Português: Gil Vicente
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terça-feira, 26 de abril de 2022

Análise da cena 16 da Farsa de Inês Pereira - Monólogo de Inês



● O Moço reentra em cena trazendo uma carta para Inês que lhe foi enviada pelo seu irmão, que também se encontrava no mesmo local onde estava Brás da Mata, em Arzila.
 
Tempo
 
            Por uma fala do Moço, ficamos a saber que já passaram três meses desde que o Escudeiro partiu para África, porém, para Inês, o marido teria partido há menos tempo.
 
● Que informações traz a carta?

▪ O irmão pede a Inês que tenha coragem.

▪ O Escudeiro morreu.

▪ Foi morto por um pastor quando fugia de uma batalha, em Arzila.

 
Simbologia da carta: a missiva representa a liberdade de Inês, a possibilidade de um recomeço.
 
● Como reagem Inês e o Moço à notícia?

        O Moço sente-se triste, enquanto Inês manifesta felicidade, alegria e alívio. Esta antítese realça a oposição de sentimentos provocados pela morte do Escudeiro: a tristeza do Moço (fingida ou verdadeira, por ficar desamparado), a alegria de Inês, por se libertar do casamento que a aprisionava.

 
● Como se explicam estas reações?

        O Moço sempre criticou as atitudes do Escudeiro e denunciou a sua pobreza, decadência e falta de valores. Deste modo, podemos questionar a sinceridade da sua reação e subentender que as suas palavras encerram alguma ironia, ou seja, a pena e a tristeza podem ser fingimento, mas também se pode considerar que a sua tristeza é autêntica, por ficar desamparado.

        Por seu turno, para Inês, acabou-se o casamento (“Desatado é o nó.” – metáfora), acabou-se o cativeiro. Assim sendo, está livre e pode recomeçar a vida.

 
● Inês manda o Moço embora (“Dai-me cá essa chave / e ide buscar vossa vida.”) e expressa toda a sua alegria: “Mas que nova tão suave!”. De seguida, decide não pôr luto e salienta o seu caráter: forte com uma mulher frágil e fraco e cobarde na guerra. Além disso, manifesta-se desiludida, frustrada, revoltada e arrependida de ter casado com um homem arrogante, desrespeitador, fingido, dissimulado e hipócrita. Tudo em Brás da Mata era fingido e falso: começou por se apresentar como um homem bem-falante, cortês e que prometia um casamento feliz a Inês. Depois de casado, mostrou que a primeira impressão era falsa, pois comportou-se e fez o contrário do que tinha prometido. A sua fuga do campo de batalha mostrou que também a sua coragem era falsa.
 
● A cena termina com o desejo de Inês: ela deseja um «muito manso marido», ou seja, alguém que seja calmo, de temperamento fácil, que lhe faça todas as vontades, “pera boa vida gozar”.
 
● O casamento com o Escudeiro serviu-lhe de lição. Ela aprendeu com a experiência: “Não no quero já sabido, / pois tão caro há de custar”.
 
● Pela cena, podemos verificar que o conceito de «liberdade» se alterou ao longo da peça para Inês:
→ inicialmente: sinónimo de casamento com um homem da corte;
→ após o casamento: consciência de que o casamento pode ser sinónimo de cativeiro, subjugação;
após a notícia da morte do Escudeiro: opção por um “muito manso marido” como forma de emancipação / libertação.
 
● Este passo da farsa relembra a cantiga de escárnio e maldizer “Dom Foão, que eu sei que há preço de livão”, dado que, tanto o dito D. Foão como Brás da Mata se revelam fracos e cobardes na guerra – Brás da Mata morre às mãos de um pastor ao fugir da batalha e a figura da cantiga foge para Portugal assim que vê os cavaleiros inimigos.
 
 
● A crítica:
-» a ironia de Inês quando recebe a carta de Arzila:
. “Já ele partiu de Tavila?” (v. 896);
. “Para mim era valente
E matou-o um mouro só!” (vv. 926-927);
-» o cómico de caráter: o contraste entre a aparência e a realidade do carácter do Escudeiro Personagem pobre e covarde, mas dissimulando, na elegância do seu discurso, na variedade das suas prendas – tocar, cantar – e na fanfarronice solene todas as suas fraquezas e misérias), culminando com a notícia da sua morte e da forma como ocorreu, ou seja, morto por um pastor quando fugia da batalha.
 

terça-feira, 19 de abril de 2022

Análise da cena 15 da Farsa de Inês Pereira - Monólogo de Inês

 
● Inês fica fechada em casa a lavrar e a cantar, lamentando a sua sorte. A cantiga que entoa (“Quem bem tem e mal escolhe / por mal que lhe venha nam s’anoje”) demonstra que a jovem que tem todas as condições para viver feliz e faz uma má escolha não pode queixar-se do mal que lhe acontece.
 
● Em que se baseia esta mágoa de Inês? Desiludida e desencantada, compreende que teve a oportunidade de casar com um homem de bem, Pero Marques, mas iludiu-se e rejeitou-o, não lhe restando outra alternativa que não resignar-se com a situação.
  De facto, ela acreditava que os fidalgos fossem homens gentis, simpáticos e cavalheiros com as suas mulheres, apesar de corajosos, audazes, destemidos e impiedosos na guerra, no entanto compreende que o facto de um homem ser nobre não significa que seja respeitador e educado, por isso renega o modelo de marido imaginado até então. Ela queria casar com um cavaleiro culto e de boas maneiras, mas Brás da Mata revela-se exatamente o oposto do que ela sonhara.
 
● Lembrando-se do seu marido, que a maltrata, Inês alude a um ditado popular que diz que quem procede como aquele procedeu é um homem covarde, o que reforça a sua convicção.
 
● Assim, Inês jura que, se ficar solteira de novo, como ela deseja, só se casará com um marido dócil, que lhe faça todas as vontades, que ela possa dominar e lhe permita fazer na vida o que bem entender. Deste modo, vingar-se-ia da situação que vive no presente (“Deste mal e deste dano”). Esta caracterização encaixa perfeitamente em Pero Marques, pois a sua simplicidade, a dedicação, a promessa de esperar pela decisão de Inês, apesar do desdém com que foi tratado, indiciam que ele será um marido humilde e submisso.
 
 
Estado de espírito de Inês
 
            Inês mostra-se desiludida e revoltada com a sua situação e constata que foi precipitada e imprudente aquando da escolha do marido. Além disso, arrepende-se de não ter optado por um pretendente mais dócil e promete vingar-se do seu destino.
 

 

Inês

Casamento com o Escudeiro

 

 

Antes

(Monólogo dos vv. 1-36)

Depois

(Monólogo dos vv. 834-862)

Estado de espírito e suas causas

aborrecida e irritada

dececionada e triste

Desejo manifestado

libertar-se da influência da Mãe através do casamento

ficar novamente solteira para poder escolher um marido diferente

Modelo de marido

um homem discreto, não necessariamente bonito ou rico e meigo

um homem honesto, pacífico, que a deixe fazer o que ela quiser

 
 
Paralelismo da situação atual com a do início da peça
 
            A situação que Inês vive atualmente é muito idêntica ao início da peça, com Inês enclausurada em casa, amargurada com a sua situação. A Mãe, tal como Brás da Mata, dá-lhe ordens e trata-a com descortesia (“Como queres tu casar / com fama de preguiçosa?”).
 

Inês solteira

=

Inês casada

Local onde está

Casa da Mãe, fechada

 

Local onde está

Sua casa (que lhe foi dada pela mãe, aquando do casamento), fechada.

Atividades a que se dedica

Bordado e canto

 

Atividades a que se dedica

Bordado e canto

Estado de espírito

Insatisfeita com a vida, lamentando a sua sorte

 

Estado de espírito

Insatisfeita com a vida, lamenta-se da sua sorte

Conteúdo do monólogo

Renega o que está a fazer, queixa-se de estar fechada e deseja sair do seu «cativeiro» casando

 

Conteúdo do monólogo

Renega o que está a fazer, queixa-se de estar fechada e espera sair do seu «cativeiro» depois da casada, arrependendo-se da decisão que tomou

 

Visão que tem do futuro marido

Homem “avisado”, de boas maneiras, tocador de viola e versejador, que lhe proporcione uma vida com diversão

 

Visão que tem do marido

Homem insensível e tirano, que quer mantê-la presa, não permitindo que saia de casa ou chegue à janela

 
 
Composição da personagem Inês Pereira
 
            Inês é uma personagem modelada, dado que evolui ao longo da peça. Assim, no início, mostra-se infeliz e aborrecida com a sua vida. Quando se casa, vive um momento fugaz de felicidade e alegria, retoma o estado de espírito do início do auto, lamentando a sua situação, reconhecendo que errou e arrependendo-se de ter casado com o Escudeiro.
 
 
● De notar, a nível estilístico, a anáfora dos versos 869 e 870 e a ironia na fala de Inês, fechada, tecendo considerandos sobre a sua situação e sobre o comportamento do marido. Por outro lado, está presente a metonímia: a referência a «cavalarias» e a «mouros» remete para os comportamentos e as virtudes que deveriam caracterizar um nobre – o ideal de cavalaria e a coragem na guerra contra os infiéis.

Análise da cena 14 da Farsa de Inês Pereira


● O Moço fecha Inês em casa, argumentando que não pode desobedecer às ordens do seu amo. Assim, deixa-a a lavrar, enquanto ele sai para se divertir com as moças.
 
● Inês responde-lhe de forma irónica, criticando a lealdade do Moço ao Escudeiro, lembrando-lhe (através da afirmação do inverso: “Pois que te dá de comer, / faze o que t’encomendou”) que Brás da Mata não lhe pagou e não lhe deixou comida, o que deveria fazer com que ele se insurgisse ou não cumprisse as suas ordens.
 
● Esta ironia de Inês torna-se mais relevante, dado que, nas cenas anteriores, o Moço tinha acusado o Escudeiro de não lhe dar de comer.

Análise da cena 13 de Farsa de Inês Pereira: Inês e o Escudeiro casados



● Após a boda, plena de cantorias e alegria, os recém-casados ficam sozinhos e Inês começa a lavrar e a cantar de felicidade. Ela, que agora se julga livre, está tão feliz que retoma espontaneamente os bordados que antes lhe causavam tanto enfado.
 
● A cantiga (“Si no os hubiera mirado / no penara / pero tan pouco os mirara.”) prenuncia o seu casamento: o «eu» manifesta a dor provocada pela relação com o ser amado (“penara”), o que sugere que o casamento de Inês será infeliz.
 
● Brás da Mata, que até então se apresentara como um homem galante e respeitador, revela-se um tirano autoritário, impondo à esposa um conjunto de interdições:

proíbe Inês de cantar (“Vós cantais Inês Pereira / […] que esta seja a derradeira”);

ordena-lhe que se cale (“Será bem que vos caleis”);

proíbe-a de lhe responder, devendo acatar tudo quanto ele disser sem retorquir (“E mais sereis avisada / que não me respondais nada”);

proíbe-a de conversar com quem quer que seja (“Vós não haveis de falar / com homem nem molher que seja”);

proíbe-a de sair de casa, incluindo ir à igreja (“nem somente ir à igreja”);

impede-a de estar à janela (“Já vos preguei as janelas, / por que vos não ponhais nelas”).

Em suma, Inês ficará fechada em casa, «como freira d’Odivelas». Esta comparação mostra como o Escudeiro é um tirano que manterá Inês presa na sua residência.

 
● Comparando este passo da peça com a vida da jovem enquanto solteira, poderemos concluir que a sua vida de casa é pior do que nessa altura, visto que o marido se revela mais autoritário e repressivo do que a Mãe, trancando Inês e não lhe dando hipótese sequer de dizer o que pensa.
 
● Como se pode justificar esta mudança de atitude do Escudeiro? Se recuarmos até ao momento em que Brás da Mata surge em cena pela primeira vez, recordaremos que ele desconfiava da seriedade de Inês, por isso é «natural» que, agora, a prenda em casa e a vigie, após o casamento. Por outro lado, como sabemos, o Escudeiro apenas escondeu, momentaneamente, o seu verdadeiro caráter, que nós já conhecíamos a partir dos diálogos com o Moço, para conquistar Inês. Nessas conversas, Brás da Mata mostrara um comportamento violento e agressivo (“Faria bem de ta quebrar / na cabeça, bem migada”) e um caráter autoritário que agora de manifesta (“homem sesudo / traz a mulher sopeada”).
 
● Qual é a reação de Inês à postura do Escudeiro? A jovem mostra-se surpreendida, não compreendendo a razão das interdições a que é sujeita (“Que pecado foi o meu? / Porque me dais tal prisão?”). Inês começa a perceber que se iludiu e cometeu um erro ao casar com Brás da Mata, no entanto manifesta-se submissa: “Bofé, senhor meu marido, / se vós disso sois servido, / bem o posso eu escusar”. Ela é repreendida pro fazer aquilo que em casa da mãe faria sem restrições: cantar.
 
● Como justifica à esposa o Escudeiro o seu comportamento? A ironia dos versos “Vós buscastes discrição, / que culpa vos tenho eu?” mostra a Inês que foi ela quem quis um homem como ele, o que significa que a jovem é a única responsável pelas consequências da sua escolha. Ironicamente, acrescenta que está preocupado com Inês e que apenas a quer proteger: “Pode ser maior aviso, / maior discrição e siso / que guardar eu meu tesouro?”.
 
● Por outro lado, as interrogações retóricas e as metáforas (“meu tesouro” e “meu ouro”) permitem ao Escudeiro mostrar o quão preciosa a esposa é para ele e como a quer proteger (o seu bem maior) da cobiça alheia.
 
● Em suma, a vida de casada de Inês caracteriza-se pela reclusão em casa, pela ausência de contacto com o exterior e com outras pessoas, pela absoluta submissão aos ditames do marido (“Vós não haveis de mandar / em casa somente um pelo. / Se eu disser isto é novelo / havei-lo de confirmar.”), pelo medo dele (“E mais quando eu vier / de fora haveis de tremer”) e, como se verá alguns versos adiante, pela entrega ao trabalho.
 
● De seguida, o Escudeiro comunica ao Moço a sua decisão de partir para as “Partes d’Além”, isto é, para o Norte de África (Marrocos), para guerrear e fazer-se cavaleiro.
 
● Antes de partir, incumbe o Moço de uma missão: na sua ausência, vigiará Inês e o seu comportamento, mantê-la-á fechada em casa e assegurar-se-á de que as suas ordens serão cumpridas: “olha por amor de mi / o que faz tua senhora / fechá-la-ás sempre de fora.”. Relativamente a Inês, permanecerá encerrada em casa a lavrar.
 
● No diálogo que se segue, o Moço queixa-se que não tem recursos para se sustentar, porque Brás da Mata continua pobre.
 
● O Escudeiro incentiva, por isso, o Moço a roubar, indo “por essas vinhas”, a matar a fome com “rabisco”, nas “figueiras”, comendo favas e “túbaras da terra”. Estes conselhos comprovam, novamente, a falta de valores e de princípios do Escudeiro, que são ridicularizados, através da ironia, pelo seu criado.
 
 
Retrato de Brás da Mata
 
            Após o casamento com Inês, o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter:

▪ cruel

▪ autoritário

▪ agressivo

▪ opressivo e tirânico, pois não permite que Inês

cante

lhe responda

fale com alguém

saia de casa em qualquer circunstância

mande em casa “somente um pelo”

o contrarie, tendo de concordar sempre com o que ele disser

ordena ao Moço que vigie constantemente Inês e a mantenha sempre fechada em casa

▪ ambicioso: parte para Marrocos para se fazer cavaleiro na guerra;

▪ pobre:

não deixa dinheiro ao Moço para se governar;

aconselha-o a alimentar-se percorrendo as vinhas, comendo figos, favas e cogumelos.

            É de realçar o contraste entre o amavio das palavras do Escudeiro enquanto pretendente e o seu comportamento agressivamente machista de casado. O fingimento e as mentiras acabaram e veio à tona o verdadeiro caráter de Brás da Mata.
            Por outro lado, a decisão que o Escudeiro toma de ir para o Norte de África parece resultar de um duplo equívoco:
Inês esperava do casamento uma intensa vida social e vê-se sujeita à situação inicial de clausura, dedicada às tarefas caseiras (“vós lavrai e ficar per i”);
o Escudeiro, defraudado na expectativa de colmatar pelo casamento a sua crónica penúria, vê-se obrigado a procurar na guerra um meio de subsistência ou, quiçá, de promoção social.
 
 
Cómico de situação
 
            A situação que se desenrola neste passo da farsa propicia o cómico em torna da figura de Inês, que vê o seu sonho de vida desfazer-se. De facto, tudo lhe sai ao contrário e ela apenas se iludiu: a jovem que quis ascender socialmente, desafiando as convenções da época, foi castigada, pois não soube contentar-se com o seu estado.
 
 
Dimensão satírica do diálogo
 
            O diálogo entre Brás da Mata e o Moço revela, novamente, a pobreza e a miséria da baixa nobreza decadente (representada pelo Escudeiro), que vive de aparências, e a exploração dos serviçais (Moço), que são enganados e explorados e passam fome por não receberem a remuneração devida. As soluções sucessivas que Brás da Mata apresenta para acudir à fome do seu serviçal acentuam a sátira e a comicidade, pela referência a alimentos ridículos e, por vezes, roubados. Por outro lado, esta cena revela ainda a insensibilidade do Escudeiro face a quem o serviu sempre, apesar das condições degradantes que lhe proporcionou.
 
 
A condição da mulher medieval
 
            A partida de Brás da Mata para o Norte de África, deixando o Moço a vigiar Inês, mostra como, na época de Gil Vicente, a mulher era totalmente submissa ao marido, e, na sua ausência, ela estava privada de ter vida própria. O seu estatuto social é tão baixo que até o criado tem poder sobre ela.
 
 
Recursos estilísticos:

. Comparação: “Estareis aqui encerrada / Nesta casa tão fechada, / Como freira d’Odivelas.” (vv. 801-803) ® tirânico, o Escudeiro manterá Inês encerrada em casa, como numa prisão.

. Metáforas:
‑ “Que guardar o meu tesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro...” (vv. 810-811) ® Inês queria um marido discreto, com siso. Ora, haverá homem mais “avisado” do que aquele que procura guardar a sua mulher, o bem mais precioso, da cobiça alheia?

. Ironia do Moço:

‑ “Se vós tivésseis dinheiro,                                              ü
    Não seria senão bem.” (vv. 824-825)                         ï
‑ “Co dinheiro que leixais                                                 ï
  Não comerei eu galinhas...” (vv. 831-832)                  ý denuncia  a  penúria do  Escu-
‑ “E convidarei minha prima.” (v. 839)                           ï deiro
‑ “I-vos vós, embora, à guerra,                                        ï
   Qu’eu vos guardarei oitavas.” (vv. 847-848)              þ
 

Análise da cena 12 da Farsa de Inês Pereira: festejo do casamento


● Os noivos trocam as palavras do ritual de casamento e, de imediato, os Judeus procuram cobrar o seu pagamento pelo êxito dos seus serviços: “Dai-nos cá senhos ducados.”. A Mãe promete efetuar o pagamento no dia seguinte.
 
● O Escudeiro mostra-se arrependido por ter casado (“Oh! Quem me fora solteiro!”) e confessa que “casar é cativeiro”, isto é, o matrimónio é sinónimo de prisão, indiciando o futuro de Inês. Casar significam, por um lado, perder a liberdade que possuía enquanto solteiro e, por outro, indicia o papel submisso da mulher no enlace. Deste modo, Brás da Mata retira a máscara com que seduziu Inês, revelando, por fim, a sua personalidade.
 
● Inês, ao ouvir o seu já marido, mostra-se surpreendida/admirada (“Já vós vos arrependeis?”), no entanto, diverte-se na boda, cantando e dançando.
 
● Face ao exposto, podemos concluir que o Escudeiro perspetiva o casamento como Inês concebia a vida de solteira: uma prisão. Porém, a relação deste passo da farsa não se esgota aqui. De facto, no monólogo inicial, a jovem sentia-se presa em casa da Mãe e aborrecida com as tarefas domésticas, por isso se casou com Brás da Mata, na esperança de se libertar e se emancipar da ascendência materna. Contudo, como se pode constatar, o Escudeiro encara o casamento como ela perspetiva a vida de solteira: um cativeiro.
 
● A Mãe organiza uma festa para celebrar o casamento da filha, convidando para a mesma algumas moças e mancebos vizinhos, entre eles Luzia e Fernando, que cantam uma cantiga. Embora a festa tenha sido organizada à pressa, nela não faltam a alegria, o baile ao ar livre, as cantigas e os votos de felicidades dos convidados aos noivos.
 
● Uma das cantigas é bastante significativa, dado que sugere a situação futura de Inês. Recordemos a letra: “Uma garça enamorada ia ferida e soltava gritos de dor. Nas margens de um tio tinha o ninho, mas um caçador feriu-a na alma. Por isso, soltava gritos de dor.” A garça (Inês) está apaixonada, mas vai triste, só e chorosa (o marido já não a ama ou maltrata-a). Tinha um ninho (o novo lar), mas um caçador (o Escudeiro) feriu-a de amor, daí os seus gritos de dor e sofrimento.
 
● A Mãe presenteia os noivos com a sua casa, dá a sua bênção ao casamento e incentiva Brás da Mata a amar e respeitar Inês para ser amado e respeitado: “que lhe tenhais muito amor, / que amado sejais no céu.”. A figura materna está, em suma, a cumprir o seu papel de mãe preocupada e protetora. Após a bênção, despede-se e não volta a aparecer. Porquê? Inês tomou uma decisão (a de casar com Brás da Mata) e agora terá de assumir todas as consequências daí decorrentes.
 
● Fernando e Luzia, dois moços alegres e amigos de Inês, são o símbolo da ingenuidade e da simplicidade.

Análise da cena 11 da Farsa de Inês Pereira - Discurso de Brás da Mata

 1. Estrutura do discurso do Escudeiro
 
            Podemos dividir o discurso do Escudeiro em duas partes. Na primeira, entre os versos 555 (“Antes que mais diga agora”) e 577 (“pode falecer nô mais”), Brás da Mata elogia Inês, na segunda, dos versos 583 (“Eu nam tenho mais de meu”) e 591 (“logo me ouvíreis tanger”), autocaracterizar-se (enumera as suas próprias qualidades.
 
 
2. Elogio de Inês Pereira
 
            O elogio que o Escudeiro faz de Inês segue o «modelo» das cantigas medievais, nomeadamente de amor:
a) retrato de Inês:
- beleza (metáfora “fresca rosa”)
- qualidades morais: “despejo” e “discrição”
- graciosidade e formosura
- fonte da sua vida: “sois minh’alma”
- em suma, é a mulher perfeita: “outra tal nam se acontece” (= não existe outra igual);
b) linguagem – vocabulário: “senhora”, “despejo”, “discrição”, “fermosura” – cantiga de amor; “donzela” – cantiga de amigo;
c) recursos estilísticos:
- metáfora: “fresca rosa”;
- hipérbole: “outra tal não se acontece”;
d) relação entre o enunciador e o destinatário: o Escudeiro assume uma atitude de subserviência perante Inês (“Senhora, eu me contento / receber-vos como estais”), que recorda a vassalagem prestada pelo trovador à sua dama, que é a sua suserana (como se comprova pelas formas de tratamento: trovador: “senhor” – Escudeiro: “senhora”) e ele o seu vassalo, dispondo-se a recebê-la em casamento.
         No entanto, o discurso de Brás da Mata opõe-se ao do trovador na cantiga de amor por causa da sua retórica falsamente elogiosa (pouco antes de se encontrar com Inês, tinha-se-lhe referido de forma desdenhosa e trocista), do interesse material que o norteia na procura de noiva para casar e que ultrapassam a expressão de um amor puro, espiritual e desinteressado, característico dos cantares de amor trovadorescos.
 
 
3. Objetivo da fala do Escudeiro/do elogio a Inês
 
            O objetivo do Escudeiro é seduzir Inês, de modo a casar com ela e, assim, sair da miséria em que vive e ter maior desafogo financeiro.
 
 
4. Caracterização de Brás da Mata
 
a) Elogio a Inês

▪ É galanteador: elogia os dotes da jovem (“mui graciosa donzela”).

▪ É sedutor: refere que ela é a mulher que sempre quis (“vós sois, minha alma, aquela / que eu busco e que desejo”).

▪ É eloquente – usa um vocabulário requintado (“Obrou bem a Natureza.”).

▪ Usa metáforas (“fresca rosa”).

▪ Usa hipérboles (“vossa fermosura, / que é tal que, de ventura, / outra tal não se acontece.”).

▪ É falso e mentiroso: ficará com ela, independentemente da situação financeira de Inês (“Senhora eu me contento / receber-vos como estais.”).

 
b) Autocaracterização

▪ É escudeiro / nobre: alega trabalhar para um marechal como escudeiro (“Eu nam tenho mais de meu / somente ser comprador / do marichal meu senhor / e sam escudeiro seu.”).

▪ É culto: sabe “bem ler” e “muito bem escrever”.

▪ Possui dotes artísticos e musicais: tange bem (“logo me vereis tanger”).

▪ É gabarola / fanfarrão (“Sei bem ler / e muito bem escrever / e bom jogador de bola / e quanto a tanger viola / logo me ouvireis tanger.”).

▪ É calculista e preguiçoso, pois pretende viver à custa da mulher (“Leixa-me casar a mi, / depois eu te farei bem.”).

 
c) Segundo o Moço (diálogo entre ambos)

▪ É arrogante e autoritário: “Pera fazeres o que mando.”

▪ É grosseiro e sem vergonha: “o mais sáfio bargante”.

▪ É pobre:
- se Inês casar com ele, passará fome (“Oh como ficará tola / se nam fosse casar ante / c’o mais sáfio bargante / que coma pão e cebola.”);
- a viola é emprestada (“E se ela é emprestada”);
- o Moço passa fome e dorme no chão, sem manta para se cobrir (“No chão e o telhado por manta / e çarra-se-m’a garganta / com fome”);
- o duplo sentido dos versos 610 e 611 – a viola está bem temperada (= afinada), mas o Escudeiro não tem o que temperar, ou seja, o que comer (“Ei-la aqui bem temperada / num tendes que temperar.”).

▪ Promete-lhe que, depois de casar, a vida de ambos será diferente.

 
d) Segundo os Judeus:

▪ É cantador: canta mal e de forma monótona/aborrecida – dá sono ao judeu (“como oivo cantar guaiado / que nam vai esfandegado.”).

▪ É um “caçador de pardais”.

▪ É “sabedor, revolvedor, / falador, gracejador”.

▪ É atrevido – pega na mão de Inês como se ela fosse sua esposa (“afoitado pela mão”).

▪ É desonesto: “sabe de gavião” (o termo “gavião” – ave de rapina – significa que é desonesto, pois rouba o que não lhe pertence).

▪ É fraco e cobarde – envolve-se em brigas, mas acaba por apanhar (“Este escudeiro aosadas / onde se derem pancadas / ele as há de levar / boas senam apanhar”).

 
e) Segundo a Mãe, o Escudeiro é um rascão, um vadio (“Inês guar-te de rascão”).
 
f) Para afirmar os seus dotes artísticos e como estratégia de sedução, canta o romance “Mal me quieren en Castilha”.
 
 
5. Reação inicial de Inês ao discurso do Escudeiro
 
            A reação de Inês ao discurso elogioso do Escudeiro chega-nos através dos comentários dos judeus:
LatãoComo fala!
Vidal E ela como se cala!
            Esta breve troca de palavras significa que Inês Pereira ficou deslumbrada e rendida ao discurso e aos encantos de Brás da Mata, bem como convencida das suas qualidades.
            De facto, está tão embevecida que não consegue articular palavra, o que contrasta com a desenvoltura discursiva de Brás da Mata. Assim sendo, deduz-se que irá haver casamento, o que Vidal intui, conhecedor que é da psicologia feminina, ao afirmar que “este há de ser seu marido / segundo a coisa s’abala”.
 
 
6. Retrato do Moço
 
▪ É pobre e vive em condições muito difíceis, o que é simbolizado pelos seus sapatos rotos, pelas calças muito usadas, por passar fome e frio.
 
▪ É leal e serviçal, obedecendo ao seu amo, mas também revoltado e muito crítico.
 
▪ Os seus apartes mostram a leviandade do Escudeiro (“O Diabo me tomou: / Sair-me de João Montês / por servir um tavanês, / mor doudo que Deus criou!” – o Moço afirma que devia estar possuído pelo Diabo para ter deixado o serviço de João Montês e ir servir um estouvado - «tavanês» – e louco – «mor doudo») e reforçam a ideia de que Inês fará uma má escolha (“Oh! como ficará tola / se não fosse casar ante / co mais sáfio bargante / que coma pão e cebola!”).
 
▪ É sensato, visto que não se deixa impressionar pelas promessas do amo.
 
▪ Manifesta a vontade de se despedir, porque o Escudeiro não dá «governo» (não lhe paga) para o servir.
 
▪ O seu papel é semelhante ao de personagens do mesmo género que surgem noutras peças de Gil Vicente – desmistificar o caráter do Escudeiro:
- a penúria / a pelintrice / a pobreza:
. a viola é emprestada;
. o Moço passa fome, frio e dorme no chão, sem manta para se cobrir;
- em suma, revela a pelintrice famélica típica nos escudeiros vicentinos.
 
 
7. Diálogo entre a Mãe e Inês
 
• A Mãe, recorrendo à ironia, critica Inês por se deixar seduzir e se sentir feliz (“Agora vos digo eu / que Inês está no paraíso.”).
 
• Por outro lado, considera que a filha não está a pensar bem (“Quanta doudice.”).
 
• Inês reage de forma agressiva:
- quase insulta a mãe (“Como é seca a velhice” = como são maçadores os velhos);
- insiste em não casar com um homem tolo (“nam me hei de contentar / de casar com parvoíce.”);
- está encantado com o “homem avisado” (culto, com boas maneiras) que acabou de conhecer.
 
• A Mãe aconselha-a a preferir um homem simples, a ser prudente e racional na escolha do marido.
 
• Após uma interrupção, causada pelos Judeus, as duas mulheres retomam o diálogo:
- A Mãe adverte a filha para o caráter dos Judeus, que apenas estão preocupados com os seus interesses (o dinheiro que receberão) e nada com a felicidade de Inês.
- De seguida, aconselha-a a escolher para marido “um bom oficial / que te ganhe nessa praça / que é um escravo de graça / e casarás com teu igual?” e a livrar-se do “rascão” do Escudeiro, isto é, que lhe dê segurança económica e que pertença à mesma hierarquia social, o que não acontece com o Escudeiro. (Mãe: preocupada, sensata, precavida; Judeus: conveniência, avareza, ganância, proveito.)
 
• Inês responde-lhe, decidida e agressiva, primeiro desvalorizando os comentários da progenitora, dizendo que está a fazer afirmações sem fundamento (“Já minha mãe adivinha…”), pois não tem o dom de adivinhar o futuro, e depois que, se a mãe casou com quem quis, também ela o irá fazer: “Houvestes por vaidade / casar à vossa vontade / eu quero casar à minha.”
 
• Resignada, a Mãe cede à vontade da filha: “Casa, filha, muit’embora.” [= em boa hora]
 
• Inês fica, em suma, tão deslumbrada com o discurso do Escudeiro, dado que este é de uma classe social superior, galante, cortês e com dotes musicais, que decide, de imediato, casar com ele.
 
 
8. Judeus
 
            Neste excerto, as intervenções dos Judeus confirmam o que já se conhecia deles antes: são mentirosos, aldrabões, desonestos, interesseiros e materialistas. A sua única preocupação centra-se no recebimento da quantia combinada com Inês, cujo bem-estar e felicidade futuros lhes são absolutamente indiferentes. É, por isso, que tudo fazem para a convencer a casar com Brás da Mata, elogiando-o e aconselhando-o a casar logo, antes que outro pretendente “carrapatento” avance. Atentos aos comentários da Mãe, que desaprova a intenção da filha, sugerem a Brás da Mata que cante para Inês, para a seduzir.
            Convém não esquecer que os Judeus são casamenteiros – esse é o seu papel – e, nessa qualidade, encarecem os méritos do Escudeiro perante Inês e as qualidades desta perante aquele, mas simultaneamente criticam-nos, subtil e dissimuladamente, elogiam e depreciam, criticando, ao mesmo tempo.

 
9. Cómico
 
Cómico de linguagem:

» a ironia nas falas do Escudeiro;

» a ironia das respostas e apartes do Moço;

» a ironia da Mãe (“Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso”

 
Cómico de caráter: o Escudeiro quer-se passar por alguém que não é na realidade. Por exemplo, traz consigo uma viola que é emprestada e, quando ameaça parti-la na cabeça do Moço, este responde que, depois, não haveria quem a pagasse.
 
 
10. Linguagem
 
. Apóstrofe e metáfora: “Deus vos salve, fresca rosa...” (v. 551):
‑» a juventude e formosura de Inês;
‑» caricatura do estilo cortesanesco e afectado, cheio de jogos verbais, por exemplo.
. Hipérbole: “Mor doudo que Deos criou!” (v. 595).
. Ironia da Mãe: “Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso...” (vv. 627-628) ® traduz a reacção negativa da Mãe à apresentação do Escudeiro.
. Quiasmo: «”Pelo mar vai à vela,
Vela vai pelo mar”?» (vv. 654-655).
. Metáfora: “E sabe de gavião...” (v. 663) ® o Escudeiro é um conquistador sábio na conquista de mulheres; mas tal como o gavião fere e mata as suas presas, também o Escudeiro fere as esperanças e expectativas postas por Inês no seu casamento, no seu futuro;
“... casar he cativeiro.” (v. 729).
. Enumeração, assíndeto, adjetivação (vv. 658-661) ® retratam o verdadeiro carácter do Escudeiro: falador, medroso, hipócrita, cobarde, etc. Brás da Mata enumera as suas qualidades para se valorizar e impressionar Inês, o que revela também o seu narcisismo e vaidade.
. Antítese: “Senhora, eu me contento […] / se vós vos não contentais”.
 
 
11. Representatividade
 
Gil Vicente, através das palavras do Escudeiro, caricatura o estilo cortesanesco e afetado, cheio de jogos verbais, facilmente detetável em muitos dos menos conseguidos poemas do Cancioneiro Geral.
 
O Escudeiro é o retrato do “rascão” vagabundo, que vai vivendo ao sabor da sorte e das suas “falinhas mansas”.
 
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