São vários os alvos atingidos pelas
peças de Gil Vicente. Em conjunto, representam a sociedade contemporânea do dramaturgo
e, em parte, de todas as épocas. Criador de personagens-tipo, o teatro
vicentino revela aos nossos olhos uma galeria de tipos que podemos esquematizar
no seguinte quadro:
Conjuntos
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Representantes
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Vícios satirizados
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Autos
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Os poderosos
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O fidalgo
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presunção, exploração, imoralidade
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Auto da Barca do Inferno
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O corregedor
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suborno, injustiça, confissão pecaminosa
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Auto da Barca do Inferno
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O procurador
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suborno, ausência de confissão, cumplicidade
com o corregedor
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Auto da Barca do Inferno
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O onzeneiro
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exploração a alto juro, ambição, materialismo
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Auto da Barca do Inferno
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"Roma"
A "Corte"
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poder terreno, venda de indulgências,
ausência de virtudes
luxo, exploração, ociosidade
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Auto da Feira
Vários autos
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Os materialistas
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O sapateiro
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roubo, prática religiosa negativa
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Auto da Barca do Inferno
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O judeu
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prática do judaísmo, suborno, desprezo das
normas cristãs, profanação dos lugares sagrados
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Auto da Barca do Inferno
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O enforcado
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roubo, prática do assassínio
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Auto da Barca do Inferno
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O taful
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prática do jogo ilícito, blasfémia
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Auto da Barca do Purgatório
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Os corruptos
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O frade
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devassidão, desvio dos votos professados,
ociosidade, vida à moda da corte (luxo)
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Auto da Barca do Inferno
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A alcoviteira
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prostituição, hipocrisia, feitiçaria
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Auto da Barca do Inferno
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O corregedor e o procurador
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defeitos já indicados
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Auto da Barca do Inferno
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Os clérigos
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sensualidade, luxúria
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Auto da Barca do Inferno e Farsa de Inês Pereira
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O marido emigrante
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roubo, enriquecimento fácil, abandono da
família
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Auto da Índia
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As raparigas casadoiras: Isabel e Inês
Pereira
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ociosidade, pretensão de se afidalgar
pelo casamento
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"Quem tem Farelos?"; Farsa de Inês Pereira
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O
escudeiro (Brás da Mata e Aires Rosado)
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pelintrice, ociosidade, hipocrisia, fanfarronice,
fome, oportunismo
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Farsa de Inês Pereira; "Quem Tem Farelos?"
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Os imorais
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A alcoviteira
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prostituição
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Auto da Barca do Inferno
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A Ama
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adultério, hipocrisia, cinismo
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Auto da Índia
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Inês Pereira
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adultério
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Farsa de Inês Pereira
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As personagens rústicas
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Os lavradores
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pequenos defeitos, absolvidos devido à
exploração de que eram vítimas
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Auto da Barca do Purgatório
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Os pastores
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pequenos defeitos, também eles absolvidos
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Auto da Feira
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Os inocentes
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O Parvo
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incapacidade de pecar, elogio da sua
simplicidade
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Auto da Barca do Inferno
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O menino
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sem defeitos, inocentes
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Auto da Barca do Purgatório
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Os "cruzados"
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Os quatro cavaleiros
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defeitos perdoados, purificados pela morte
em defesa da fé
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Auto da Barca do Inferno
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Diferentemente do que sucede com o
teatro clássico, o teatro vicentino não tem como propósito apresentar conflitos
psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro
de) eles, mas um teatro de sátira social ou um teatro de ideias. No teatro
vicentino não perpassam caracteres individualizados, mas tipos sociais agindo
segundo a lógica da sua condição, fixada de uma vez para sempre; e outros entes
personificados. Especificando, poderíamos distinguir:
a) tipos humanos, como o Pastor, herdade do Encina e adaptado à
realidade portuguesa, o Camponês, o Escudeiro, a Moça de vila, a Alcoviteira,
figura já celebrizada em Espanha pela Celestina,
o Frade folião, à volta do qual havia toda uma literatura medieval;
b) personificações alegóricas, como Roma, representando a Santa
Sé, a Fama Portuguesa, as quatro Estações;
c) personagens bíblicas e míticas, como os Profetas e Sibilas, os
deuses greco-romanos;
d) figuras teológicas, como o Diabo, ou Diabos, a hierarquia dos
Anjos, e a Alma;
e) o Parvo, um caso à parte, que é um tipo tradicional europeu, às
vezes vazado nos moldes de certos pastores bobos,
do vilão Janafonso e do Juiz da Beira, etc., e que serve para exprimir alguns
dos mais reservados pensamentos vicentinos, divertir os olhos e os ouvidos,
expor uma doutrina cristão tal como a concebia Gil Vicente, participar no debate
de ideias em que ele se empenha, ou, ainda, realizar no palco aquilo a que
poderíamos chamar uma poesia cenografada.