Ao subir à noite
no terraço
de um arranha-céus altíssimo e
aflitivo
pude tocar a abóbada noturna
e um ato de amor extraordinário
apoderei-me de uma estrela
celeste.
Era uma noite negra
e eu deslizava
pelas ruas
com a estrela roubada em meu
bolso.
De trémulo cristal
parecia
e era
num átomo
como se levasse
um pacote de gelo
ou uma espada de arcanjo na
cintura.
Guardei-a,
temeroso,
debaixo da cama
para que ninguém a descobrisse,
sua luz poré
atravessou
primeiro
a lã do colchão,
depois
as telhas,
e o telhado da minha casa.
Incómodos
tornaram-se
para mim
os afazeres mais comuns.
Sempre com essa luz
de astral acetileno
que palpitava como se quisesse
retornar para noite,
eu não podia
dar conta de todos
os meus deveres
cheguei a esquecer de pagar
as minhas contas
e fiquei sem pão nem mantimentos.
Enquanto isso, na rua,
se amotinavam
transeuntes, boémios
vendedores
atraídos sem dúvida
pelo insólito clarão
que viam sair de minha janela.
Então
recolhi
outra vez minha estrela,
com cuidado
a envolvi num lenço
e mascarado entre a multidão
passei sem ser reconhecido.
Tomei a direção oeste,
rumo ao rio Verde,
que ali sob o arvoredo
flui sereno.
Peguei a estrela da noite fria
e suavemente
lancei-a sobre as águas.
E não me surpreendeu
notar que se afastava
como um peixe insolúvel
movendo
na noite do rio
seu corpo de diamante.
Ode a
uma estrela” é um poema que integra a obra Terceiro livro das odes,
publicado em 1957, e que foi traduzido para português do original “Oda a uma
estrella”, que possui nove estrelas, enquanto na versão em língua portuguesa
contém onze. Por outro lado, a composição vem acompanhada por belíssimas
ilustrações, em folhas duplas, de modo que ela aparece numa das folhas e, na
outra, predomina a ilustração. É por esta razão que existe um número diferente
de estrofes nas duas versões.
O que é
uma ode? O vocábulo «ode» é de origem grega e significava «canto» (de exaltação
de herói ou de um feito). No caso vertente do poema de Neruda, formalmente é
composto por versos brancos e sem métrica regular, enquanto, no que diz
respeito ao conteúdo, se centra na introspeção sobre o sofrimento de amor, o
que está de acordo com a visão épica da existência que a ode atual busca, dado
que a temática referida é universal porque aplicável a todos os homens.
A
primeira estrofe do poema coloca-nos perante um sujeito poético que se encontra
aflito, à noite, num terraço de arranha-céu. Estes três versos iniciais
permitem deduzir que se trata de alguém que mora numa grande cidade, habitada
por muitas pessoas (a referência ao arranha-céu), mas que se sente aprisionado
por essa selva de pedra. Num ímpeto de liberdade, toca a “abóbada noturna”, uma
imagem poética da noite, arqueada como uma abóbada. Depois rouba, num
extraordinário ato de amor, rouba uma estrela do céu.
Na
segunda estrofe, na noite negra, o sujeito poético desliza pelas ruas com a
estrela roubada, que guarda no seu bolso. Chegado a casa, acondiciona-a, receoso,
debaixo da cama, para que ninguém a descobrisse, no entanto o seu brilho é tão
intenso que a sua luz / o seu brilho atravessa a lã do colchão, as telhas e o
telhado da sua casa. A frustração surge quando o «eu» constata que o brilho da
estrela torna incómodos os seus afazeres mais simples. A estrela roubada continua
a brilhar intensamente, à semelhança das fagulhas que se soltam de uma
soldagem, e quer retornar à noite de onde foi retirada. Este facto impede o
«eu» de executar todos os seus deveres, chegando mesmo a esquecer-se de pagar
as suas contas, ficando sem pão e mantimentos, isto é, a preocupação com a
estrela afeta não só as questões menores da sua vida, mas também o essencial,
como a alimentação. Fazendo uma leitura metafórica do poema, o sujeito poético
não é feliz, dado que o que ama (a estrela como metáfora da mulher) tem vida
própria e não o quer.
Enquanto
isso, na rua, aglomeram-se diferentes pessoas, todas atraídas pelo brilho
incomum que sai da casa do sujeito lírico, o que torna a sua vida ainda mais
complicada. Todo este tumulto à frente da sua residência leva-o a recolher a
estrela, envolvê-la num lenço e sair, mascarado, com ela, para não ser
reconhecido.
O «eu»
caminha em direção ao rio Verde e lança a estrela suavemente sobre as águas. E
constata que não fica surpreendido com o comportamento do astro ao ser lançado
ao rio: ela move o seu corpo de diamante, como um peixe insolúvel, adjetivo que
tanto pode significar aquilo que não se dissolve como aquilo para o que não há
solução.
Assim
sendo, podemos concluir que a estrela tem vida própria, tanto que não se adequa
aos padrões atuais da vida de um homem comum; por outro lado, ela representa,
para o ser que a rouba, um problema e uma fonte de inquietação e perturbação.
Quer
isto dizer que a composição poética nos fala de um homem comum (vive numa
grande cidade, precisa de trabalhar ara comprar pão e mantimentos e pagar as
suas contas, ou seja, é uma pessoa como outra qualquer) que, por gostar de
estrelas, rouba uma e, ingenuamente, a esconde em sua casa. Porém, a estrela
parece adquirir vida própria, não se adapta à vida deste homem.
Lido
metaforicamente, o poema coloca-nos na presença de um homem que, num desatino
causado pela paixão, rouba do céu uma estrela, com a intenção de a ter só para
si. Deste modo, Neruda suscita o tema da paixão e da possessão do amor, isto é,
suscita em nós o questionamento sobre os limites do verdadeiro amor ou como são
as relações entre o amante e o ser amado. No final, essa relação de posso do
objeto desejado torna-se uma relação de privação com esse objeto de desejo,
dado que entrega a estrela ao rio.
Prosseguindo
a leitura metafórica do poema, Neruda constrói nele uma metáfora do ser humano
e das relações amorosas: o que é o ser amado em relação àquele que o ama; até
que ponto se pode amar, sem que esse amor sufoque, anule, a pessoa amada; como
identificar a linha ténue que separa a paixão da posse.
Além da
metáfora, o poema gira em torno da metonímia. Do alto de um arranha-céu, o sujeito
poético, enlouquecido de amor, toca a abóbada noturna e apossa-se da estrela,
que se faz notar sobretudo através da emissão de um brilho intenso. Por isso, o
objeto roubado é comparado a diversas coisas, como a um “trémulo cristal”, a “um
pacote de gelo” ou a “uma espada de arcanjo na cintura”, tal é a sua delicadeza
e incandescência.
Ao
entrar em casa e guardar a estrela para que ninguém saiba que a possui, a luz
que ela emite vai do micro para o macroespaço, atravessando o colchão, as
telhas e saindo da casa pelo telhado. Assim sendo, os seus raios alcançam o
espaço externo, apesar dos esforços do sujeito poético em esconder o objeto
amado.
Dentro
desta conceção metonímica da estrela, na sexta estrofe, a estrela, ou mais
precisamente a sua luz, adquire traços de personagem. Mais do que isso,
personifica-se: “palpitava como se quisesse / retornar para a noite”. Ou seja,
estamos na presença de uma estrela com desejos e vontades. Nesse momento, o
sujeito poético apercebe-se de que ele e o objeto amado possuem interesses
conflituantes: “eu não podia / dar conta de todos / os meus deveres / cheguei a
esquecer de pagar / as minhas contas / e fiquei sem pão nem mantimentos”. De
modo semelhante, do lado de fora da casa, amontoa-se um conjunto de pessoas,
cuja atenção é despertada não pela estrela em si, mas pelo brilho que emite e
que a casa não pode conter por ser tão intenso: sai pela janela da casa e chega
ao espaço externo.