Português: Famílias desavindas
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sexta-feira, 20 de março de 2020

Valor simbólico dos marcos históricos referidos no conto "Famílias desavindas"

A história pessoal (de ódio e conflito) entre as duas famílias «confunde-se» com a história social de Portugal.
Na transição do século XIX para o XX, a sociedade sofreu transformações decorrentes do progresso científico, facto visível, neste conto, na introdução de um semáforo a pedais numa rua da cidade do Porto e na criação da profissão de «semaforeiro».

De facto, essa época constituiu um avanço notável em termos tecnológicos. A eletricidade, a lâmpada, o telefone, o automóvel foram algumas das invenções do final do século XIX, cujo aperfeiçoamento prosseguiu no século XX e que melhoraram substancialmente a qualidade de vida de muitas pessoas. Este salto evolucional fez-se sentir igualmente noutras áreas, como, por exemplo, o cinema, sem esquecer que o avião estava também ao virar da esquina. Ora, a invenção do semáforo referido no conto insere-se nessa onda e nesse período de progresso e inovação tecnológica.
Por outro lado, as duas Grandes Guerras simbolizam os conflitos (neste caso, de grandes dimensões, com milhões de mortos e feridos, atrocidades até então «desconhecidas» do ser humano), os ódios e as agressões entre os seres humanos. São um símbolo dos grandes massacres do século XX, a que se poderiam acrescentar outros não referenciados no conto (a guerra do Vietname, as lutas pela independência por parte de países colonizados pelos europeus, a expansão do terrorismo, etc.). Sucede que a história narrada no conto de Mário de Carvalho constitui uma narrativa de desavenças e ódios, numa escada ínfima comparativamente aos eventos mundiais referidos, mas ainda assim de conflito.
O outro acontecimento mencionado no texto, este de índole nacional – o 25 de Abril de 1974 –, simboliza a liberdade, o fim da ditadura, da opressão e da perseguição, bem como mudança nas relações entre as pessoas, a abertura de ideias, o entendimento, a comunhão. A reconciliação entre as famílias dos «semaforeiros» e dos médicos sucede precisamente numa época posterior à Revolução dos Cravos.
O quadro seguinte reproduz os marcos históricos presentes no conto e o simbolismo associado a essas datas históricas.

Sequências narrativas de "Famílias desavindas"

1.ª sequência – Narração da origem dos semáforos e localização do aparelho (1.º e 2.º parágrafos).

2.ª sequência – Descrição do equipamento dos semáforos e do seu funcionamento (3.º parágrafo).

3.ª sequência – Relato do processo de seleção do primeiro semaforeiro (4.º parágrafo).

4.ª sequência – Sumário relativo às pessoas que desempenharam o cargo de semaforeiro até ao presente da enunciação (5.º parágrafo).

5.ª sequência – Descrição da relação atual entre semaforeiro, motoristas e transeuntes (6.º parágrafo).

6.ª sequência – Apresentação do primeiro médico e da origem do conflito com os semaforeiros.

7.ª sequência – Exposição das relações conflituosas entre médicos e semaforeiros (8.º ao 12.º parágrafos).

8.ª sequência – Narração do acidente e da reconciliação entre semaforeiros e médicos (13.º ao 16.º parágrafos).


Personagens de "Famílias desavindas"

I. Caracterização

As personagens centrais do conto distribuem-se, essencialmente, por duas famílias: a dos médicos e a dos «semaforeiros».

A família dos semaforeiros é constituída por quatro elementos, cujo traços de união são (1) a inimizade pelos vizinhos médicos e (2) o amor e a dedicação ao instrumento de trabalho.
Por seu turno, a família dos médicos é constituída por três, representando cada um deles um traço diferente:
» João Pedro: o impositivo;
» João: o inseguro;
» Paulo: o teórico.
O que os une é a inimizade pelos «semaforeiros».


No que diz respeito à caracterização das personagens, os traços principais são os seguintes.

Família dos semaforeiros

1. Ramon:
» é o primeiro «semaforeiro»;
» é galego, isto é, originário da Galiza;
» não sabe pedalar, no entanto é o escolhido para o lugar através do compadrio (é familiar do proprietário de um bom restaurante);
» é esforçado, empenhado e cheio de boa vontade no exercício da sua profissão, que exerce com prazer e orgulho, tal como os seus descendentes;
» pertence à geração da I Guerra Mundial;
» sente-se magoado, triste e ofendido com o Dr. Bekett, por isso dificulta-lhe a tarefa;
» inicia o conflito com a família dos médicos.

2. Ximenez:
» é filho de Ramon;
» é o segundo «semaforeiro»;
» pertence à geração da II Guerra Mundial.

3. Asdrúbal:
» é filho de Ximenez;
» é o terceiro «semaforeiro»;
» pertence à geração do 25 de Abril;
» insulta o Dr. Paulo, com o qual quase chega a vias de facto.

4. Paco:
» é bisneto de Ramon;
» pertence à geração do início do século XXI;
» é simpático e prestável com os condutores, com quem tem uma relação personalizada;
» mantém o conflito com o médico;
» sofre um acidente e é socorrido pelo médico, que também o substitui no semáforo enquanto recupera no hospital.

Não obstante nos serem dados a conhecer os nomes de todos os quatro semaforeiros, estes constituem uma personagem coletiva, que se caracteriza pelo amor quase obsessivo e irracional pelos «seus» semáforos, o que justifica que, ao contrário dos médicos, apenas o primeiro «semaforeiro» tenha direito a uma caracterização individualizada, e apenas para justificar a sua escolha para o cargo.

Família dos médicos

5. João Pedro Bekett:
» é oriundo de Coimbra;
» é um médico singular: queria tratar toda a gente de doenças que eventualmente teriam, mesmo que os próprios não quisessem ser tratados;
» percorre as ruas à procura de pessoas que queria convencer a consultar por, na sua opinião, terem aspeto de doentes;
» é um «pai de filhos»;
» tem boa fama enquanto médico;
» possui elevado espírito de missão;
» não gostou que o semaforeiro lhe impusesse limites à sua circulação, o que, segundo ele, ia contra a sua liberdade (não poder atravessar a rua quando quisesse).

6. Dr. João:
» é filho de Pedro Bekett;
» é um médico muito inseguro e modesto: considera que os seus diagnósticos estão provavelmente errados e aconselha os doentes a procurarem uma segunda opinião;
» é um mau profissional: em vez de se aperfeiçoar, dada a sua insegurança, passava o tempo livre à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido;
» herda do pai o ódio pelos «semaforeiros»;
» intensifica o conflito com eles;
» raramente acerta no diagnóstico.

7. Dr. Paulo:
» é filho do Dr. João;
» adormece os seus pacientes com explicações muito pormenorizadas sobre as suas doenças, mostrando-se pouco ou nada interessado em ouvir as suas queixas;
» insulta o semaforeiro Asdrúbal;
» quase chega a vias de facto com o semaforeiro;
» mantém uma relação conflituosa com Paco;
» socorre-o quando assiste a um acidente sofrido por Paco, deixando de lado os ódios antigos;
» é solidário: assume o posto de Paco como «semaforeiro» para se redimir e à sua consciência pesada enquanto aquele se encontra hospitalizado.

Outras personagens

8. Gerard Letelessier:
» é um engenheiro francês;
» fracassou no seu país e em Lisboa;
» tem sucesso no Porto com uma invenção inútil.

9. Autarca do Porto:
» é o símbolo de todos os autarcas da província;
» fica mais entusiasmado com as garrafas de vinho do que com o invento;
» fica deslumbrado por um projeto porque é estrangeiro;
» é entusiasta de situações experimentais que se tornam definitivas.

10. Transeuntes e motorista do Porto:
» representam o gosto da população portuguesa pelo facilitismo, pelos «brandos costumes», pelo tráfico de influências.


II. Representatividade

• Os semaforeiros são um grupo de trabalhadores ciosos da sua profissão, que exercem com grande zelo e entusiasmo, mesmo que não tenha qualquer importância ou relevância social.

• Os médicos pertencem a uma classe social superior. Desempenham uma atividade imprescindível, mas revelam ou prepotência (Dr. João Pedro Bekett), ou insegurança (Dr. João) ou conhecimentos apenas teóricos (Dr. Paulo).


História pessoal e história social: as duas famílias

Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

Neste conto, o narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias, depois de cerca de um século de conflito.

A dimensão irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:

O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no quotidiano recriado)

▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).


O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica, recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do quotidiano:

1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano. Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se manter incólume e inalterada.

2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional (cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.

3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.

4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para «ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante» (sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter absurdo.


A importância dos episódios e da peripécia final em "Famílias desavindas"

A maior parte dos episódios do conto são de agressividade entre as duas famílias. Com efeito, eles retratam a desavença entre «semaforeiros» e médicos ao longo de cerca de um século, desavença esse que é gerada por um dispositivo insólito: os semáforos a pedal.

▪ O Dr. João Pedro Bekett ofendeu Ramon por não querer que o semáforo o impedisse de atravessar a rua quando quisesse. Em consequência, o «semaforeiro» passou a dificultar-lhe a passagem – início do conflito.

▪ O Dr. João, filho do Dr. João Pedro, «passava grande parte do tempo à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido».

▪ O Dr. Paulo, neto do primeiro médico, passava por Asdrúbal, neto de Ramon, e insultava-o e pedia aos clientes que o insultassem também. Asdrúbal ripostava, insultando o médico de volta e, certa ocasião, chegou mesmo a levantar a mão para ele.


Peripécia final

▪ O final do conto constitui uma inversão inesperada dos acontecimentos: Paco, bisneto de Ramon, sucedeu a Asdrúbal e sofreu um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar concretizar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido no chão. O Dr. Paulo, seguindo a sua condição de médico, em vez de o insultar, como pensara fazer, esqueceu o ódio e foi socorrer Paco. Além disso, para mitigar o remorso e o sentimento de culta decorrentes do conflito que mantivera com Paco, substituiu-o no ofício de «semaforeiro» enquanto Paco se restabelecia do acidente no hospital.

▪ A peripécia final contrasta com os episódios de conflito entre as duas famílias, pois configura uma situação de resolução desse conflito. De facto, o acidente de Paco proporcionou a paz e a concórdia, acabando com a desavença, ao trazer à tona a faceta real do Dr. Paulo, o terceiro médico da família, que esqueceu o ódio secular entre as duas famílias para socorrer o «semaforeiro».

▪ A peripécia não deixa de configurar um momento de ironia em relação a um longo passado de ódio, mas, por outro lado, encerra uma moralidade, mostrando que o rancor e o ódio não têm de ser eternos, que as pessoas podem ser más e boas e que a solidariedade pode ser mais forte do que o ódio.

▪ A peripécia final representa o fim do conflito, do ódio, entre as duas famílias e vem demonstrar que as classes sociais superiores e as inferiores podem criar uma relação harmoniosa, graças á solidariedade entre os seus elementos.


segunda-feira, 16 de março de 2020

Resumo do conto "Famílias desavindas"

Ramon era um galego, proprietário de um bom restaurante, que se candidatou ao cargo de «semaforeiro», função para que foi selecionado de forma caricata, e que pertencia a uma família honesta e trabalhadora, que se dedicava à profissão pelo amor à mesma e não ao salário, que era modesto («equivalente ao de um jardineiro»).
Ramon, o seu filho Ximenez e o seu neto Asdrúbal trabalhavam até altas horas da madrugada, pedalando na bicicleta que gerava a energia que mudava as luzes do semáforo ou afinando-a quando era necessário.
O Dr. João Pedro Bekett tinha-se instalado no Porto, oriundo de Coimbra, com a sua família, num primeiro andar de um prédio situado próximo do semáforo, onde tinha o seu consultório. Tratava-se de um médico afamado, mas que exagerava nitidamente no seu espírito de missão. Obcecado por encontrar doentes que pudesse curar, considerava que o semáforo dificultava a sua ação. Por isso, ofendeu, de forma arrogante, Ramon, que não gostou e passou a dificultar-lhe ainda mais a vida. Aqui teve início a inimizade, o conflito e o ódio entre as duas famílias.
O filho (João) e o neto (Paulo), igualmente médicos, herdaram o ódio à família dos semaforeiros e deram seguimento ao conflito com os descendentes de Ramon. A troca de insultos entre os dois lados da barricada prosseguiu, roçando por vezes o extremismo ou raiando o conflito físico: por exemplo, o Dr. Paulo pedia aos seus clientes que insultassem o «semaforeiro»; certa vez, Asdrúbal levantou a mão para o médico.
Quando Paco, bisneto de Ramon, sucedeu ao seu pai, Asdrúbal, deu-se um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido, no chão. Então, o Dr. Paulo, na sua qualidade de médico, esqueceu o ódio secular e socorreu Paco, cujas mazelas, no entanto, eram graves, pelo que teve de ser transportado de ambulância para o hospital.
Após o acidente, o Dr. Paulo, com a sua bata branca, por remorso, passou a pedalar todos os dias, do nascer ao pôr-do-sol, para manter o semáforo a funcionar, enquanto Paco se restabelecia.

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