Português: 19/11/22

sábado, 19 de novembro de 2022

Símbolos do tempo em O Delfim


             Um dos elementos que está associado ao tempo é a lagartixa, descrita como “brasão do tempo”, da transição da posse da lagoa e da própria lagoa.
            A lagartixa, aparentemente inerte no seu muro de pedra, simboliza o tempo, a humildade e a pequenez. Ela simboliza a inércia, a preguiça sábia e familiar, a vigilância tranquila (dado que tem consciência de que a mudança é inevitável), daí a sua presença vigilante e constante nos muros e umbrais das portas. Como gosta de estar ao sol, simboliza também a procura da luz, aqui interpretada como busca do saber. A sua ação, em perseguição de um novo saber, de uma nova luz, de uma mudança, dá-se sem chamar a atenção. As únicas figuras que reparam na sua atividade são os “bons portugueses”.
            Outro símbolo do tempo é a transição da lagoa, que passa das mãos do Engenheiro e dos seus antepassados para as do Regedor e dos Noventa e Oito que ele representa. Esta alteração representa a mudança dos próprios tempos, do poder e da ordem, que se opera de forma subversiva.
            Um último símbolo é a lagoa, que representa a vida e constitui uma fonte de alimento para os camponeses-operários. Para o Engenheiro, a lagoa é somente mais um símbolo do poder inútil que, nas mãos do Noventa e Oito, passará a simbolizar evolução e progresso, quer do tempo, quer das estruturas sociais, económicas e ideológicas.

O tempo psicológico em O Delfim


             Para os camponeses-operários, o tempo passa lentamente, mas de forma incisiva, enquanto para Maria das Mercês ele demora a passar e está intimamente ligado à sua solidão: “Sete anos de esposa a passear de lá para cá (…). De vez em quando a jovem esposa julga ouvir o telefone. Outras vezes o motor de um automóvel; noutras o portão a girar nos gonzos, como se isso fosse possível sem que os cães dessem sinal. Esses malditos. Mas o telefone morreu há muito, porque as amigas jogam na vila, em casa umas das outras (…).” Para Tomás Manuel, o tempo parou para dignificar os antepassados e ele o fará parar quando e se for sepultado na lagoa, o símbolo perpétuo do seu poder sobre ela e que já se adivinha ameaçada pela nova ordem: “Bem enterrado no fundo do lodo que é para a miuçalha dos peixes não me chega (…). O que me admira é o orgulho daqueles peixes (…) saberem que entraram em agonia e puxarem pelo resto das forças para cumprir a última vontade.”
            Tal como o tempo mítico-histórico é simbólico pela lagartixa, a referência constante aos peixes e à lagoa remete para o tempo mitológico absoluto, aquele em que a casa da lagoa e a respetiva comarca constituíam marcos da presença e do poder dos ungidos Palma Bravo: “(…) se até agora foi a minha família quem governou a lagoa, não hei de ser eu quem a vai perder.”
            Por outro lado, o Regedor e o narrador simbolizam o tempo da mudança. O Regedor lidera a lagoa e o grupo dos Noventa e Oito, passa licenças e olha em frente do fundo da sua loja, sempre atento a todos os movimentos e a todas as mudanças. Relativamente à personagem-narrador, observa o largo e a muralha a partir da sua janela, que forma o seu posto de vigia, e reflete criticamente sobre os acontecimentos que decorreram no tempo em que esteve ausente.
            Durante uma longa noite de insónia, que antecede a caçada, revive o convívio do ano anterior com os Palma Bravo, relê a Monografia, cedida pela estalajadeira, analisa todas as informações que o Velho-Dum-Só-Dente, o Regedor, o Batedor e a estalajadeira lhe deram. O narrador formula os seus próprios juízos sobre os acontecimentos, mas questionando-os sempre.
            Seja como for, o foco da sua atenção é, claramente, a agitação da lagartixa e dos camponeses-operários: é sobre eles que tece os comentários mais subversivos, é a partir deles que as suas divagações se aprofundam, são as suas ações que desnudam as mudanças que se deram durante o tempo em que este fora da Gafeira.

O tempo histórico em O Delfim


             Em O Delfim, o Tempo transmite a ideia de mudança, operada nas estruturas e revolução económico-social. Deste modo, temos o retrato fiel de uma época e da sua atmosfera conturbada.
            As personagens da obra refletem estas posições: de um lado estão o Engenheiro e Maria das Mercês, que fazem parte da elite que dominara até então e cuja história se perdera no tempo e cujos antepassados, todos de nome Tomás Manuel (este facto atesta a circularidade do tempo, isto é, a história que se repete de geração em geração), tinham um denominador comum: o poder. Do outro lado encontram-se os camponeses-operários que vão passar a usufruir das riquezas da lagoa, algo que já faziam, embora de forma clandestina, o que é exemplificado pelo festim das enguias. Note-se ainda que quanto mais ganham consciência da mudança mais se embrenham na clandestinidade, uma característica da década de 60 do século XX, e mais anseiam pela sua chegada, o que se reflete numa grande consciencialização, a qual se transmite por saberem que, juntos, conseguirão manter a posse da lagoa, dominando os seus destinos.
            Deste modo, poderemos concluir que O Delfim constitui a metáfora da situação que se vivia em Portugal na época (anos 50 e 60), visto que a Gafeira se multiplica pelo país fora, e o desejo premente de mudança. Esta noção só está, porém, ao alcance dos “bons portugueses”, dos que sabem jogar constantemente ao “olho vivo”, com a vida e com o Sr. Escritor (o tratamento de “senhor” é uma autoironia a propósito da condição de um indivíduo que é menosprezado por uma sociedade anticultural), dos que sabem ler nas entrelinhas o texto e a História. Por outro lado, não é uma casualidade a narrativa situar-se numa zona rural e que o camponês é associado ao operariado. De facto, é esta associação que vai fazer do camponês-operário alguém com consciência e vontade próprias em termos políticos, que se espera que alastre por toda a Gafeira.

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