Português: 24/10/20

sábado, 24 de outubro de 2020

Análise de "Narciso"

          Este poema de José Régio alude ao conhecido mito de Narciso, filho de Cefísio, rei da Fócida, e da ninfa Liríope, que era filha de Oceano e de Tétis, sua esposa. Desde jovem, Narciso era tão formoso que todas as ninfas o amavam e desejavam, mas ele não se prendia a nenhuma. A ninfa Eco, filha do Ar e da Terra, que vivia nas margens do Rio Cefísio, foi uma das que o não conseguiu seduzir, por isso morreu de amor. Tirésias, o famoso adivinho, preveniu os familiares de Narciso de que este só viveria enquanto não contemplasse a sua própria imagem. De facto, um dia, quando regressava de uma caçada, sentou-se à beira de uma fonte para beber e se refrescar e viu a sua imagem refletida na água cristalina. A contemplação do próprio rosto fez com que se apaixonasse por si mesmo e acabou por morrer extasiado. Após a sua morte, foi metamorfoseado em flor, à qual foi dado o seu nome: narciso.
         Assim, José Régio utiliza o mito de Narciso para abordar a impossibilidade de possuir o seu alter ego, neste caso não uma imagem física, mas o outro «eu» que deseja ser. O espelho em que o sujeito poético se olha não é o espelho de água, mas o da sua interioridade, proveniente de um ato de introspeção: “Dentro de mim me quis eu ver.” (v. 1); “o meu próprio poço” (v. 2). A expressão “dobrado em dois” remete para o desdobramento do «eu», que ocorre quando o sujeito lírico contempla o reflexo da sua alma, que é descrita à semelhança do que sucede com um corpo (“terrível face e arcabouço”), que, no entanto, contrasta com o corpo do «eu», qualificado como «lânguido». Ou seja, um corpo aparentemente fraco e debilitado conserva em si uma interioridade que o faz tremer: “Tremer” (v. 1).
         Na segunda estrofe, o sujeito poético faz contrastar o seu aspeto físico, a sua beleza extraordinária (“Ó lindos olhos […] de moço” ‑ v. 7), com o seu retrato psicológico, associado ao sofrimento, ao silêncio, à solidão, à ansiedade, à angústia e à melancolia. Ou seja, estamos na presença da imagem do poeta maldito, caracterizado pelo génio desprezado (“silêncio esfíngico”), possuidor de uma extrema beleza, aliada a uma personalidade angustiada (“Numa fronte a suar melancolia”).
         Na terceira estrofe, esta imagem de poeta romântico é destacada pela força dos seus poemas, “requintados e selvagens”. Por outro lado, afinal constata-se que a imagem de poeta maldito não é real, antes produto da imaginação: “Assim me desejei nestas imagens” (v. 9). Isto significa que a descrição feita na segunda estrofe não corresponde ao real reflexo da interioridade do sujeito poético, mas o que ele desejava ser.
         No primeiro terceto, é enfatizada a ideia do desejo (“desejei”, “Desejo”), ênfase essa que culmina com a referência à cor vermelha, que representa a paixão e a carne. Contudo, o vermelho é, igualmente, a cor do desejo não satisfeito, do corpo que não é possuído, ideia que é associada à figura de Narciso e ao seu sofrimento por não se poder possuir a si mesmo. Quer isto dizer que o sujeito poético sofre também por não possuir a imagem a que aspirava, não uma imagem física, mas a de si interiormente, da sua alma. Se Narciso sofre por não se poder dividir em dois, o sujeito lírico sofre por não ser uno: “Que eu vivo à espera dessa noite estranha, / Noite de amor em que me goze e tenha, / … Lá no fundo do poço em que me espelho!”.
         No segundo terceto, o sujeito lírico afirma que espera a noite em que, finalmente, possa unir-se à imagem que espelha no fundo do poço, recorrendo a uma linguagem claramente erótica: “Noite de amor em que me goze e tenha”. O poema termina com uma exclamação prenhe de esperança, mas ao mesmo tempo irónica, pois está consciente de que a realização do seu desejo será impossível.
 
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