Português: 31/12/22

sábado, 31 de dezembro de 2022

Última homenagem a Pelé

Análise do poema "Os Três Amores"


             O poema é constituído por três sétimas com rima emparelhada, cruzada e interpolada, de acordo com o esquema rimático ABCADDB, com um verso na primeira estrofe, e versos decassílabos.

            O tema é o amor, tratado em três partes distintas, mas de construção paralela: I: Tasso – Eleonora; II: Romeu – Julieta; III: D. Juan – Júlia. Os nomes são exemplificativos, porque personificam uma situação própria e simbólica. A mudança de personagens condiciona a mudança de ambiente. A construção formal é a mesma nas três estrofes; muda o motivo, os símbolos e o ambiente. Isto aponta para a divisão do «eu» romântico abstrato concretizado em personagens reais. Se atentarmos na data de escrita do poema (setembro de 1866), podemos especular que a composição tenha sido escrita para a sua amada, a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Nela, o «eu» cita três diferentes situações vivíveis com a mulher amada, aludindo a três obras importantes da literatura mundial para descrever esses momentos com a mulher: a ópera Torquato Tasso, a peça Romeu e Julieta e El Burlador de Sevilla o El Convidado de Piedra.

            Assim, a primeira estrofe remete para a mencionada ópera, da autoria de Gaetano Donizetti, que decorre na cidade italiana de Ferrara e se baseia na vida do poeta Torquato Tasso, que vive um romance cheio de desencontros e escândalos que termina com a perda da amada. O sujeito poético encarna o poeta italiano e retrata o amor de forma idealizada, um amor não realizado, embora sublime e sereno. Com efeito, há uma apropriação da história dos amores de Tasso por Eleonora, nobre de Ferrara a quem ele dedicara os seus versos e que acaba ensandecido pela ideia fixa de perseguição religiosa. Tasso é o cantor do sofrimento amoroso, que chora (canta) a cidade da sua amada, cuja visão risonha lhe afugenta o sofrimento e a solidão.

            A segunda estrofe remete para a peça Romeu e Julieta, também ela situada em Itália, concretamente na cidade de Verona, onde decorrem os amores impossíveis e contrariados entre dois jovens de famílias rivais, uma paixão que termina de forma trágica com a morte dos dois apaixonados. O sujeito poético deixa de lado o plano espiritual e passa ao terreno amoroso. Para isso, pede a ajuda dos ícones da literatura amorosa, ainda que trágica: Romeu e Julieta. Ao encarnar o herói de Shakespeare, o «eu» alude ao amor transcendental, isto é, ao amor que, apesar das barreiras sociais que o obstaculizem, se concretiza. O recurso à conjunção coordenativa copulativa «e» no último verso une as duas figuras femininas referidas no poema: Eleonora é também Julieta, isto é, são duas mulheres numa (quando concluída a terceira estrofe, serão três numa). Dito de outra forma, a mulher amada pelo sujeito poético é Eleonora, mas também é Julieta e ainda Júlia, ou seja, ele deseja as várias facetas da mulher. Para ele, o amor não possui apenas uma face, mas várias, e a mulher é, ao mesmo tempo, pura e sensual.

            Por sua vez, a terceira estrofe contém referências à obra de Tirso de Molina, cujo protagonista é D. Juan, um jovem belo que seduz Júlia, uma rapariga espanhola de origem nobre que assassina o pai. Estamos na presença de um amor sensual, carnal e amaldiçoado, cujo desenlace é igualmente trágico. O amor platónico cede lugar ao desejo ardente, à volúpia e à paixão descontrolada: “Na volúpia das noites andaluzas / O sangue ardente em minhas veias rola…”. Como não poderia deixar de ser, o vocabulário traduz esse amor/paixão/desejo, através de uma linguagem repleta de erotismo: ”sangue”, “ardente”, “leito”, “seio”, “desfaço-te”. Atente-se também na expressão «Eu morro», que alude à petit mort, isto é, ao orgasmo, se, por acaso, ele lhe desfizer a mantilha. Em suma, esta estrofe alude claramente à iniciação amorosa de D. Juan por Júlia, a espanhola fogosa.

Análise do poema "Boa noite"


             O poema “Boa noite”, de 1868, faz parte da obra Espumas Flutuantes, único livro de Castro Alves publicado em vida, e narra, através de um pretenso diálogo, com características de monólogo, uma aventura amorosa que se desenrola em dez quadras, onde se dá nota do envolvimento do «eu» poético com a mulher amada através dos ritmos e formas da natureza, que testemunham o drama da separação dos amantes, no domínio do tempo, entre a escuridão da noite e os primeiros raios da aurora (VENTURELLI, Suzette, in Arte e Tecnologia…).

            O poema contém uma epígrafe, que é a primeira fala de Julieta da cena V de Romeu e Julieta, em francês, e que introduz o tema do poema. Nesse passo da obra de Shakespeare, Romeu apressa-se para partir, pois o dia está a nascer, o que pode denunciar a sua presença ali, nos jardins dos Capuletos, e, consequentemente, o encontro furtivo de ambos, porém Julieta tenta convencê-lo de que o canto que ouvem pertence ao rouxinol, ave que canta à noite, e não à cotovia, que anuncia a chegada do dia. Isto significa que Julieta não quer que o amado parta. Esta é uma característica tipicamente romântica. De facto, a mulher desempenha um papel ativo no relacionamento amoroso, procurando impedir a partida do «eu», fazendo uso das artimanhas da sedução, nomeadamente apertando-o contra os seus seios, entre beijos, abraços e, sobretudo, descobrindo o peito. Perante este cenário, quem deixaria essa alcova?

            A composição abre com o «eu» poético anunciado que “é tarde”, por isso ele vai-se embora. Estas atitudes encontram-se noutros poemas de Castro Alves e torno da figura de D. Juan, já que este seduz a mulher e depois abandona-a. No entanto, neste poema, esse esquema é desrespeitado, visto que o abandono não se concretiza, dando lugar ao jogo sensual, que vai da necessidade de ir ao desejo de ficar. De facto, nas duas estrofes iniciais, o sujeito lírico, mesmo anunciando a sua partida, deseja ficar e sente-se seduzido pela amada: “Boa-noite, Maria! É tarde…. é tarde… / Não me apertes assim contra teu seio.”; “Boa-noite!... E tu dizes – Boa noite. / (…) / Mas não digas assim por entre beijos… / Mas não mo digas descobrindo o peito, /– Mas de amor onde vagam meus desejos.”

            Na terceira estrofe, o sujeito poético chama por Julieta e refere-se a ela até à oitava estrofe, e fá-lo através de uma linguagem sensual e erótica, que se estende por todo o poema, numa gradação de volúpia que alimenta ainda mais a vontade de ficar: “Desmanchando o roupão, a espada nua – / O globo de teu peito entre os arminhos”; “os teus contornos”; “afago de meus lábios mornos”. A descrição do espaço amoroso, tal como a descrição do corpo da mulher, é alimentada com o fogo da paixão. Nesse passo, as imagens ligam-se à noite, o tempo dos amantes: “Boa-noite”, “a lua, “é tarde”, “cabelo preto”, “a frouxa luz da alabastrina lâmpada”, “negro e sombrio firmamento”. Na sétima estrofe, encontra-se outra cena sensual em que ocorrem imagens eróticas como a personificação da luz a lamber os contornos da mulher e a menção a um fetiche, sugerindo o ato sexual pela aproximação dos lábios do «eu» poético aos pés da mulher amada: “A frouxa luz da alabastrina lâmpada / Lambe voluptuosa os teus contornos… / Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / Ao doudo afago de meus lábios mornos.”

            Note-se, por outro lado, que há a fragmentação da mulher, aludindo a uma possível infidelidade amorosa. De facto, a figura feminina duplica-se: primeiro é Maria, depois Julieta, Marion e, por último, Consuelo. Estas quatro mulheres representam uma única aventura amorosa que decorre entre a noite e o dia. O “Boa noite”, que, de início, soa como forma de cumprimento noturno de despedida e separação (o «eu» poético deseja ir-se embora), no final parece configurar-se como abandono e entrega no reduto da amada, mesmo que se trate de uma entrega dúbia, pois o dormir, no contexto do “negro e sombrio firmamento” do cabelo da mulher, assume ares de morte, de mergulho na noite, de dissolução e desdobramento do sujeito poético num Eros infinito, negro e sombrio, ligado ao reino de Tânatos, no desenvolvimento do poema.

            O «eu» poético, assim como Don Juan, não se contenta com uma única mulher, quere-as todas. Ele encontra-se em busca permanente pela mulher ideal, por isso, a mulher que já foi Maria, na primeira estrofe, e já foi Julieta, na penúltima estrofe, é Marion, musa de Victor Hugo, e será, na última estrofe, Consuelo, “personagem de George Sand, que viria dar o título à poesia inspirada por Agnèse Murri em 1871.

            Um elemento que desempenha papel importante no poema é a natureza, que funciona como cenário dos acontecimentos, mas cujo papel não se esgota aí, pois reflete a mulher e até o «eu», conferindo grandeza à beleza feminina e ao próprio sentimento amoroso. Assim, a natureza é personificada e associada à mulher e às suas formas. Na segundo estrofe, o peito da mulher é apresentado como um mar de amor onde vagam os desejos do sujeito lírico. Na terceira, o canto da calhandra é comparado ao hálito da amada; enquanto na quarta o cabelo preto é a noite; na quinta, o peito é a lua; na sexta, as cortinas são as asas do arcanjo dos amores; na sétima, a lâmpada lambe voluptuosa os contornos de Julieta; na oitava, das teclas dos seios saem harmonias e escalas de suspiros; na décima, o cabelo feminino é associado a um negro e sombrio firmamento.

            Para os dois apaixonados, a noite é o tempo do encontro, da sua vida enquanto amantes, enquanto que, para os restantes, é momento da «morte». O dia, por sua vez, é o momento da separação do casal, portanto de morte amorosa, e de vida para a realidade dos homens. Atente-se no seguinte verso: “A lua nas janelas bate em cheio”. Metaforicamente, podemos vislumbrar aqui a ideia da penetração carnal, dado que a janela, sendo um orifício, indicia a imagem da penetração.

            Por outro lado, o poema é bastante rico em matéria de recursos estilísticos. Destacam-se, desde logo, as anáforas, por exemplo nos versos 16 e 17, bem como no final da quarta e no início da quinta estrofe: “É noite ainda”; “É noite, pois…”. Segue-se a hipérbole, nomeadamente na comparação dos versos 37 e 38 (“Como um negro e sombrio firmamento, / Sobre mim desenrola teu cabelo…”), onde o cabelo da mulher amada é comparado à escuridão da noite infinita, enfatizando o poder misterioso que este tem sobre o sujeito poético, o que acentua a hipótese da relação de Eros com a morte (negro e sombrio). Destacam-se também a enumeração e a gradação, que surgem sobretudo na oitava estrofe, quando das teclas do seio da amada o «eu» bebe “harmonias / Que escalas de suspiros”, ou na nona, quando a cavatina do delírio “Ri, suspira, soluça, anseia e chora…”. Por último, considere-se a apóstrofe, que é usada principalmente para pôr em evidência a(s) amada(s). A presença do hipérbato (“Se a estrela d’alva os derradeiros raios / Derrama nos jardins de Capuleto”, etc.) conferem uma certa feição barroca ao texto, mas de exaltação à vida, não de melancolia e pessimismo.

            O poema descreve quatro mulheres, que se poderão resumir a uma: Maria. A composição parte de Maria, passa pela platónica Julieta de Shakespeare, atinge o seu clímax na figura de Marion (Delorme) – a intensa e sexual musa de Alfred de Vigny e Victor Hugo – e termina em Consuelo, o protótipo de musa (grande cantora lírica) de George Sand, não tanto platónica ou sexual como Julieta ou Marion.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...