon uma mensagem através de um sonho, que é repetido ao rei grego quase integralmente e que este reproduz ao seu exército com as mesmas palavras. As descrições do ritual de sacrifício que encontramos noutras poemas são uma repetição parcial ou integral da que encontramos neste canto. Estas repetições são muito importantes, na medida em que destacam e reforçam ideias importantes junto dos ouvintes da obra que, por esta ser transmitida oralmente e não por escrito, não poderiam coltar atrás e reler um passo que não compreendessem à primeira leitura). Além disso, estas repetições davam tempo ao poeta/ao contador para pensar no trecho seguinte. Outro recurso que avulta neste canto é a comparação. O exército aqueu é comparado enxames de abelhas e a moscas, a um incêndio e a bandos de pássaros. Estas comparações evocam a vida para além da guerra, mas também contêm sugestões de agressividade, violência ou destruição trazidas pela guerra. O efeito geral das múltiplas comparações do Canto II sugere que a guerra e o conflito são parte integrantes da existência humana.

Resumo do Canto II da Ilíada

             Para cumprir a sua promessa a Tétis de ajudar os Troianos, Zeus envia um sonho falso a Agamémnon, no qual lhe aparece a figura de Nestor, que o convence de que poderá derrotar e conquistar Troia se atacar as muralhas da cidade. No dia seguinte, o comandante do exército aqueu reúne-o para dar início ao ataque, mas antes, para testar a coragem dos soldados e a sua vontade de lutar, mente-lhes, dizendo-lhes que desistiu da guerra e que vai voltar para casa. Ato contínuo, os soldados correm para os navios, mas Hera, ao ver isto, alerta Atenas, que inspira Ulisses, o mais eloquente dos gregos, a fazê-los regressar. Acolitado por Nestor, o rei de Ítaca dirige ao exército palavras de encorajamento e insultos, no sentido de despertar o seu orgulho e restaurar a sua confiança e vontade de guerrear. Por outro lado, relembra-os dos sinais que indiciavam a sua vitória na guerra, nomeadamente da profecia de Calcas, proferida aquando da primeira reunião do exército aqueu na Grécia, segundo a qual uma cobra de água deslizou até à costa e devorou um ninho de nove pardais. De acordo com o adivinho, a profecia significava que passariam nove anos até que os Aqueus conquistassem Troia. E aproveita para recordar aos soldados a sua jura de então de que não abandonariam a luta até que a cidade fosse conquistada.

            De seguida, Nestor encoraja Agamémnon a organizar os combatentes por cidade e clã, para que pudessem lutar ao lado dos seus amigos, conhecidos e familiares. De seguida, o poeta invoca as musas para auxiliarem a sua memória e enumera as cidades que contribuíram com tropas para formar o exército grego, o número e homens com que cada uma contribuiu e quem lidera cada contingente. No final da enumeração, o poeta realça os mais bravos dos Aqueus, nomeadamente Aquiles e Ájax. Então, Agamémnon dá início aos preparativos para a batalha e faz sacrifícios em honra de Zeus. Das tropas que se preparam para o combate não fazem parte Aquiles e os Mirmidões, por causa da sua jura de que não mais tomaria parte na guerra.

            Zeus envia um mensageiro a Troia, avisando os Troianos sobre os preparativos do exército aqueu. Aqueles reúnem as suas tropas sob o comando de Heitor, filho de Príamo, o rei da cidade. Depois o poeta cataloga as forças troianas, à semelhança do que tinha feito com os Gregos.

Análise do Canto I da Ilíada

             O primeiro verso da Ilíada apresenta-nos desde logo o tema do poema: a cólera/a fúria de Aquiles, evidenciada pela primeira palavra da obra – menin. E qual é a sua causa? Nada mais nada menos do que o orgulho e a honra, este último um conceito central na Antiguidade. Por outro lado, a palavra menin também significa «preço» ou «valor», o que significa que a perda de um prémio muito valioso por parte de Agamémnon constitui igualmente uma perda significativa de honra. No entanto, parece que abdicar de algo muito valioso para resguardar o seu exército constituiria também um gesto de honra e valor. Todavia, o orgulho de Agamémnon impossibilita isso, mesmo tendo como contrapartida a promessa de valiosas recompensas futuras.

            Agamémnon só aceitará devolver a sua escrava se receber, em troca, Criseida, um «prémio igual», portanto, o que origina o conflito com Aquiles: cada um insulta a honra e o orgulho do outro – o filho de Tétis e Peleu apelida o rei de ganancioso e cobarde, enquanto este menospreza as qualidades guerreiras daquele. Quando Agamémnon retira Briseida a Aquiles, desonra-o, bem como a sua mãe, por extensão, o que significa que agravou o seu maior guerreiro e os deuses do Olimpo. Note-se que Agamémnon já tinha cometido o crime da sua filha Ifigénia, cuja vida sacrificou para beneficiar do favor dos ventos nas velas dos seus navios que tinham encalhado a caminho de Troia antes do início da guerra, gesto que causará a sua própria morte, às mãos da sua esposa, após o seu regresso da batalha, em parte como vingança pelo sacrifício da jovem. Nada disto faz parte da ação da Ilíada, mas ajuda a compreender a postura de Agamémnon, que tudo sacrificou (incluindo a sua filha, o que configura a sua hybris, o desafio pelo qual irá pagar o máximo preço: a vida) para atender ao seu orgulho e alcançar os seus objetivos.

            Assim sendo, a Ilíada, no Canto I, centra-se na fúria de Aquiles, nomeadamente na sua origem/causa, no modo como incapacita o exército aqueu e como, posteriormente, é redirecionada para os Troianos. Assim sendo, é possível supor que a guerra propriamente dita serve mais como pano de funo da obra do que como seu assunto principal. É uma hipótese de análise que se pode colocar em cima da mesa. Parecendo confirmar esta ideia, temos o facto de, aquando do enfrentamento entre Agamémnon e Aquiles, o conflito entre Troianos e Aqueus durar há quase dez anos; além disso, a ausência do filho de Tétis do campo de batalha dura apenas alguns dias e o poema termina pouco depois do seu regresso. Por outro lado, a obra de Homero não enuncia as origens nem o desenlace da guerra, antes se debruça sobre as origens e o fim da fúria de Aquiles.

            Um outro foco de análise da Ilíada prende-se com a figura dos deuses, as suas ações e motivações. São eles que conduzem os humanos. Note-se, por exemplo, que, no fundo, o responsável do conflito entre Agamémnon e Aquiles é Apolo e a praga enviada sobre o acampamento aqueu, não obstante a importância da natureza humana. Para os gregos antigos, quer as motivações internas quer os acontecimentos que estão fora do controle humano são obra dos deuses. Por exemplo, Aquiles só não mata Agamémnon porque Atenas o impede. De modo muito genérico, podemos dizer que os deuses intervêm nos assuntos mortais de duas formas. Por um lado, agem como forças externas no curso dos acontecimentos. Exemplo disto é o facto de ser Apolo a enviar a praga sobre os Aqueus. Por outro lado, eles constituem forças internas que agem sobre os indivíduos, como se pode comprovar pelo facto de ser Atenas, a deusa grega da sabedoria, a impedir Aquiles de matar Agamémnon, um ato distante de qualquer racionalidade, vencendo-o antes através das palavras. Além disso, as ações dos deuses funcionam ainda como forma de alívio cómico. Por exemplo, a querela entre Zeus e Hera configura um conflito bem mais leve do que a disputa entre Aquiles e Agamémnon.

            Isto não impede que o poeta apresente as divindades próximas da mundividência humana. Zeus compromete-se a auxiliar os Troianos não por uma questão moral, mas apenas para pagar um favor que deve a Tétis. De modo semelhante, a hesitação em cumpri a promessa não tem a ver com a intenção de não interferir no curso dos acontecimentos, mas com o seu receio de irritar Hera. Quando esta fica realmente irritada, o esposo só a consegue silenciar quando ameaça estrangulá-la. Estes exemplos de partidarismo, orgulho ferido e conflitos domésticos, bastante comuns entre os deuses olímpicos, sugerem uma imagem das divindades como figuras mais «humanas» do que se poderia esperar.

            Em suma, o Canto I da Ilíada deixa, desde logo, bem visível a importância do orgulho e da honra pessoal no contexto do sistema grego de valores da Antiguidade. Exemplo disso são as atuações de Aquiles e Agamémnon, que colocam o seu «eu», o seu orgulho, a sua glória individual acima do bem-estar do seu exército. O comandante aqueu acredita que, enquanto chefe do exército, tem direito ao maior prémio disponível – Briseida –, por isso não hesita em hostilizar o seu guerreiro mais destacado, para garantir que possuirá o que acredita ser-lhe devido. Por seu turno, Aquiles opta por defender o seu direito a Briseida, o despojo que lhe coube após a vitória e o saque da cidade aliada de Troia, em vez de acalmar a situação. Orgulhosos, cada uma das personagens considera que submeter-se à vontade do outro constituiria uma humilhação, em vez de um gesto de honra ou dever. Isto significa que ambos colocam o seu interesse à frente do do seu povo e dos seus comandados, colocando, em última análise, em risco todo o esforço de guerra.

            Note-se, por último, que é possível observar características da tradição oral logo no Canto I, como, por exemplo, o recurso a epítetos. Cada personagem ou objeto podem ser referidos ou descritos de diferentes maneiras. É o caso de Aquiles, frequentemente descrito como «de pés velozes», «divino», etc. Por vezes, a escolha do vocabulário é condicionada pelo respeito pela métrica. Por outro lado, a repetição de epítetos ou determinadas expressões ajudava os ouvintes a identificar de imediato personagens e objetos.

terça-feira, 27 de julho de 2021

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Resumo do Canto I da Ilíada

             O Canto I compreende a Invocação: o poeta invoca uma musa, solicitando-lhe ajuda para contar a história da fúria de Aquiles (μῆνιν), o maior herói dentre os Gregos a participar na Guerra de Troia.

            A narrativa propriamente dita começa nove amos (quase dez) após o início do conflito bélico, no momento em que os Aqueus saqueiam uma cidade aliada de Troia e capturam duas jovens e belas donzelas: Criseida e Briseida. Agamémnon, o comandante do exército aqueu, reclama Criseida para sua escrava e concubina, enquanto Aquiles fica com Briseida. Crises, o pai da primeira e sacerdote de Apolo, implora a Agamémnon que lhe devolva a filha, oferecendo em troca um rico resgate. No entanto, o monarca grego recusa-se a satisfazer o pedido do pai ferido, por isso reza a Apolo, que envia uma praga sobre o acampamento grego que causa a morte de muitos soldados.

            Passados dez dias do surgimento da praga, Aquiles reúne o exército aqueu no sentido de averiguar a sua causa. Calcas, um adivinho, revela então que ela constitui uma vingança enviada por Apolo a pedido de Crises por causa de Agamémnon se ter recusado a devolver a filha ao sacerdote, o que provoca a fúria do líder do exército grego, que declara que só devolverá Criseida se Aquiles lhe der Briseida como compensação. Esta exigência humilha e enfurece o maior guerreiro aqueu, que ameaça retirar-se da guerra e levar consigo os Mirmidões, os seus guerreiros. A discussão entre os dois sobe de tom e somente a intervenção de Atenas impede Aquiles de matar Agamémnon. Os conselhos da deusa e o discurso sábio de Nestor conseguem, por fim, impedir o duelo.

            Nessa noite, Agamémnon envia Criseida de volta para o seu pai e manda enviados +ara Briseida seja retirada da tenda de Aquiles e conduzida à sua. Aquiles pede, então, a Tétis, deusa do mar e sua mãe, que solicite a Zeus que castigue os Aqueus, depois de lhe ter contado a sua discussão com Agamémnon. Tétis promete falar com o chefe dos deuses, que lhe deve um favor, assim que ele regressar de um período de treze dias de festa com os etíopes. Enquanto isso, Ulisses devolve Criseida ao pai e faz sacrifícios em honra de Apolo. O regresso da filha deixa Crises muito feliz e reza ao deus para que termine a praga enviada sobre o acampamento grego. Apolo aceita a oração e Ulisses regressa para junto dos seus companheiros.

            Sucede que Aquiles, depois do confronto com Agamémnon, não voltou a participar na guerra. Entrementes, passados doze dias, Tétis fala com Zeus, como havia prometido ao filho, mas o pai dos deuses hesita em ajudar os Troianos, pois Hera, sua esposa, está do lado dos Gregos, mas acaba por concordar, o que deixa a deusa furiosa, porém o seu filho Hefesto convence-a a não iniciar um conflito entre os deuses por causa de meros mortais.

Introdução à Ilíada

             A Ilíada é a primeira obra da literatura europeia e, até hoje, nenhuma outra conseguiu superá-la.
            A origem da cadeia de transmissão situa-se algures na Idade Média, mas é impossível estabelecer uma data concreta por falta de dados. Não obstante, segundo Frederico Lourenço, é possível afirmar que no século VII a.C., no fim de uma longa tradição épica oral, surgiu este poema, atribuído a Homero.
            No século VI a.C., uma família aristocrática de Atenas providenciou, a expensas próprias, a primeira edição oficial escrita do livro. Mais de duzentos anos depois, Aristóteles concretizou uma nova edição da Ilíada, que foi lida de forma apaixonada e inspiradora pelo seu mais famoso aluno, Alexandre. Nos séculos seguintes, diversos estudiosos produziram, na biblioteca de Alexandria, a famosa cidade fundada pelo mesmo Alexandre, várias edições críticas em papiro. Um milénio depois, eclesiásticos bizantinos efetuaram as cópias dos primeiros manuscritos completos que ainda hoje podemos consultar na biblioteca de Florença, Veneza e Londres. Um desses manuscritos, que se encontra presentemente na Biblioteca Ambrosiana de Milão, foi adquirida por Petrarca, que, frustrado por não conseguir ler o poema em grego, encomendou uma tradução latina a Leôncio Pilato, que constituiu, afinal, a primeira tradução renascentista da obra. Em 1488, surgiu, em Itália, a primeira edição impressa do poema homérico. Crê-se que, cerca de trinta anos depois, D. Jerónimo Osório, bispo de Silves, traduziu para português os primeiros oito cantos, trabalho que foi retomado posteriormente, também de forma parcelar, pela Marquesa de Alorna. Outras traduções foram surgindo ao longo dos séculos em língua portuguesa, no entanto, desde o Renascimento, a primeira a exprimir nela o que está, de facto, no texto grego, se encontra nos excertos da Ilíada que a professora Maria Helena da Rocha Pereira apresentou na sua antologia Hélade.
            Apesar da problemática, não solucionada, em torno da sua autoria, são vários os estudiosos que creem que se trata da obra de um só poeta, que nela trabalhou durante muitos anos, tendo numa primeira fase criado uma estrutura relativamente simples, que posteriormente se complexificou com a introdução de novos episódios. Esta ideia não exclui, porém, a hipótese de terem sido introduzidas intercalações posteriores. Por exemplo, crê-se que o Canto X não teria feito parte dos planos de Homero, como o parece comprovar o facto de os 579 versos que o constituem surgirem, em certas edições críticas, entre parênteses.
            Outra questão prende-se com o registo em que teria sido composta por Homero: escrito ou oral? Também neste capítulo as opiniões divergem: há quem defenda que o poema, embora proveniente de uma tradição oral, foi composto pelo poeta por escrito; porém, também existem autores que continuam a sustentar que os Poemas Homéricos foram ditados por um aedo analfabeto a alguém que sabia escrever.
 
            No que diz respeito ao tempo dos eventos narrados, Homero dá-nos conta de acontecimentos que ocorreram num período de pouco mais de 50 dias, já na fase final da guerra, do qual nos descreve, em termos de ação efetivamente narrada, 14 dias. Assim sendo, o poeta concentrou o conflito bélico de 10 anos em duas semanas.
            Relativamente aos motivos que deram origem à guerra, Homero pouco conta; o julgamento de Páris (a quem o poeta prefere chamar Alexandre) só é referido de passagem no Canto XXIV; e o epicentro do poema, quanto aos sentimentos adúlteros que levaram ao conflito, é a recriação, no Canto III, da primeira noite de amor de Páris e Helena, ocorrida nove anos antes. O resultado da guerra parece não interessar particularmente ao poeta, pois só o verso final do livro sugere a destruição de Troia. Por outro lado, os 55 dias da ação global do poema, bem como os 14 de ação efetivamente narrada, estão condicionados por reações em cadeia provenientes do passado, que terão repercussões trágicas no presente.

Significado do título Ilíada

             O termo Ilíada (em grego antigo: Ἰλιάς) é uma palavra grega que significa «poema sobre Ílion» (ou «Ílio»), que é um nome alternativo para designar a cidade de Troia, o cenário da guerra que está no centro da obra.

Estrutura da Ilíada

             A Ilíada está dividida em 24 cantos ou livros, os quais se dividem em 5 partes:

▪ Canto I;

▪ Cantos II a X;

▪ Cantos XI a XIV;

▪ Cantos XV a XIX;

▪ Cantos XX a XXIV.

 
            Outra possível distribuição dos 24 cantos da Ilíada é a seguinte:
 
Introdução: Apolo inflige uma praga ao exército aqueu.
 
Peripécias:

a) Agamémnon toma Briseida de Aquiles;

b) Zeus promete a Tétis punir os Aqueus por causa da afronta de Agamémnon a Aquiles;

c) Mortais e deuses combatem e são feridos em batalha;

d) Zeus proíbe os outros deuses de interferir na guerra;

e) Com a ajuda de Zeus, Heitor ataca os navios aqueus;

f) Heitor mata Pátroclo;

g) Aquiles e os deuses voltam à batalha.
 
Clímax: Aquiles mata Heitor.
 
Resolução:

h) Príamo implora a Aquiles o corpo de Heitor;

i) Aquiles devolve o corpo de Heitor a Príamo.
 
Situação final: Heitor é sepultado em Troia.
 
            A Ilíada não narra a guerra de Troia desde o começo – ab ovo, nas palavras de Horácio. Pelo contrário, a narração não chega a descrever a morte de Aquiles – tantas vezes anunciada – nem a queda de Ílion. É somente através da Odisseia que tomamos conhecimento da forma como ela correu, através do célebre estratagema do cavalo de pau.

                Depois de uma breve Proposição e Invocação, a Narração inicia-se «in medias res» (isto é, no meio dos acontecimentos): Crises avança até às naus dos Aqueus, para implorar que lhe seja restituída a sua filha Criseida, pela qual oferece um riquíssimo resgate.

                Por outro lado, a ação possui um só fio condutor, retardado por diversos episódios, que conferem variedade à narrativa, conseguida através de alguns processos literários, como, por exemplo, a mudança de cena terrestre para o Olimpo, os símiles, a breve biografia de uma vítima menor, variantes estilísticas (como a apóstrofe ou a interrogação retórica), a narração feita na ordem inversa dos acontecimentos, etc.

            O poema narra os acontecimentos decorridos no período de pouco mais de 5o dias no décimo ano da Guerra de Troia, em 15693 versos em hexâmetro datílico, compostos num misto de dialetos, resultando numa língua literária artificial que nunca foi, de facto, falada na Grécia, distribuídos por 24 livros ou cantos de tamanho desigual, identificados pela tradição literária com as letras do alfabeto grego.

 
            Resumo dos cantos:
 
Canto I: já na fase final da Guerra de Troia, Aquiles, furioso por Agamémnon lhe ter roubado a escrava Briseida, retira-se para o seu acampamento e decide não voltar a tomar parte no cerco da cidade.
 
Canto II: os Gregos, desanimados, decidem regressar a casa, mas Ulisses demove-os.
 
Canto III: Helena, do cimo das muralhas de Troia, identifica para Príamo os principais líderes gregos. Páris e Menelau duelam para decidir o destino da guerra e o primeiro é salvo da morte por Afrodite.
 
Canto IV: um archeiro troiano, durante as tréguas, fere Menelau com uma seta. Agamémnon exorta os Gregos a combater.
 
Canto V: Diomedes distingue-se no campo de batalha, chegando a ferir os deuses Ares e Afrodite.
 
Canto VI: Heitor, de regresso a Troia para apaziguar Atenas, encontra-se com a esposa e o filho, e condena a cobardia de Páris. No final, regressa à batalha com o irmão.
 
Canto VII: Heitor e Ájax lutam até à morte, mas sem resultados, pois a luta é interrompida pela chegada da noite. No dia seguinte, Gregos e Troianos fazem uma trégua para enterrarem os mortos.
 
Canto VIII: ocorre nova batalha, em que os Gregos são repelidos pelos Troianos. Os deuses retiram-se do conflito.
 
Canto IX: Agamémnon tenta reconciliar-se com Aquiles e envia-lhe uma embaixada. Ájax, Ulisses e Fénix tentam chamá-lo à razão, em vão, porém.
 
Canto X: Ulisses e Diomedes fazem, durante a noite, o reconhecimento do campo dos Troianos e matam, para além de Risos e dos seus trácios, o espião Dólon. Por isso, este canto é conhecido por Dolonia.
 
Canto XI: tem lugar a terceira grande batalha, que resulta na derrota dos Gregos. Páris fere Diomedes e Pátroclo fica a conhecer a situação precária dos Aqueus.
 
Canto XII: os Troianos aproveitam o êxito e penetram no acampamento dos Aqueus, que retiram até aos seus navios.
 
Canto XIII: os Gregos contra-atacam e anulam o ataque dos Troianos.
 
Canto XIV: Hera desvia a atenção de Zeus e a vitória inclina-se para o lado grego.
 
Canto XV: Zeus, já desperto, envia Apolo em socorro dos Troianos e o deus do Sol leva Heitor a avançar sobre os barcos gregos.
 
Canto XVI: Aquiles empresta as suas armas a Pátroclo e dá-lhe permissão para entrar na luta. Quando o veem chegar ao campo de batalha, os Troianos julgam que é Ulisses e fogem. Heitor, convencido também de que batalha com Aquiles, duela com Pátroclo e mata-o.
 
Canto XVII: gera-se uma disputa pelo corpo e pela armadura de Pátroclo. O corpo acaba por ser resgatado pelos Gregos, enquanto Heitor fica com as armas de Aquiles.
 
Canto XVIII: Aquiles, ao tomar conhecimento da morte de Pátroclo, exprime o seu desgosto e promete vingá-lo. Tétis, sua mãe, faz com que Hefesto lhe fabrique novas armas prodigiosas (as suas, que havia emprestado a Pátroclo, tinham ficado em posse de Heitor). É neste canto que se encontra a célebre descrição do escudo de Aquiles.
 
Canto XIX: a escrava Briseida é restituída a Aquiles e o diferendo entre este e Agamémnon fica sanado. O herói grego regressa à luta.
 
Canto XX: vai travar-se a quarta batalha da Ilíada, a decisiva, cujo desenlace será favorável aos Gregos. Inicialmente, os deuses também participam no conflito, mas acabam por se retirar. Aquiles semeia a morte entre os Troianos.
 
Canto XXI: os rios Xanto (ou Escamandro) e Simoente intervêm a favor dos Troianos e perseguem os Gregos com as suas águas, mas Hefesto fá-los recuar com o fogo e os Troianos têm de se refugiar dentro das suas muralhas.
 
Canto XXII: Heitor fica só diante da muralha e, ao encontrar Aquiles, inicialmente foge de medo, mas depois resiste e é morto pelo adversário. Aquiles arrasta o corpo de Heitor perante o olhar desesperado dos Troianos.
 
Canto XXIII: Aquiles e os Gregos celebram os funerais de Pátroclo com jogos, corridas e combates.
 
Canto XIV: Zeus inspira Príamo a ir até à tenda de Aquiles pedir o corpo do seu filho Heitor. Aquiles, comovido pela recordação do seu próprio pai, Peleu, restitui-lhe o cadáver. O poema finaliza com as exéquias de Heitor no meio das lamentações de Andrómaca, Hécuba e Helena.
 
            Esta divisão em 24 cantos é atribuída tradicionalmente aos estudiosos da biblioteca de Alexandria que produziram edições críticas da obra, mas nada contraria a hipótese de ser anterior.
 
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