Português: Al Berto
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segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Os dias sem ninguém", de Al Berto


 Os dias sem ninguém
 
dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
 
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
 
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
 

            Como é característico de alguma poesia contemporânea, este poema pauta-se pela liberdade formal, nomeadamente ao nível da rima (versos brancos ou soltos) e da métrica.

            O título da composição remete para a solidão, a tristeza, a melancolia e a desolação de alguém. No entanto, o primeiro verso do texto aponta numa direção diferente, isto é, essa figura já amou e se apaixonou no passado, talvez na juventude (“dizem que a paixão o conheceu”), de acordo com a informação dada por um sujeito indeterminado (“dizem”). Todavia, o presente é de solidão, ideia veiculada pela imagem “vive escondido nuns óculos escuros”, que significa que essa pessoa se fecha em si mesmo, se recolhe, se esconde de «tudo»  – sentimentos, pessoas e até de si mesmo.

            Além disso, essa figura reflete durante a noite, procurando perceber o que restou do jovem que fora, dos sonhos que tivera e do amor que vivera, do rosto adolescente que a velhice turvou. Esse ser conhece, como ninguém, coisas como a solidão, a tristeza, a melancolia e a inversão nos seus próprios sentimentos, como alguém que permanece acordado, consciente da sua posição enquanto pessoa.

            Por outro lado, sente a passagem do tempo, o avançar da idade e a aproximação da velhice, por isso olha-se ao espelho, o que pode simbolizar o olhar sobre si mesmo, uma reflexão interior, sobre a sua vida. E o espelho dá-lhe como resposta (“devolve”) o medo, que norteia a sua existência.

            A última estrofe mostra-nos que essa pessoa envelheceu pouco a pouco, consumido pela solidão, sem sentir, em nenhum momento, alegria, felicidade, ternura. Deste modo, levou uma vida entregue à solidão e, mesmo enquanto vivo, absorveu a experiência de uma morte enquanto pessoa, alguém que poderia ter tido desejos, sonhos, amores, amizades, mas não o fez / faz.

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