Português: 03/01/2020 - 04/01/2020

segunda-feira, 30 de março de 2020

For Autocrats, and Others, Coronavirus Is a Chance to Grab Even More Power




For Autocrats, and Others, Coronavirus Is a Chance to Grab Even More Power

Leaders around the world have passed emergency decrees and legislation expanding their reach during the pandemic. Will they ever relinquish them?




Credit...Martin Bernetti/Agence France-Presse — Getty Images






LONDON — In Hungary, the prime minister can now rule by decree. In Britain, ministers have what a critic called “eye-watering” power to detain people and close borders. Israel’s prime minister has shut down courts and begun an intrusive surveillance of citizens. Chile has sent the military to public squares once occupied by protesters. Bolivia has postponed elections.


     Que mundo teremos no pós-corona?

     Que reflexos políticos, económicos e sociais o vírus deixará?

     São questões a que só obteremos resposta daqui a uns largos meses / anos, contudo o New York Times antecipa, desde já, muitas dessas preocupações. O artigo original pode ser lido aqui [nytimes].

COVID-19: ponto de situação do dia 29 de março


sexta-feira, 20 de março de 2020

Valor simbólico dos marcos históricos referidos no conto "Famílias desavindas"

A história pessoal (de ódio e conflito) entre as duas famílias «confunde-se» com a história social de Portugal.
Na transição do século XIX para o XX, a sociedade sofreu transformações decorrentes do progresso científico, facto visível, neste conto, na introdução de um semáforo a pedais numa rua da cidade do Porto e na criação da profissão de «semaforeiro».

De facto, essa época constituiu um avanço notável em termos tecnológicos. A eletricidade, a lâmpada, o telefone, o automóvel foram algumas das invenções do final do século XIX, cujo aperfeiçoamento prosseguiu no século XX e que melhoraram substancialmente a qualidade de vida de muitas pessoas. Este salto evolucional fez-se sentir igualmente noutras áreas, como, por exemplo, o cinema, sem esquecer que o avião estava também ao virar da esquina. Ora, a invenção do semáforo referido no conto insere-se nessa onda e nesse período de progresso e inovação tecnológica.
Por outro lado, as duas Grandes Guerras simbolizam os conflitos (neste caso, de grandes dimensões, com milhões de mortos e feridos, atrocidades até então «desconhecidas» do ser humano), os ódios e as agressões entre os seres humanos. São um símbolo dos grandes massacres do século XX, a que se poderiam acrescentar outros não referenciados no conto (a guerra do Vietname, as lutas pela independência por parte de países colonizados pelos europeus, a expansão do terrorismo, etc.). Sucede que a história narrada no conto de Mário de Carvalho constitui uma narrativa de desavenças e ódios, numa escada ínfima comparativamente aos eventos mundiais referidos, mas ainda assim de conflito.
O outro acontecimento mencionado no texto, este de índole nacional – o 25 de Abril de 1974 –, simboliza a liberdade, o fim da ditadura, da opressão e da perseguição, bem como mudança nas relações entre as pessoas, a abertura de ideias, o entendimento, a comunhão. A reconciliação entre as famílias dos «semaforeiros» e dos médicos sucede precisamente numa época posterior à Revolução dos Cravos.
O quadro seguinte reproduz os marcos históricos presentes no conto e o simbolismo associado a essas datas históricas.

Sequências narrativas de "Famílias desavindas"

1.ª sequência – Narração da origem dos semáforos e localização do aparelho (1.º e 2.º parágrafos).

2.ª sequência – Descrição do equipamento dos semáforos e do seu funcionamento (3.º parágrafo).

3.ª sequência – Relato do processo de seleção do primeiro semaforeiro (4.º parágrafo).

4.ª sequência – Sumário relativo às pessoas que desempenharam o cargo de semaforeiro até ao presente da enunciação (5.º parágrafo).

5.ª sequência – Descrição da relação atual entre semaforeiro, motoristas e transeuntes (6.º parágrafo).

6.ª sequência – Apresentação do primeiro médico e da origem do conflito com os semaforeiros.

7.ª sequência – Exposição das relações conflituosas entre médicos e semaforeiros (8.º ao 12.º parágrafos).

8.ª sequência – Narração do acidente e da reconciliação entre semaforeiros e médicos (13.º ao 16.º parágrafos).


Personagens de "Famílias desavindas"

I. Caracterização

As personagens centrais do conto distribuem-se, essencialmente, por duas famílias: a dos médicos e a dos «semaforeiros».

A família dos semaforeiros é constituída por quatro elementos, cujo traços de união são (1) a inimizade pelos vizinhos médicos e (2) o amor e a dedicação ao instrumento de trabalho.
Por seu turno, a família dos médicos é constituída por três, representando cada um deles um traço diferente:
» João Pedro: o impositivo;
» João: o inseguro;
» Paulo: o teórico.
O que os une é a inimizade pelos «semaforeiros».


No que diz respeito à caracterização das personagens, os traços principais são os seguintes.

Família dos semaforeiros

1. Ramon:
» é o primeiro «semaforeiro»;
» é galego, isto é, originário da Galiza;
» não sabe pedalar, no entanto é o escolhido para o lugar através do compadrio (é familiar do proprietário de um bom restaurante);
» é esforçado, empenhado e cheio de boa vontade no exercício da sua profissão, que exerce com prazer e orgulho, tal como os seus descendentes;
» pertence à geração da I Guerra Mundial;
» sente-se magoado, triste e ofendido com o Dr. Bekett, por isso dificulta-lhe a tarefa;
» inicia o conflito com a família dos médicos.

2. Ximenez:
» é filho de Ramon;
» é o segundo «semaforeiro»;
» pertence à geração da II Guerra Mundial.

3. Asdrúbal:
» é filho de Ximenez;
» é o terceiro «semaforeiro»;
» pertence à geração do 25 de Abril;
» insulta o Dr. Paulo, com o qual quase chega a vias de facto.

4. Paco:
» é bisneto de Ramon;
» pertence à geração do início do século XXI;
» é simpático e prestável com os condutores, com quem tem uma relação personalizada;
» mantém o conflito com o médico;
» sofre um acidente e é socorrido pelo médico, que também o substitui no semáforo enquanto recupera no hospital.

Não obstante nos serem dados a conhecer os nomes de todos os quatro semaforeiros, estes constituem uma personagem coletiva, que se caracteriza pelo amor quase obsessivo e irracional pelos «seus» semáforos, o que justifica que, ao contrário dos médicos, apenas o primeiro «semaforeiro» tenha direito a uma caracterização individualizada, e apenas para justificar a sua escolha para o cargo.

Família dos médicos

5. João Pedro Bekett:
» é oriundo de Coimbra;
» é um médico singular: queria tratar toda a gente de doenças que eventualmente teriam, mesmo que os próprios não quisessem ser tratados;
» percorre as ruas à procura de pessoas que queria convencer a consultar por, na sua opinião, terem aspeto de doentes;
» é um «pai de filhos»;
» tem boa fama enquanto médico;
» possui elevado espírito de missão;
» não gostou que o semaforeiro lhe impusesse limites à sua circulação, o que, segundo ele, ia contra a sua liberdade (não poder atravessar a rua quando quisesse).

6. Dr. João:
» é filho de Pedro Bekett;
» é um médico muito inseguro e modesto: considera que os seus diagnósticos estão provavelmente errados e aconselha os doentes a procurarem uma segunda opinião;
» é um mau profissional: em vez de se aperfeiçoar, dada a sua insegurança, passava o tempo livre à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido;
» herda do pai o ódio pelos «semaforeiros»;
» intensifica o conflito com eles;
» raramente acerta no diagnóstico.

7. Dr. Paulo:
» é filho do Dr. João;
» adormece os seus pacientes com explicações muito pormenorizadas sobre as suas doenças, mostrando-se pouco ou nada interessado em ouvir as suas queixas;
» insulta o semaforeiro Asdrúbal;
» quase chega a vias de facto com o semaforeiro;
» mantém uma relação conflituosa com Paco;
» socorre-o quando assiste a um acidente sofrido por Paco, deixando de lado os ódios antigos;
» é solidário: assume o posto de Paco como «semaforeiro» para se redimir e à sua consciência pesada enquanto aquele se encontra hospitalizado.

Outras personagens

8. Gerard Letelessier:
» é um engenheiro francês;
» fracassou no seu país e em Lisboa;
» tem sucesso no Porto com uma invenção inútil.

9. Autarca do Porto:
» é o símbolo de todos os autarcas da província;
» fica mais entusiasmado com as garrafas de vinho do que com o invento;
» fica deslumbrado por um projeto porque é estrangeiro;
» é entusiasta de situações experimentais que se tornam definitivas.

10. Transeuntes e motorista do Porto:
» representam o gosto da população portuguesa pelo facilitismo, pelos «brandos costumes», pelo tráfico de influências.


II. Representatividade

• Os semaforeiros são um grupo de trabalhadores ciosos da sua profissão, que exercem com grande zelo e entusiasmo, mesmo que não tenha qualquer importância ou relevância social.

• Os médicos pertencem a uma classe social superior. Desempenham uma atividade imprescindível, mas revelam ou prepotência (Dr. João Pedro Bekett), ou insegurança (Dr. João) ou conhecimentos apenas teóricos (Dr. Paulo).


História pessoal e história social: as duas famílias

Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

Neste conto, o narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias, depois de cerca de um século de conflito.

A dimensão irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:

O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no quotidiano recriado)

▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).


O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica, recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do quotidiano:

1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano. Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se manter incólume e inalterada.

2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional (cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.

3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.

4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para «ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante» (sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter absurdo.


A importância dos episódios e da peripécia final em "Famílias desavindas"

A maior parte dos episódios do conto são de agressividade entre as duas famílias. Com efeito, eles retratam a desavença entre «semaforeiros» e médicos ao longo de cerca de um século, desavença esse que é gerada por um dispositivo insólito: os semáforos a pedal.

▪ O Dr. João Pedro Bekett ofendeu Ramon por não querer que o semáforo o impedisse de atravessar a rua quando quisesse. Em consequência, o «semaforeiro» passou a dificultar-lhe a passagem – início do conflito.

▪ O Dr. João, filho do Dr. João Pedro, «passava grande parte do tempo à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido».

▪ O Dr. Paulo, neto do primeiro médico, passava por Asdrúbal, neto de Ramon, e insultava-o e pedia aos clientes que o insultassem também. Asdrúbal ripostava, insultando o médico de volta e, certa ocasião, chegou mesmo a levantar a mão para ele.


Peripécia final

▪ O final do conto constitui uma inversão inesperada dos acontecimentos: Paco, bisneto de Ramon, sucedeu a Asdrúbal e sofreu um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar concretizar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido no chão. O Dr. Paulo, seguindo a sua condição de médico, em vez de o insultar, como pensara fazer, esqueceu o ódio e foi socorrer Paco. Além disso, para mitigar o remorso e o sentimento de culta decorrentes do conflito que mantivera com Paco, substituiu-o no ofício de «semaforeiro» enquanto Paco se restabelecia do acidente no hospital.

▪ A peripécia final contrasta com os episódios de conflito entre as duas famílias, pois configura uma situação de resolução desse conflito. De facto, o acidente de Paco proporcionou a paz e a concórdia, acabando com a desavença, ao trazer à tona a faceta real do Dr. Paulo, o terceiro médico da família, que esqueceu o ódio secular entre as duas famílias para socorrer o «semaforeiro».

▪ A peripécia não deixa de configurar um momento de ironia em relação a um longo passado de ódio, mas, por outro lado, encerra uma moralidade, mostrando que o rancor e o ódio não têm de ser eternos, que as pessoas podem ser más e boas e que a solidariedade pode ser mais forte do que o ódio.

▪ A peripécia final representa o fim do conflito, do ódio, entre as duas famílias e vem demonstrar que as classes sociais superiores e as inferiores podem criar uma relação harmoniosa, graças á solidariedade entre os seus elementos.


COVID-19: ponto de situação do dia 19 de março


quarta-feira, 18 de março de 2020

Análise de "Orfeu rebelde"

O mito de Orfeu

Orfeu é uma figura da mitologia grega, filho de Calíope, musa da poesia épica, e de Apolo, deus da poesia e da música, de quem recebeu uma lira como presente.
Orfeu era um poeta que se celebrizou pelo seu canto melodioso, que encantava a própria Natureza. De facto, os sons da sua lira domavam as feras, que se deitavam a seus pés, e atraía também seres humanos e a própria Natureza.
Casou-se com Eurídice, seu grande amor. No casamento, esteve presente Himeneu para abençoar a união, mas o fumo da sua tocha fez lacrimejar os noivos, o que não trouxe augúrios favoráveis. Pouco tempo depois, Eurídice passeava com as ninfas, quando foi surpreendida pelo pastor Aristeu, que, ao vê-la, se apaixonou perdidamente e a tentou conquistar. Na sua fuga, Eurídice pisou uma serpente, que a mordeu no pé e lhe causou a morte.
Orfeu, desesperado e incontrolável, desceu ao reino dos mortos para a reaver. Perante os deuses do Inferno, cantou o seu desgosto e o seu amor, dizendo que, se não lha devolvessem, ele próprio ficaria com ela no reino dos mortos. Graças ao seu canto, conseguiu comover Hades e Perséfone a autorizarem o regresso de Eurídice ao mundo dos vivos, mas com uma condição: em caso algum, Orfeu poderia virar-se para trás, olhá-la, enquanto não tivessem transposto os limites infernais e alcançado o mundo superior, a superfície. Caminhando na frente, Orfeu estava quase a chegar aos portões do Hades e a atingir o seu objetivo, mas, com receio de ter sido enganado por aqueles deuses, virou-se para trás para confirmar se a esposa o seguia. Eurídice, lavada em lágrimas, foi imediatamente levada de volta para o mundo dos mortos. Orfeu tentou alcança-la, mas sem sucesso.
Profundamente triste, permaneceu na margem do rio durante sete dias, sem comer nem dormir, suplicando o regresso da esposa. Depois, vagueou, triste e solitário, pelo mundo, sem nunca mais querer saber de mulher alguma e repelindo todas as que o tentavam seduzir, até que um dia as mulheres da Trácia, enfurecidas pelo seu desprezo, o mataram e lançaram o seu corpo ao rio Ebro, que acabou por ser levado até à ilha de Lesbos, onde, durante muito tempo, a cabeça de Orfeu, presa numa rocha, proferia oráculos. A sua lira foi colocada num templo de Lesbos.
Outra versão do mito sugere que as musas o enterraram em Limetra, num túmulo onde o rouxinol canta mais suavemente do que em qualquer outra parte da Grécia, e a sua lira foi colocada por Zeus entre as estrelas. Orfeu encontrou por fim Eurídice e, abraçando-a, nunca mais deixou de a contemplar.

NOTA: Miguel Torga reutiliza muitos mitos gregos, tirando partido do seu significado e aplicando-os quer a si mesmo quer à sua terra. No caso do mito de Orfeu, destaca a rebeldia de quem não aceita os limites que lhe são impostos.


Assunto: rebelde, o sujeito poético pretende gravar, através do canto (a poesia), a fúria de cada momento, afirmar a sua rebeldia face à transitoriedade da vida e à inevitabilidade da morte.


Tema: a revolta contra a inexorabilidade do tempo e a morte / o ofício de poeta.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Autocaracterização do sujeito poético.

▪ O sujeito autocaracteriza-se como um poeta rebelde cuja poesia corresponde à expressão de si mesmo («canto como sou»), da sua intensidade, da sua revolta, do seu perene sofrimento. Autocaracteriza-se igualmente como um poeta sincero («canto como sou»), autêntico enquanto ser, no seu sofrimento e nos seus sentimentos («Violências famintas de ternura»).

▪ O sujeito poético assume-se como um rebelde – a rebeldia de Orfeu – e revolta-se cantando como um possesso (comparação que traduz a fúria com que o sujeito poético exprime o seu «canto», a sua poesia).

▪ Essa fúria, essa violência constituem um grito contra a morte e contra a passagem inexorável do tempo, são motivadas pelo desejo de lutar contra a passagem do tempo e a efemeridade da vida, através da eternização dos momentos permitida pela escrita.

▪ O sujeito poético pretende que a sua voz obsessiva e esse grito contra o tempo se prolonguem para a eternidade, daí a gravação «a canivete» (metáfora), para que a própria evolução da casca torne mais duradoura e viva a sua revolta.

▪ De facto, a metáfora da «casca do tempo» expressa a ideia de que a casca eterniza a sua revolta, no entanto, contraditoriamente, estaremos perante algo efémero e aparente – a gravação da fúria de cada momento – por ser apenas casca. Afinal, o que o sujeito poético procura é encontrar a eternidade na realização poética, à maneira clássica.

2.ª parte (2.ª estrofe) – Oposição entre os «outros» e o «eu».

▪ O sujeito poético recusa a poesia de outros poetas, românticos, de canto suave e harmonioso, descomprometidos da realidade, que se conformam («Outros, felizes, sejam rouxinóis…» – v. 7 – metáfora e ironia relativamente à aceitação fácil da vida).

▪ Pelo contrário, o «eu» distancia-se desses outros poetas, pois não pretende exprimir emoções, mas um canto agressivo e violento, de revolta, de desafio (poesia romântica/descomprometida versus poesia de revolta), um grito violento revelador da falta de ternura. Então, recorre à violência, ou melhor, a uma expressão violenta e agressiva para vencer o que o instinto lhe adivinha e ele recusa: a inexorabilidade da morte e a opressão que se abate sobre ele (vide versos 8-11). O sujeito poético é um ser atormentado e revoltado que desafia as leis do tempo e da vida (v. 10).

▪ A metáfora «…. O céu e a terra, pedras conjugas…» (v. 9) exprime a união de todas as forças que se conjugam para triturar o sujeito, para o oprimir – «Do moinho cruel que me tritura…» (v. 10), metáfora e personificação que evocam a passagem inexorável do tempo (que provoca o sofrimento permanente do «eu») pelo movimento circular do moinho e contra a qual ele se revolta. O céu e a terra unem esforços para atormentar o sujeito poético, um espírito moído pelo sofrimento da vida que roda sem fim, como se de um moinho se tratasse, o moinho do tempo cuja mó é, precisamente, o céu e a terra conjugados.

▪ A personificação e a comparação presentes nos versos 9 a 11 [«… o céu e a terra (…) / Saibam que há gritos como há nortadas / Violências famintas de ternura…»] exprimem a força e a violência do grito do sujeito poético contra a passagem do tempo, semelhante à violência e à força dos elementos da Natureza, como as nortadas Por outro lado, a agressividade do «eu» traduz igualmente a aspiração ao afeto, que ele não possui.

▪ De facto, a personificação de sabor metafórico presente no verso 12 exprime a força e a necessidade de amor e ternura que o sujeito poético sente.

3.ª parte (3.ªestrofe) – Função interventiva da poesia.

▪ O sujeito poético afirma-se possuidor do instinto dos animais – que o leva a adivinhar a inevitabilidade da morte – e do corpo de um poeta que a recusa e contra ela luta através do seu canto.

▪ A comparação e a metáfora dos versos 15 e 16 («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa.») reafirmam a postura de rebeldia do sujeito poético e a ideia da poesia como arma e a palavra e a liberdade de expressão são veículos de denúncia.

▪ Isto remete para o conceito de poesia sugerido pelo poema: o sujeito poético canta para agir sobre o (seu) tempo, assumindo uma posição interventiva. De facto, a poesia constitui um grito, um refúgio, um desabafo, face à consciência da passagem triturante do tempo e à iminência da morte. Estes recursos estilísticos emprestam à criação poética conotações de luta: o canto poético funciona como uma arma.

▪ Os dois últimos versos do poema sugerem que o canto do sujeito poético oscila entre a exaltação e o terror em relação à realidade, visto que esta, apesar de toda a sua beleza, é caracterizada pela omnipresença da morte

NOTAS:

1.ª) Miguel Torga socorre-se do mito de Orfeu para dar voz à sua rebeldia, mas desenvolve-o de forma diferente do tratamento que lhe foi dado pelos clássicos. Por um lado, o Orfeu mitológico representa a rebeldia por causa do amor, enquanto o Orfeu de Miguel Torga simboliza a rebeldia motivada pelos seus limites e pelos limites humanos, sobretudo a impossibilidade de travar a passagem inexorável do tempo e a impossibilidade de vencer a morte. O poeta, simultaneamente, aproveita e subverte o mito: o poeta é o próprio Orfeu, o que significa que se automitifica.

2.ª) Por outro lado, de acordo com o mito grego, Orfeu caracterizava-se por ser suave e encantatório, enquanto o canto do sujeito poético é caracterizado pela intensidade, pela força, revelando a face rebelde e revoltada de um Orfeu desafiador.

3.ª) A poesia é entendida como uma arma do poeta, utilizada em legítima defesa: «Canto como um possesso», «desafio», «moinho cruel», «gritos», «nortadas», «violências». Essa arma serve de arma de defesa do sujeito poético contra o esquecimento, a morte, a passagem do tempo. A poesia é arma de combate – a única arma que pode vencer a morte; é uma poesia de desespero humanista.

4.ª) Como poeta, Miguel Torga considera-se chamado à missão suprema de gritar a sua solidariedade humanista com todos os homens, sobretudo os que são mais abandonados, e dar-lhes esperança.

5.ª) O humanismo de Torga é o humanismo de um revolucionário, de um revoltado e, mais do que um revoltado, de um rebelde. O canto poético é o seu instrumento de combate, «em legítima defesa» dos valores que «articulam» o seu humanismo, que não é de «abdicação mas de confronto».

6.ª) A mensagem do poema remete para o drama interior do homem e a sua obstinação em lutar contra esse drama, patente na imagem órfica presente nesta atitude do poeta perante a poesia e a morte, ou mesmo perante o amor feito «ternura».


Caracterização do sujeito poético
▪ O sujeito poético é um poeta revoltado e rebelde (“Orfeu rebelde” – v. 1), não por ter perdido a amada, como Orfeu, mas por causa da passagem do tempo e da transitoriedade da vida.
▪ É igualmente um ser sincero, autêntico e genuíno («Canto como sou» - v. 1) e intenso («Canto como um possesso» - v. 2).
▪ É um ser sofredor, atormentado e revoltado pela passagem inexorável do tempo e pela morte, que desafia as leis do tempo e da vida («Que o céu e a terra, pedras conjugadas / Do moinho cruel que me tritura» – vv. 9-10), faminto de ternura («Violências famintas de ternura» – v. 12).
▪ É, assim, um poeta que luta contra a passagem do tempo e contra a morte.
▪ Exprime a dolorosa condição do ser humano («Bichinho instintivo que adivinha a morte» – v. 13), mas procura superá-la, recusando-a e afirmando a sua identidade.
▪ O seu canto constitui uma arma, uma arma de defesa e complexa («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa. / Canto, sem perguntar à Musa / Se o canto é de terror ou de beleza.» – vv. 15-18).


Título

Orfeu é uma figura mítica ligada à poesia, o que se adequa ao poema de Torga, cujo tema é a conceção do ofício de poeta.
Por outro lado, o poeta identifica-se com Orfeu, dado que, tal como sucedia com a figura da mitologia, também o seu canto tem um forte impacto naqueles que o rodeiam,
Por sua vez, o adjetivo «rebelde» corresponde à conceção de poeta veiculada pelo poema: um poeta da revolta e da intensidade e não suave, harmonioso e encantatório como o de Orfeu.
Por último, tal como Orfeu, que procurou lutar contra recorrendo ao seu canto (foi assim que resgatou Eurídice do reino dos mortos), também o poeta se revolta contra a morte e procura combatê-la e reverte-la através da sua poesia.



Outros recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico

Estrofes: o poema é constituído por três sextilhas.
Rima:
- esquema rimático: ABCDCD/ABCDCD/ABBCBC;
- os dois primeiros versos de cada estrofe são brancos, exceto o segundo da última estrofe, que emparelha com o seguinte;
- os quatro últimos versos de cada estrofe apresentam rima cruzada;
- consoante («canivete»/«compromete»);
- rica («canivete»/«compromete») e pobre («momento»/«sofrimento»);
- grave («canivete»/«compromete»).
Métrica irregular: versos maioritariamente decassilábicos, exceto o 2.º da 1.ª estrofe e os 3.º e 5.ºda 3.ª estrofe (de 6 e 8 sílabas).
. Ritmo oscilante, dadas as características da rima e da métrica.
. Vários casos de transporte contribuem para o ritmo do poema.
. Aliteração do fonema /c/ ao longo do poema, conjugada com a aliteração do fonema /t/, que remete para a luta e rebeldia do sujeito poético.

2. Nível morfossintático

. A adjetivação (“rebelde”, “cruel”, “famintos”, “instintivo”, “legítima”) é sugestiva de rebeldia e também de ironia no caso do adjetivo felizes.
. Predomínio de verbos e nomes expressivos de ação, força, agressividade, rebeldia, ao serviço de um estilo viril.
. Verbos:
– domínio do presente do indicativo: sugere a continuidade da luta, um processo interminável, e do sentimento de revolta do sujeito poético;
– presente do conjuntivo: o desdém;
– pretérito imperfeito do conjuntivo: a hipótese.
. Predomínio de sensações auditivas.


Marcas torguianas e presencistas do poema:
- a superlativação do “eu”;
- a emotividade da linguagem;
- a aguda da consciência da função do Poeta e da Poesia;
- o humanismo revolucionário.


Síntese

Miguel Torga é um poeta órfico, no duplo sentido em que relaciona o orfismo com o glorioso Orfeu, poeta, ora com as práticas doutrinárias que inculcam a crença de que o corpo é a prisão da alma e de que a purificação do pecado se obtém pela mortificação do corpo, pela abstenção de certos atos e pelo culto de certos ritos.
No primeiro sentido, o mais glosado dos mitos helénicos é Orfeu, patrono emblemático da poesia, o portador da lira cuja música não só subjuga a própria natureza como Caronte e os deuses do Hades, das trevas infernais em que estava Eurídice nas suas “faixas de morta, incerta, suave e sem impaciência” (Rilke). No segundo sentido, o orfismo torguiano revela-se na contínua frequência com que o poeta introduz na natureza do ato poético o ingrediente ascético e catártico que lhe dão eficácia, necessidade e sentido de único vínculo e veículo que encaminha o nosso rumo interior para o projeto superior da Poesia.
À reinvenção deste mito presidem paradoxalmente as metáforas de Orfeu Rebelde, Orfeu Cansado e Orfeu Mártir.
É introduzida aqui uma rebeldia que tem como reverso o pânico de quem se deu conta que as cordas da lírica órfica são “grades” e de quem, irremediavelmente mergulhado na desafinação da melodia, deliberadamente perdida, quer “ao menos falhar em tom agudo”, insistindo em transformar cada novo som discordante num “grito/Que no seu desespero diga tudo”.
Esquecido da sua missão de ressuscitar Eurídice, Orfeu introduz no canto e na melodia que enterneciam e domavam os deuses das trevas infernais – “a fúria de cada momento”, desinteressado de “se o canto é de terror ou de beleza” e apenas determinado a usá-lo “em legítima defesa”, a ver se o seu canto compromete a eternidade no seu sofrimento.
De resto, a estratégia da arte poética torguiana da procura do paradigma formal e a tática de rotura e desvio que lhe é implícita são o próprio absoluto da contradição órfica – inerente como foi sempre o orfismo à soberania e ao culto de Dioniso, deus da fúria, da desordem catabática, meta da divina demência ou da divina intoxicação.
Rebelde, Orfeu – Torga, os dedos enclavinhados nas grades da prisão da lira, o corpo rasgado, por dentro, pelos golpes de paixão da alma encarcerada, por fora, pelo ferro dos versos da emoção endurecida, nunca deixará de ser o apaixonado para quem é tão necessário conseguir dos deuses a descida aos infernos em busca de Eurídice como ser o rebelde que contraria a lei de a não olhar para a não perder.
Toda a poesia torguiana está cheia desse imperativo órfico em virtude do qual só na autoflagelação e na catarse do exercício poético a nossa perfuração existencial adquire a direção ascensional no sentido purificador da super-existência pela Poesia.
É, com efeito, necessário que Orfeu desça aos infernos à procura de Eurídice, não para a trazer consigo para as alegrias domésticas de uma felicidade familiar, mas para a reintroduzir na inessencialidade da noite – dessa noite que, sendo o limite do dia, é também o seu pressentimento e a sua promessa. E é igualmente necessário que Orfeu suba de novo à luz do dia, à precisão luminosa da solidão do seu corpo, à cintilação do seu olhar portador da morte que é a profundidade da vida, no mesmo sentido em que a Poesia é a profundidade do absurdo do mundo sem Deus e em que o esquecimento é a profundidade da memória. Cúmplice do esquecimento e da morte, a Poesia é, portanto, a imagem do excesso da vida incomportável no esquecimento e na morte que o olhar do rosto rebelde reintroduz nas trevas e na noite, perfil da luz e do dia (cf. “Descida aos Infernos”).




 

Relação do mito com a poesia de Torga
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