Se, no capítulo anterior, o padre
António Vieira criticou a generalidade dos peixes, neste, apresentará os
defeitos e vícios de alguns destes animais em particular (“Descendo ao
particular…”). Note-se, antes de mais, que a estrutura do capítulo no que diz
respeito aos quatro peixes focados é similar. Assim, o orador começa por identificar
o animal, depois caracteriza o seu comportamento, que confronta seguidamente
com figuras e exemplos bíblicos, cuja função é sustentar a sua tese e mostrar o
caminho a seguir para corrigir o(s) vício(s) denunciado(s).
Os primeiros peixes a serem visados
são os roncadores,
que simbolizam a arrogância e a soberba. Trata-se de peixes pequenos (“peixinhos
tão pequenos” – diminutivo e advérbio) e muito vulneráveis (“com uma linha de coser
e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado”) que emitem um som grave
que se assemelha ao grunhido de um porco e que os faz ser “as roncas do mar”.
Este contraste entre o seu tamanho e o barulho que fazem, porque roncam muito
(isto é, ostentam, gabam-se, pavoneiam-se, são arrogantes, daí simbolizarem
precisamente a arrogância), causa, simultaneamente, o desagrado e a ira do
pregador (emoções expressas através da interrogação retórica): “… e vendo o seu
tamanho, tanto me moveram a riso como a ira”; “É possível que sendo vós uns
peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar”. De facto, como
compreender que ronquem tanto quando um simples aleijado, com uma linha de coser
e um alfinete torcido, são pescados com toda a facilidade? Neste contexto, repita-se,
assume grande expressividade o recurso ao verbo «roncar», através do qual o
orador critica todo aquele que “faz grande alarde das suas ações, que age com
espalhafato, ostentação e aparato e que, como se não bastasse, também se gaba,
pavoneia-se e é arrogante.” (Andreia Sousa e Regina Carvalho, in Arrumar
ideias, 11.º ano). Por outro lado, a antítese/o contraste entre o tamanho
dos peixes e o som forte que produzem traduz o ridículo em que caem com a sua
forma de ser e, por extensão, o ridículo que cobre os homens arrogantes e
soberbos, isto é, aqueles que possuem poucas qualidades, mas se comportam como
se as possuíssem.
Já outros peixes, de maior dimensão,
como o espadarte, não roncam e permanecem em silêncio, o que, de certa forma, é
um contrassenso, pois, se haveria alguém que pudesse «roncar», seria o «peixe
maior». Qual a razão disto? O orador responde: “Porque, ordinariamente,
quem tem muita espada, tem pouca língua.” (a espada constitui uma metáfora de
força, enquanto a língua simboliza o alarde por meio das palavras). Deste modo,
infere-se que os roncadores simbolizam aqueles que se autopromovem, exibindo a
sua vaidade e o seu poder, sendo, por isso, soberbos e arrogantes.
Este modo de ser desagrada a Deus e
acarreta o seu castigo: “… mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que
tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam.”.
O padre Vieira exemplifica,
seguidamente, os seus argumentos, o caso dos roncadores, com o caso de São
Pedro, o discípulo de Cristo: “… tinha tão boa espada, que ele só avançou
contra um exército de Soldados Romanos; e, se Cristo lha não mandara meter na bainham,
eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco.” (este era um
servo de Caifás, um sacerdote a quem o santo cortou a orelha direita como ato
de resistência à prisão de Cristo). Assim, Pedro tinha-se gabado
antecipadamente da sua bravura, isto é, de que se todos fraquejassem, “só ele”
defenderia Cristo até à morte, se fosse necessário, porém (“foi tanto pelo
contrário”) bastou a simples voz de uma «mulherzinha», no pretório de Pilatos, após
a Sua prisão, para tremer e negar que O conhecia por três vezes: “… só ele
fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer
e negar.” (esta é uma referência ao episódio bíblico segundo o qual uma criada
do sumo sacerdote perguntou a Pedro se conhecia Jesus, o que ele negou, com
medo de ser preso, como tinha acontecido a Jesus). O santo tinha já fracassado
também no Horto das Oliveiras, onde se deixou adormecer depois de Cristo lhe
ter pedido que vigiasse (“Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por
mim, e não pudestes uma hora vigiar comigo?”). Daí que o orador conclua: “O
muito roncar antes da ocasião é sinal de dormir nela.”, ou seja, todos aqueles
que se gabam muito de algo acabam por não cumprir o que deles se espera no
momento oportuno. Além disso, se isto aconteceu ao santo (“Se isto sucedeu ao
maior pescador…”), bem menos razões terão os homens para serem arrogantes (“…
que pode acontecer ao menor peixe?”). Daí o conselho final do padre Vieira,
para que se meçam e vejam como são ridículos e não têm fundamento para a sua
arrogância: “Medi-vos e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar,
nem roncar.”.
Os próprios peixes maiores, como a
baleia, não têm desculpa para a sua arrogância, não obstante a sua «grandeza».
Esta referência às baleias é o ponto de partida para a introdução de novo
exemplo: o de Golias e David. Golias era um gigante e a “ronca dos Filisteus” e
esteve durante quarenta dias no campo, armado, sem ser derrotado. No entanto, foi
vencido por um pequeno pastor, David (“Bastou um pastorzinho com um cajado e uma
funda para dar com ele em terra.” – atente-se na expressividade do diminutivo,
contrastando com o nome «gigante». O padre António Vieira recorre, assim, a
novo exemplo bíblico para reafirmar que os arrogantes e soberbos que se julgam
(«tomam-se») Deus acabam sempre por ficar «debaixo», isto é, castigados, porque
“quem se toma com Deus sempre fica debaixo”.
Assim sendo, que conselho se
pode dar aos “amigos roncadores” (ou seja, aos homens arrogantes e soberbos)?
De acordo com o orador, o que há a fazer é “calar e imitar” Santo António.
Por outro lado, quais são as causas
da arrogância? Segundo o orador, são duas: o saber e o poder. E ambas “incham”
e produzem efeitos diferentes. Os exemplos humanos apresentados são os de
Caifás (“roncava de saber”), o sumo sacerdote dos judeus no processo que
conduziu Jesus à morte, e Pilatos (“roncava de poder”), o procurador romano da
Judeia que exerceu o papel de juiz, roncando “ambos contra Cristo”. Em
contraste temos o exemplo de Santo António, que constitui o modelo oposto desta
forma de ser. Possuidor de tanto saber e tanto poder, o santo nunca se
vangloriou das suas capacidades (“ninguém houve jamais que o ouvisse falar em
saber ou poder, quanto mais blasonar disso.”), mantendo o silêncio e confinando-se
à sua condição de servo de Deus: “E, porque tanto calou, por isso deu tamanho
brado.”. Desta forma, Santo António tornou-se um modelo de simplificada e um
guia espiritual.