Português: 12/01/2017 - 01/01/2018

sábado, 30 de dezembro de 2017

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

"All Time High", Rita Coolidge

"A honra perdida de Katharina Blum", de Heinrich Böll

     Katharina Blum, empregada em casa de um advogado, durante um baile de Carnaval, apaixona-se por um alegado assaltante de bancos, desertor e assassino e passa uma noite com ele no seu apartamento. No entanto, a polícia tem ambos sob vigilância, o que não impede que ele desapareça sem deixar rasto.
     As forças da autoridade convocam então Katharina para depor sobre as suas relações com Ludwig Götten, mas liberta-a por a considerar inocente de parceria com o criminoso. Entretanto, enquanto o advogado e a sua esposa, conhecida por "Trude Vermelha" por ambos serem considerados comunistas, interrompem as suas férias e acorrem em seu auxílio.
     Um jornalista que trabalha para um jornal sensacionalista chamado simplesmente Jornal debruça-se sobre o caso e escreve uma série de artigos onde altera os factos, distorcendo-os, mente, de forma a dar de Katharina uma imagem de cúmplice de Götten, de uma mulher leviana e insensível. Entrevista pessoas amigas, vizinhas ou familiares (pelo meio causa a morte da mãe da jovem, recentemente objeto de uma intervenção cirúrgica delicada para debelar um cancro, depois de lhe mentir sobre a filha) e distorce as suas palavras sobre Katharina. Trata-se de uma verdadeira perseguição: de terrorista a comunista, passando por criminosa, tudo o 'jornalista' lhe chama.
     No auge da fúria, Katharina procura-o e assassina-o a tiros de revólver.
     Publicada originalmente em 1974, a obra, cuja ação decorre na então Alemanha Ocidental, no pico da Guerra Fria, retrata a paranoia dessa época e as profundas divisões políticas mundiais. Note-se, por exemplo, que o maior insulto dirigido a alguém era apelidá-lo de "comunista". Por outro lado, Böll critica acidamente o jornalismo sensacionalista.

"Werther", de Goethe

     Werther, um jovem inconstante, conhece Carlota, uma jovem comprometida com Alberto, por quem se apaixona irremediavelmente.
     Da evolução da sua paixão trágica dá conta ao amigo Guilherme através de cartas. Desesperado pela impossibilidade de concretizar o seu amor, vai trabalhar para um embaixador, mas rapidamente regressa para o convívio da sua amada. Após um convívio inicial com Alberto, os dois rivais começam progressivamente a esfriar as suas relações. Por outro lado, este faz, cada vez mais, mais alusões ao suicídio.
     Por seu turno, Werther conhece histórias de amores contrariados. Um deles é o de um criado e da viúva para quem trabalha. Afastado dela pelo irmão da viúva, outro criado toma o seu lugar e é anunciado o casamento deste último com a mulher. Porém, o primeiro assassina o rival, porque, já que ela não pode ser sua, não será de mais ninguém. O jovem vê neste caso um espelho do seu, por isso toma o partido do assassino.
     Depois de Carlota pedir a Werther que só a volte a visitar pelo Natal, ele acaba por ir a sua casa uns dias antes da data e, num acesso de loucura, beija-a. A jovem expulsa-o e pede-lhe que nunca mais a procure. Werther pede as duas pistolas a Alberto e quem as dá ao criado do jovem é Carlota, num gesto que, metonimicamente, a aponta como responsável pela desgraça dele.
     Werther suicida-se com um tiro na cabeça, mas a sua agonia prolonga-se por várias horas. Carlota, ao vê-lo, desmaia e está bastante tempo entre a vida e a morte. O funeral tem fraco acompanhamento e nenhum padre o acompanha, dado tratar-se de um suicida.

Partes da 'Crónica de D. João I'

     A Crónica de D. João I foi escrita entre 1434 e 1443, constituindo a terceira e mais perfeita das compostas por Fernão Lopes.
     Impressa pela primeira vez em Lisboa, em 1664, foi deixada incompleta, sendo da autoria do cronista a primeira (o interregno entre a morte de D. Fernando e a eleição de D. João I) e a segunda parte (o reinado de D. João I até 1411), não se sabendo se terá legado manuscritos para a terceira, redigida por Gomes Eanes de Zurara, seu sucessor, conhecida como Crónica da Tomada de Ceuta.

     A primeira parte narra, pois, o período revolucionário, durante o interregno de 1383-1385. A ação está concentrada em cerca de dezasseis meses: da morte do conde Andeiro (dezembro de 1383) à aclamação do Mestre de Avis como rei de Portugal nas cortes de Coimbra, em abril de 1385, passando pelo alvoroço da multidão que acorre a defendê-lo e pela morte do bispo de Lisboa. O que está em causa é a legitimação da eleição de D. João I, consumada em Coimbra, na sequência da argumentação do doutor João das Regras, enquanto desfecho inevitável imposto pela vontade popular.

     A segunda parte compreende o reinado de D. João I, decorrendo entre abril de 1385 e outubro de 1411, e inclui a narração do conflito bélico entre Portugal e Castela, incluindo a Batalha de Aljubarrota, até à assinatura do tratado de paz.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Fontes da obra de Fernão Lopes

1. Fontes narrativas
  • Crónica do Condestabre de Portugal (sobre Nuno Álvares Pereira), anónima, redigida provavelmente entre 1431 e 1436.
  • Tratados dos Feitos de D. João, Mestre de Avis, de Cristophorus (eclesiástico ou doutor em leis).
  • Crónica dos Reis de Castela, de Pero López de Ayala.
  • Crónica dos Feitos de D. Fernando, de Martim Afonso de Melo.
  • Livro de linhagens do conde D. Pedro.
  • Pelo menos cinco narrativas anónimas, referidas pelo próprio cronista e que descrevem a Batalha de Aljubarrota.
     Fernão Lopes recorre a várias fontes (textos históricos anteriores) com o objetivo de:
  • Fundamentar a verdade histórica em documentos escritos;
  • Confrontar os documentos para aferir a verdade dos factos.


2. Fontes documentais
  • Atas de cortes.
  • Documentos das chancelarias.
  • Bulas papais.
  • Bitafes antigos, isto é, epitáfios de sepulturas.
  • Práticas e sermões, procurações.
  • Correspondência epistolar particular e oficial.


3. Fontes orais

     Fernão Lopes socorreu-se ainda de testemunhos de pessoas que assistiram a acontecimentos narrador e que conheceram aqueles que nele participaram. De facto, o cronista teve acesso a testemunhos vivos, isto é, a pessoas que tinham conhecido aqueles tempos, nomeadamente os da crise de 1383-1385.

    A obra de López de Ayala serviu como fonte para 55 capítulos da Crónica de D. Fernando, enquanto a Crónica de D. Juan I foi aproveitada em 70 capítulos da Crónica de D. João I. Já a Crónica do Condestabre é usada quase na totalidade, não tendo sido utilizados apenas 8 capítulos. O cronista português chega mesmo a copiar períodos inteiros destas obras.
     As fontes narrativas dominaram a pesquisa de Fernão Lopes, tendo a consulta de fontes documentais ocorrido, de forma pontual, somente para completar o relato.

     A leitura das crónicas e da demais documentação deve ser feita com grande reserva pelos problemas que reserva. De facto, a redação das obras ocorre entre 1437 e 1443, ou seja, sessenta a setenta anos depois do reinado de D. Fernando (1367-1383) e da regência de D. Leonor Teles (22 de outubro de 1383 a janeiro de 1384). Pelo contrário, López de Ayala (1332-1407) foi testemunha ocular de acontecimentos que tiveram lugar no período a que se reportam as crónicas. Além disso, Ayala desempenhou outras funções além da de cronista: curador do casamento entre o infante D. Henrique e a infanta portuguesa D. Beatriz; chanceler e alferes-mor do rei D. João I de Castela (marido da dita Beatriz); vassalo presente nos juramentos ao Tratado de Salvaterra de Magos; participantes na Batalha de Aljubarrota, do lado castelhano. Um viveu os acontecimentos, o outro ouviu-os contar e leu-os.
     Por outro lado, convém não esquecer que a obra de Fernão Lopes resultou da encomenda feita pela dinastia de Avis, nos primeiros anos da sua vida, quando havia a premência de afirmar o reinado dos novos governantes.
     Outra questão a ter em conta prende-se com o facto de a Torre do Tombo - criada por D. Fernando em 1378 e instalada no castelo de S. Jorge, para funcionar como arquivo dos livros das chancelarias régias - ter sido marcada pela desorganização progressiva com a passagem do tempo, daí que, em 1458, D. Afonso V tenha encarregado Gomes Eanes de Zurara de a remodelar. A sua ação passou pela escolha, nos livros de registos antigos, dos atos dignos de memória e pela sua cópia em novos livros de registo. Por exemplo, os 48 livros de D. João I passaram a apenas 4. Com esta depuração, os antigos livros de registos passaram à categoria de obsoletos, foram esquecidos e acabaram por desaparecer no reinado de D. João III.
     Em suma, só chegou ao nosso conhecimento a informação que os nossos antepassados quiseram que chegasse, graças às triagens e depurações feitas ao longo do tempo por diferentes agentes.
     Por outro lado, se é evidente que, no Prólogo à Crónica de D. João I, afirma que o seu objetivo é contar a verdade dos factos, não o é menos a noção de que há sempre diversas leituras da mesma realidade. Com efeito, as fontes em que nos baseamos refletem habitualmente uma série de circunstâncias e a ideologia dominante e não necessariamente a dita realidade. Além disso, há que ter em conta que se trata de uma narração e representação dessa realidade e não a própria.

"D. João I - um retrato épico"


     Tese de mestrado sobre o caráter mítico de D. João I, da autoria de Luís Miguel Martins Ventura, datado de 2009, pela Universidade Aberta.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

"Crime e Castigo", de Fiódor Dostoiévsky

     Raskólnikov é um jovem de 24 anos, natural de Petersburgo, pobre e endividado, por isso revoltado contra o «mundo» que planeia um crime contra uma velha agiota (símbolo na obra do capitalismo) para se libertar do seu modo de vida miserável, mas demonstra também hesitação e alguma repulsa por pensar em recorrer ao crime.
     A personagem Marmeládov representa o baixo estatuto dos funcionários públicos: miserável, alcoólico, desprezado pela sociedade, oprimido em casa, procurando, através de um expressão verbal recheada de floreados, o respeito público. Humilha-se ao pedir empréstimos; a filha é prostituta; vende até as roupas da mulher para sustentar a bebedeira; vive numa casa gelada, por isso, no último inverno, a consorte adoeceu e começou a cuspir sangue. Atualmente, esta trabalha de manhã à noite, não obstante a sua educação esmerada, a cultura e a proveniência de boas famílias. Vendo-se viúva e desprezada pela própria família, casou pela segunda vez por necessidade absoluta. Marmeládov, também viúvo, não conseguiu agradar à segunda mulher, foi despedido, errou por várias cidades até assentar ali. Foi nesta cidade que a filha do primeiro casamento se viu na necessidade de se prostituir... e o pai bêbedo. Marmeládov dirigiu-se então a sua excelência Ivan Afanássievitch, que lhe deu emprego. Em consequência, a vida da sua família transformou-se, até que há cinco noites ele retirou todo o dinheiro do baú, saiu de casa e caiu novamente na bebida.
     De volta aos seus problemas, Raskólnikov fica a saber que a senhoria quer dar parte de si à polícia por não pagar a renda. Entretanto recebe uma carta da mãe que aborda diversos assuntos familiares: (1) os maus tratos e as humilhações sofridas por Dúnia, sua irmã, em casa do sr. Svidrigáilov, porque se havia apaixonado por ela e usa a grosseria e o desprezo para mitigar o seu desvario amoroso; a mulher descobre o interesse amoroso dele, mas interpreta a situação ao contrário, como se fosse Dúnetchka a tentar seduzir o patrão, fazendo recair sobre ela todo o odioso da questão e o desprezo da cidade; o problema resolve-se quando Svidrigáilov relata à esposa toda a verdade, relato esse sustentado pelos criados, e a honra é devolvida à família de Raskólnikov; (2) Dúnetchka recebeu um pedido de casamento de Piotr Petróvitch Lújin, conselheiro áulico e parente afastado de Marfa Petrovna, mulher de Svidrigáilov; trata-se de um homem abastado mas muito mais velho (45 anos), bondoso e bem apessoado, direto e um pouco brusco; não será um casamento de amor intenso; Dúnia projeta já que o irmão se torne sócio do futuro marido num escritório de advocacia que este pretende abrir em Petersburgo (até porque Raskólnikov poderá regressar à universidade para retomar o curso de Direito entretanto abandonado); (3) Pulkhéria Raskólnikova, a mãe, poderá, agora que o crédito lhe foi novamente franqueado, enviar algum dinheiro ao filho.
     Raskólnikov não aceita o casamento e faz uma longa digressão sobre as razões que terão levado a irmã a tomar uma atitude tão 'decisiva' na vida que é incongruente com a sua forma de ser e de viver, para concluir que se trata de um sacrifício pessoal em prol de uma melhor existência para a mãe e o irmão.
     A propósito do encontro com uma miúda de 15 / 16 anos bêbeda, acabada de "enganar" (pela primeira vez), reflete sobre a vida degradante que levam as prostitutas: a primeira "asneira", a descoberta por parte da família, a expulsão de casa, as ruas, os chulos e as casas de prostituição, as doenças venéreas / gravidezes, o fim da vida aos 18 / 19 anos.
     Enquanto estudante universitário, Raskólnikov isolava-se de todos, não participava em nada (conversas, divertimentos, convívios), estudava muito, pelo que era respeitado mas não amado pelos colegas. A sua pobreza tornava-o orgulhoso, fechado e desdenhoso. O único amigo que possuía era Razumíkhin, um rapaz bastante alegre, sociável, bondoso, um pouco simplório, mas assaz inteligente. Era pobre (vivia à custa de pequenos trabalhos) e valentão, capaz das atitudes mais contraditórias; nenhuma contrariedade o desanimava.
     Raskólnikov prepara-se para cometer o seu crime e recorda.-se da coincidência de, na altura em que começara a pensar nele, ter ouvido, numa taverna, uma conversa entre dois homens, que consideravam a morte da velha usurária um ato de justiça social. O seu caráter introspetivo leva-o a considerar uma espécie de analogia: figuras como Júlio César e Napoleão Bonaparte foram responsáveis por milhares de mortos, porém a História registou-os como grandes heróis e conquistadores, absolvendo-os dos seus atos. Por que razão ele não o poderia ser também ao eliminar a velha agiota? Assassinando-a, não estaria a fazer um bem à humanidade?
     Como ardil para entrar em casa da velha, Raskólnikov embrulha muito bem um pedaço de madeira e uma chapa de ferro e cose uma alça de pano dentro do sobretudo muito largo para o machado ser transportado sem levantar suspeitas. No meio de grande nervosismo, assassina a velha e está a vasculhar as coisas dela em busca das riquezas, quando ouve um grito ténue. É Lisaveta, a irmã, da morta, que acabara de entrar e que ele também assassina à machadada. Pouco depois dá-se a chegada de um cliente de nome Koch e de um jovem estudante para juiz de instrução, que acabam por desconfiar que algo de suspeito aconteceu porque a porta não está fechada à chave, mas apenas com a tranca, e nenhuma das duas irmãs vem atender. Os dois descem à procura do guarda e Raskólnikov aproveita para fugir, mas, enquanto desce, apercebe-se que os outros vêm a subir de regresso. No último momento, encontra um apartamento em obras, vazio, e nele se esconde até os outros passarem em direção ao cenário do crime. Chegado a sua casa, repõe o machado no sítio e sobe para o seu quarto. Vestígios de sangue permanecem, no entanto, nos fios das suas calças e nas suas meias.
     Cheio de febre e em pânico, Raskólnikov é chamado à esquadra de polícia, mas afinal "só" por causa de uma dívida à sua senhoria. Na esquadra ainda, ouve casualmente uma conversa, através da qual fica sabedor de que as autoridades não possuem pistas sobre o assassino da usurária. Com efeito, tratou-se do crime perfeito. Apesar disso, continua a pensar que a polícia suspeita de si, por isso livra-se dos objetos roubados à velha, escondendo-os num buraco junto a um portão de um prédio. Por outro lado, além do medo de ser preso, ressaltará o sentimento de culpa que o irá assolar e que nenhum livro o ensinou a superar. Matar milhares de seres humanos em nome da humanidade talvez seja mais fácil de superar do que aniquilar um só.
     De seguida, vagueando ao caso, vai ter a casa do amigo de universidade Razumíkhin, que lhe oferece parceria numas traduções que anda a fazer, mas recusa a oferta, bem como o dinheiro correspondente ao pagamento da tarefa. De noite, acometido de febre, sonha que o ajudante de polícia que o recebeu de dia espanca a sua senhoria, Depois desmaia.
     Dias depois, quando desperta da febre, tem ao seu dispor 35 rublos que a mãe lhe enviou e que, de início, rejeita. Fica a saber, por intermédio do amigo, que um trolha é agora o suspeito do assassínio da usurária. Obcecado pelo crime que cometeu, hesita em ir à polícia denunciar-se como autor do crime. A obsessão é tamanha que chega a deslocar-se novamente à casa da vítima. É o desejo de ser punido a despertar na sua psique. Entretanto a irmã e a mãe vêm à cidade e aí permanecem., enquanto Raskólnikov prossegue o seu percurso errático, chegando a despertar suspeitas.
     A chegada de Svidrigáilov, marido da defunta Marfa Petrovna e suspeito de vários atos criminosos, entre os quais pedofilia e a morte da própria mulher, vem perturbar-lhe mais a existência. Em simultâneo, a irmã recebe 3000 rublos da herança de M. Petrovna e termina o noivado com Lujín por causa de um ódio mútuo.
     Raskólnikov confia a família a Razumíkhin e dirige-se à polícia, onde encontra um juiz de instrução - Porfiri - que o confunde por completo ao explicar-lhe um método de investigação "psicológico" que se aplica a si mesmo e ao seu comportamento na perfeição, mas afirmando sempre que não se lhe aplica. Uma surpresa reservada a Raskólnikov - o confronto com o homem que, no dia anterior, o tinha perseguido e chamado assassino - acaba por cair por terra quando irrompe pela sala Nikolai, um dos pintores, que se apresenta como o autor do crime.
     Os acontecimentos sofrem uma reviravolta quando o protagonista conhece Sónia, uma prostituta miserável que acaba por representar a fé ortodoxa e a possibilidade de uma redenção. De facto, ele, um niilista, é confrontado com a leitura de uma passagem do Evangelho de São João, precisamente a que refere a ressurreição de Lázaro. E, de facto, a partir desse momento, o herói parece ressurgir do mundo da solidão, da culpa, da introspeção, do niilismo.
     Entrementes Lujín arma uma cilada a Sónia durante o "banquete" organizado após o funeral do pai, simulando um furto de 100 rublos, procurando despoletar um conflito entre Raskólnikov e a sua família e que ele, Lujín, recuperasse as boas graças da mãe e da irmã daquele. No entanto, acaba por ser desmascarado por Lebeziátnikov e pelo próprio Raskólnikov. Posteriormente, este revela a Sónia ser o assassino de Lisaveta e da velha agiota e ela aconselha-o a confessar.
     A mãe de Sónia, Katerina Ivánovna, em desespero, vai pelas ruas com os filhos mais novos, como "cantores" ambulantes, para obter o dinheiro que lhe falta e que todos lhe negam até que cai, expelindo golfadas de sangue pela boca, e morre, vitimada pela tísica. Svidrigáilov, que entretanto escutou, no quarto contíguo, a confissão do assassinato, trata de colocar os filhos mais novos de K. Ivánovna numa instituição de crianças órfãs, oferecendo-lhes também uma determinada quantia de dinheiro para que tenham o futuro assegurado.
     Raskólnikov recebe a visita do juiz de instrução, Porfíri Petróvitch, que o vem acusar direta e inequivocamente do crime, revelando não acreditar na confissão do pintor, que o terá feito por crença religiosa. Aconselha-o a confessar e assim terá atenuantes quando lhe for aplicada uma pena, contudo ele recusa e vai falar com Svidrigáilov. Este, mais tarde, recebe Dúnia após lhe ter escrito uma carta onde dava a entender que o irmão tinha assassinado a velha agiota e a irmã. Agora, confirma este facto e o modo como ficou a conhecê-lo e propõe-lhe um relacionamento em troca da salvação de Raskólnikov. Ela recusa e ele ameaça violá-la, mas Dúnia saca de um revólver e chega a efetuar um disparo, ferindo na fronte de raspão. Tenta mais duas vezes, mas arma mal o revólver e este não dispara, perante um Svidrigáilov que prefere morrer face à recusa da jovem. Dúnia acaba por atirar a arma ao chão; o homem abraça-a, mas ela, a tremer, diz-lhe não e ele dá-lhe a chave do quarto.
     De seguidam Svidrigáilov procura Sónia e oferece-lhe dinheiro para ela sobreviver, juntamente com Raskólnikov, caso este seja preso e a mulher o acompanhe. Depois dirige-se a casa da noiva de 16 anos e oferece à família 1500 rublos, pois vai partir para a América por um largo período de tempo. Vagueia então por Petersburgo até pernoitar num autêntico antro, no qual o seu sono é interrompido várias vezes por sonhos estranhos. Posteriormente, sai para a rua e suicida-se com um tiro na cabeça, tendo como testemunha um bêbedo.
     Por sua vez, após ter considerado também o suicídio, lançando-se ao rio, Raskólnikov decide entregar-se à justiça, indo despedir-se previamente da mãe e da irmã, continuando, porém, a não considerar o seu gesto um crime, porque se tratou de livrar o mundo de um piolho (um parasita) que explorava centenas de pobres indefesos, comparando o seu ato aos "crimes" cometidos pelos dirigentes das nações, que comemoram com champanhe o derramamento do sangue de milhares de homens. Quando se prepara para confessar o crime a Iliá Petróvitch, este comunica-lhe que Svidrigáilov se suicidou, o que o deixa incrédulo e zonzo e sai sem confessar. No entanto, à saída, encontra Sónia, mortificada. Reentra então e confessa finalmente o seu duplo homicídio.

     O Epílogo situa-nos numa prisão siberiana, um ano e meio após o crime e nove meses depois do encarceramento de Raskólnikov. O processo judicial decorreu célere, pois ele confessou tudo e os juízes concluíram que o crime fora cometido em resultado de loucura temporária, pois o criminosos não tirou proveito do posterior roubo, isto é, não matou por interesse material, para roubar. No entanto, Raskólnikov assume que o crime fora praticado pela sua pobreza e desamparo, pelo desejo de assegurar os primeiros passos na carreira. A sentença foi condicionada por diversas atenuantes: o seu estado doentio e desorientado no momento do crime; o assassínio fortuito e não planeado de Lisaveta; a confissão espontânea do ato; o seu passado humano e caridoso, revelado por Razumíkhin; um ato de heroísmo revelado pela mãe da ex-namorada, já falecida. Resultado: oito anos de trabalhos forçados de segundo grau.

     A mãe adoece e entra num estado de quase loucura, enquanto Rasumíkhin a leva e a Dúnia para morar numa pequena cidade perto de Petersburgo. Sónia segue-o para a Sibéria.
     Dois meses depois da partida, Dúnetchka e Razumíkhin casaram-se, numa cerimónia triste e modesta. Pouco tempo volvido, Pulkhéria Aleksándrovna morre.
     Sónia e o casal trocam cartas uma vez por mês, onde aquela relata secamente os factos ocorridos com Raskólnikov e nada sobre o seu estado de espírito ou projetos, apenas o grande abalo sofrido ao conhecer a nova da morte da mãe: ensimesmamento e indiferença relativamente ao presente e ao futuro. Sónia encontra-se regularmente com Raskólnikov, a quem fornece dinheiro para chá por a comida ser intragável, e trabalha como costureira, tendo conseguido que ele fosse protegido pelas autoridades prisionais. Repentinamente, a notícia de que adoeceu, de orgulho ferido, por a sua consciência não ver no crime qualquer erro ou culpa e não ser capaz de qualquer arrependimento. Enquanto os outros presidiários o odeiam, adoram Sónia, que lhes escreve as cartas destinadas aos familiares..
     Quando Raskólnikov tem alta da enfermaria, é informado que Sónia adoecera e estava de cama, o que o deixa preocupado e pede a alguém que vá saber dela.
     Numa manhã em que vai trabalhar para a margem do rio, surge, repentinamente, Sónia e, subitamente, ele lança-se aos seus pés: ama-a. E é esse amor que os irá resgatar a ambos e fazer encarar os sete anos que faltam cumprir de pena como "apenas sete anos", sem pressentirem que este princípio de felicidade será confrontado com grandes provas futuras.
     Afinal, é o amor que vai salvar estas duas almas infortunadas - um assassino e uma prostituta -, que vai resgatá-las e dar-lhes a oportunidade de uma nova vida.
     

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

"Angústia para o Jantar", Luís de Sttau-Monteiro

     O que levará Gonçalo, um empresário rico e burguês, a encontrar-se para jantar com António, empregado de escritório e pobre, sempre ao dia 15 de cada mês, se nada têm em comum senão terem sido, há mais de 30 anos,  colegas no liceu? Um mero hábito que se adquiriu? Uma forma de mostrar que mantém as amizades de tempos longínquos?
     Gonçalo, de 55 anos, casado com Teresa, tem uma amante, Alexandra, que por sua vez possui o(s) seu(s) amante(s). Seguem-se algumas reflexões do narrador: sobre o provincianismo domingueiro, sobre o machismo (o porteiro que passou a manhã sentado, a ler o jornal, enquanto a mulher varria a casa, limpava e fazia a comida, e come a carne toda, enquanto ela e os filhos apenas batatas fritas).
     Casualmente, num domingo em que ficara só porque Gonçalo, como de costume, janta com a família, Alexandra e António encontram-se num bar e ela, por estar só, leva-o a jantar em sua casa, onde António descobre uma fotografia de Gonçalo e se apercebe de que se trata da amante deste. Os dois acabam por ter relações sexuais, porém, a meio da noite, curada da bebedeira, ela expulsa-o de casa, enojada do que acabara de fazer. Tempos depois, alguém conta a Gonçalo que viu a amante com um homem horroroso num bar e que saíram juntos.
     A sociedade a que Gonçalo pertence caracteriza-se pela hipocrisia, fingimento e vacuidade. As mulheres são, culturalmente, vazias; tudo fazem para manter o seu "status" social e económico, mesmo suportar "com elegância" as amantes dos maridos, quando não são elas que os traem; nada fazem de útil; são sustentadas pelos maridos, sem os quais nada saberiam fazer para se sustentarem a si mesmas.
     O filho de Gonçalo, Pedro, de 24 anos, envolve-se num grupo de contestação ao regime político. O pai só consegue "falar-lhe" através de carta.
     António desloca-se ao apartamento de Alexandra na esperança de voltar a dormir com ela, mas é humilhado e expulso. Com medo, no entanto, que o homem conte a Gonçalo o que se passou, a mulher conta ela mesma ao amante o sucedido. Gonçalo "perdoa-lhe", pois vê ali uma oportunidade para, daí a dois ou três meses, a descartar.
     António sofre de uma doença fatal. Teresa entrega ao filho a carta escrita pelo pai e constata que ela e o filho vivem e sonham com mundos muito diferentes. Alexandre parte em busca de novo amante.
     Gonçalo, para afastar o filho das "ideias revolucionárias" que persegue, decide convidá-lo para o próximo jantar com António, tencionando humilhar, destruir este aos olhos do filho, para que veja quão insignificantes são os "tipos com quem [Pedro] anda metido".
     Durante o jantar, em que Gonçalo tudo faz para conseguir humilhar António aos olhos de Pedro, ficamos a saber a forma como se conheceram: António era gozado, no liceu, pelos colegas por causa do seu aspeto franzino. Um dia vinga-se de um deles atirando-lhe uma pedrada e esconde-se. Os outros alunos acabam por o descobrir, escondido atrás de um muro, fazem uma roda e assistem, em êxtase, à sova que o "apedrejado" lhe aplica. Pouco depois de a sova ter terminado, Gonçalo vem ao seu encontro. No dia seguinte, depois da primeira aula, este sobe ao estrado e afirma que quem voltar a importunar António terá de se haver com ele. Ao refletir, nesse episódio, compreende que Gonçalo o defendeu apenas para pôr à prova a sua força e não por considerar que não se deve abusar de alguém mais fraco.
     No final do jantar, a humilhação de António é total.
     Esta personagem morre, no entanto a secretária de Gonçalo recebe um telefonema de um desconhecido, lembrando-o da necessidade de marcar na agenda o jantar do dia 15. Ele desconfia que será Alexandra a vingar-se de a ter deixado, por isso decide comparecer, fazendo-se acompanhar por uma nova pega, para fingir que a substituiu e nunca mais pensou nela. Porém, afinal, quem está à sua espera é Pedro: "Perdi a batalha. (...) porque estou fora do meu tempo e porque não são as armas que dão a vitória aos vencedores. Quem vence as batalhas é quem está dentro do seu tempo.".

"Kit Carson", Edmund Collier


     Kit Carson é um jovem que vive na ânsia de caçar e viver aventuras nas Montanhas Rochosas. Durante um incêndio, perde o pai na sua juventude e passa a trabalhar na loja de um ferreiro. No entanto, foge daí e junta-se a uma caravana que se dirige para o Oeste. Aí, fica sozinho na cidade de Taos, vivendo miseravelmente, até que se junta a um grupo de caçadores e se torna um caçador experimentado. Numa escaramuça do grupo de Kit com os índios, a sua valentia acaba por lhe granjear o nome de Vih'hui-nis, isto é, Pequeno Chefe, numa grande demonstração de respeito por parte dos índios.
     Pouco tempo depois, Kit casa-se com uma jovem índia chamada Relva Cantante, com quem tem uma filha, Adelina. Entretanto, o negócio da pele de castor entra em decadência, por isso vai trabalhar para um homem de nome Charlie Bent, caçando búfalos e protegendo dos índios a pista de Santa Fé, onde socorre inúmeras caravanas. Nos entrementes, morre Relva Cantante.
     De seguida, ganha bastante dinheiro ao chefiar uma expedição de um homem de nome Frémont e casa com uma mulher, Josefa, em Taos. E, de façanha em façanha, a sua fama vai-se alastrando pelo Oeste.
     Quando os EUA declaracam guerra ao México, Carson participa nela e mais uma vez destacam-se as suas qualidades de bravura e de comando de homens, nomeadamente no episódio da batalha de S. Pascoal.
     Anos volvidos, é nomeado agente para ajudar a estabelecer a paz entre os índios e os colobonos brancos que diariamente se deslocavam para a Califórnia.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Notícias da quadra

Uma prenda de Natal


"Relatório Minoritário", de Philip K. Dick


     Os Estados Unidos irradicaram quase o crime, graças a um sistema inovador de prevenção, denominado Precrime, cujo autor é John Anderton. E é justamente no dia em que este está a explicar ao seu novo assistente, Witwer, o complicadíssimo funcionamento daquele sistema que o seu próprio nome é expedito pelo sistema informático: John Anderton irá matar um homem, Leopold Kaplan, general reformado do Exército da Aliança do Bloco Ocidental.
     Quando Anderton se prepara para fugir, é levado sob ameaça de uma arma, à presença de Kaplan. Aí, Anderton revela pensar tratar-se de um embuste para o afastar da agência e ser substituído pelo novo assistente. E, de facto, é difundido um comunicado em que é solicitada a entrega do potencial homicida John Anderton ao Comissário Witwer.
     Quando é transportado para a polícia no carro de Kaplan, este sofre um violento acidente e Anderton é retirado do seu interior por um misterioso homem, de nome Fleming, que lhe confirma tratar-se de uma cilada, da autoria da mulher de Anderton. O homem fornece-lhe falsos documentos e aconselha-o a permanecer oculto nos próximos sete dias.
     Através da TV fica a saber que, dos três, apenas duas mutantes previram o seu crime, pelo que o seu interesse se volta todo para a obtenção do relatório do terceiro mutante, o relatório minoritário.
     Com a ajuda de Page introduz-se no edifício e obtém uma cópia do relatório que o inocenta, mas é surpreendido pela mulher, em cuja nave partem os dois. Ela tenta provar-lhe que ele tem de ser detido para que a Precrime continue a funcionar. Caso prove a sua inocência, isso significará o descrédito da polícia. Assim, Anderton deverá sacrificar-se pelo bem de todos, sacrificar a sua segurança pessoal pelo sistema. Lisa, a mulher, aponta-lhe uma arma e obriga-o a regressar à polícia quando intervém um terceiro passageiro da nave - Fleming. Este controla a situação e pretende assassinar Lisa, sufocando-a, mas Anderton põe-no inconsciente e descobre que é um elemento da Liga Internacional de Veteranos, organização dirigida por Kaplan. Anderton decide então entregar-se a Witwer.
     A ordem de prisão é anulada e Anderton explica que tudo não passou de um esquema montado por Kaplan para restaurar o poder e a influência do exército, graças ao descrédito do Precrime. A estratégia consiste em provar publicamente, através do relatório minoritário, que o sistema tem andado a prender inocentes e em exigir o desmembramento da polícia.
     A solução para o evitar consiste, segundo Anderton, em assassinar Kaplan. E, quando este, está a expor publicamente a sua tese, pega no relatório minoritário, vacila e é atingido a tiro por Anderton.
     A explicação do caso surge quando este e a esposa se preparam para partir em direção a Centaurus X. Os três relatórios foram elaborados em diferentes dimensões temporais. No primeiro, Anderton sabia da conspiração de Kaplan e matava-o de seguida; o segundo baseou-se no primeiro e no conhecimento que Anderton tinha da informação do primeiro e de que o seu único objetivo era conservar a sua posição e não matar Kaplan: no caso do último, Anderton percebera qual era, realmente, o jogo de Kaplan e decidira, efetivamente, assassiná-lo. Isto é, o segundo relatório anulou o primeiro; o terceiro, o segundo; o terceiro era o relatório válido, pois, após este, não apareceu outro a contrariá-lo.

Postal de Natal (XXX)


sábado, 23 de dezembro de 2017

Postal de Natal (XXVIII)


"A Ilha do Tesouro", de Robert Louis Stevenson


     A obra relata as aventuras do jovem Jim Hawkins em busca do tesouro do capitão pirata Flint, em pleno século XVIII.

     Certo dia, aparece na "Almirante Benbow", uma hospedaria do pai de Jim (que falece pouco depois), um velho pirata, o capitão Bill, já muito doente, que acaba por morrer volvido pouco tempo. Ao revistar a sua arca, para o rapaz e a mão se ressarcirem do que o velho pirata lhes devia, apossam-se de um embrulho de oleado que contém, sem que ele o saiba de imediato, o mapa de um tesouro.
     O morgado Trelawney parte de imediato para Bristol, no intuito de equipar um barco. Acompanhado de Jim e do Dr. Livesey, inicia viagem no "Hispaniola", juntamente com o capitão Smollett e Long John Silver, o cozinheiro que perdeu uma perna e que ajuda o morgado na composição da tripulação do barco.
     Silver revela-se um ótimo tripulante e é adorado e elogiado por todos até ao dia em que Jim, escondido dentro do barril das maçãs, escuta um diálogo em que aquele participa e fica a saber que era o quartel-mestre do capitão Flint, que a maior parte da tripulação do barco por ele arregimentada é constituída por piratas do mesmo Flint e que estes se preparam para massacrar os demais tripulantes, mal encontrem o tesouro. Entrementes, chegam à ilha.
     Conhecedores da traição que se prepara, o capitão Smollett, o morgado e o Dr. Livesey decidem dar uma folga aos marinheiros na ilha, ficando apenas os fiéis ao capitão e meia dúzia de piratas no navio. Jim acompanha os desembarcados que, já na ínsula, assassinam dois marinheiros que se mostram renitentes em trair o comandante do barco. Jim, pensando que seria a próxima vítima dos piratas, foge para o interior da ilha e encontra Ben Gun, um homem que vive nela há três anos. A sua história, narrada em analepse, é simples: fazia parte da tripulação do temível Flint na época em que este enterrou o tesouro naquele local, tendo assassinado os seis piratas que o acompanharam, para ninguém, exceto ele mesmo, conhecer a sua localização. Vivos ficaram somente ele, Ben, Billy Bones, o imediato, e Long John, o contramestre, que haviam permanecido no navio e a quem Flint jamais revelou a localização do tesouro. Anos depois, Ben passou pela ilha noutro barco e convenceu os companheiros a procurarem-no, porém, como não o encontraram, foi abandonado na ilha.
     Entretanto, no barco, o capitão e os seus companheiros encurralam os piratas que permaneceram a bordo e fazem algumas viagens de canoa entre o navio e o fortim da ilha, construído há anos por Flint, transportando víveres, armas e munições, necessários à sua sobrevivência, mas a última viagem corre mal e o transporte afunda-se, perdendo-se toda a carga que transportavam. Com eles viaja um pirata que se passa para o seu lado. Já a salvo no fortim, desenvolve-se uma refrega entre os dois partidos, tendo caído dois amotinados e Redruth, o velho servidor do senhor Trelawney. Ao princípio da noite junta-se-lhes Jim.
     Ao raiar da manhã seguinte, Silver, agora capitão dos amotinados, vem ao fortim apresentar uma proposta ao capitão Smollett: o mapa do tesouro em troca de serem transportados para o "Hispaniola" e desembarcados num local à sua escolha, ou, em alternativa, se desejarem permanecer na ilha com receio da vingança de alguns dos piratas, (d)a divisão das rações com eles e a promessa de dar conta da sua situação ao primeiro barco que encontrar. Smollett contrapõe: os piratas rendem-se, são presos e conduzidos de volta a Inglaterra, onde serão julgados com justiça, ou então aniquilá-los-á. A resposta de Silver é fulminante: ataca o fortim. Nesse ataque, perecem cinco piratas e Joyce, ficando feridos Smollett e Hunter, que acaba por falecer pouco depois.
     O Dr. Livesey abandona o local e parte ao encontro de Ben Gun, enquanto Jim procura encontrar o "barco" construído por Ben e com ele ir em busca do "Hispaniola", para lhe cortar as amarras e o deixar à deriva no mar.

     Após algumas horas de errância, Jim desperta no seu caiaque, próximo da Ilha do Tesouro e não muito distante também do "Hispaniola". Na sequência de diversas peripécias, consegue subir a bordo do barco e tomar conta dele, livrando-se da ameaça que Israel Hands constituía.
     Quando o jovem regressa a terra, uma grande surpresa aguarda-o: o fortim foi tomado pelos piratas (apenas restam seis) e ele é feito seu prisioneiro. É-lhe dado então a escolher: ficar com eles ou a morte. O rapaz resume-lhes toda a série de contrariedades que os piratas sofreram e apresenta-se como seu autor. Estes querem liquidá-lo de imediato, mas Silver opõe-se-lhes e, enquanto os restantes piratas se reúnem, o cozinheiro, agora capitão, diz a Jim que o protegerá se este o livrar da forca. E tudo porque se viu subitamente sem barco e sem tesouro. Da reunião dos piratas resulta a decisão de deporem Silver do seu posto de comando. No entanto, rebate argutamente os quatro factos de que é acusado e acaba aclamado pelos companheiros, nomeadamente após lhes apresentar omapa do tesouro que o Dr. Livesey lhe dera.
     Na manhã seguinte, recebem a visita do médico, que vem fazer uma ronda entre os piratas, para aferir do seu estado de saúde.
     Os piratas partem em busca do tesouro e, junto a um pinheiro, encontram o esqueleto de um marinheiro disposto numa posição invulgar: direito, os pés apontados para um lado, as mãos acima da cabeça as de um mergulhador, viradas a direito na direção oposta. Concluem que se trata do pirata Allardyce, um dos seis que Flint matou, colocado ali para servir de indicador: acertou-o com a bússola, de forma a o corpo apontar a direito para a Ilha do Esqueleto e a bússola para E.S.E. e uma quarta por E. A referência a Flint por ocasião da descoberta do esqueleto deixa os piratas apavorados. Quando, a meio do bosque, ouvem uma voz entoar a sua cantiga preferida, o terror invade-os. Segundos depois, a mesma voz repete as últimas palavras do terrível pirata antes de morre. O único que mantém algum controle sobre si mesmo é Silver, que consegue acalmar os companheiros. De tal forma tem êxito o seu auto-domínio que os piratas chegam à conclusão que a misteriosa voz não é de Flint, mas de Ben Gunn.
     Por outro lado, a aproximação ao tesouro traz de novo à superfície o verdadeiro Silver, que dá mostras de ter já esquecido a promessa feita quer a ameaça do Dr. Livesey.
     Pouco depois os piratas encontram finalmente o esconderijo do tesouro, só que já não há lá nada. Silver muda imediatamente de plano e passa uma pistola de dois canos para as mãos de Jim, enquanto os outros piratas se lançam para dentro da casa e começam a escavar com as mãos, mas apenas encontram uma moeda de dois guinéus, o que os faz voltarem-se para Silver. No entanto, três disparos saem do meio das sebes (médico, Gray e Ben Gunn) e Silver dispara também a sua pistola, liquidando dois dos piratas, e lançam-se de seguida em perseguição dos restantes três.
     Os perseguidores abrandam a sua marcha e o médico aproveita para resumir o que sucedera. Ben, ao vaguear, solitário, pela ilha encontrara o esqueleto e o tesouro e escondera-o numa caverna da ilha, dois meses antes da chegada do "Hispaniola". Quando lhe relatou este segredo, o Dr. Livesey entregou a Silver o mapa, já inútil, e tudo o mais, de modo a mudar-se em segurança do fortim para o monte dos dois picos e assim conservar o tesouro e ficar livre da malária. No dia em que Silver e os companheiros partiram em busca do tesouro, enviou Ben para os atrasar, aproveitando-se das superstições dos antigos camaradas. Assim, quando chegaram ao local do tesouro, já o médico e Gray estavam emboscados à sua espera.
     Chegados aos escaleres, desfazem um e partem no outro em direção à Angra Norte, em cuja foz encontram o "Hispaniola" à deriva. Deixam Gray de guarda ao barco e partem em direção à caverna de Ben Gunn.
     Na manhã seguinte, iniciam o transporte do tesouro para o navio, tarefa que se arrasta por vários dias. Finalizada, partem, deixando na ilha provisões, medicamentos, pólvora, chumbo e outras utilidades para os três piratas.
     Volvidos alguns dias e peripécias, atracam num porto da América Espanhola, onde se veem livres de Silver, que lhes foge com a ajuda de Ben, levando consigo um saco de cerca de 400 guinéus. A fuga do pirata deixa-os, no fundo, satisfeitos por se verem livre dele. Nesse porto, angariam alguns tripulantes e fazem um excelente resto de viagem até Bristol, onde dividem o tesouro entre si.
     Presentemente, o capitão Smollett está reformado; Gray, já casado e pai, estuda o seu ofício e é imediato e sócio de um navio de quatro mastros; Ben Gunn levou mil libras, que gastou em dezanove dias, voltou a pedir esmola, foi porteiro e agora desenrasca-se como cantor de igreja aos domingos e dias santos; de Silver não houve mais notícias.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

"Rosa Tatuada", de Tennessee Williams


     A peça é antecedida por um vasto conjunto de notas de produção do autor sobre o local da ação (aldeia situada na Costa do Golfo, entre Nova Orleães e Mobile), os habitantes (maioritariamente sicilianos), a iluminação, o cenário, o céu, a religiosidade do ambiente, as personagens, os espaços interiores...

Ato I

Cena I

     Diálogo entre Serafina e Assunta (uma velha curandeira que pratica bruxaria): a primeira afirma que soube que tinha gerado novamente na própria noite da conceção, pois a meio dela acordou com uma dor ardente no seio esquerdo e viu nele a rosa tatuada do marido. Deu um grito e o esposo acordou. No entretanto a rosa desaparecera.
     Rosário tem um camião de transporte de bananas, mas por baixo destas transporta contrabando, com o qual obtém tanto dinheiro que em breve Serafina não necessitará mais de trabalhar como costureira. Por outro lado, aquela será a última noite em que fará contrabando. Depois comprará um camião de 10 toneladas e trabalhará por conta própria, na América, esperando-a uma nova vida com todas as comodidades e modernismos tradicionalmente associados ao estilo de vida norte-americano.
     Entra em cena Estelle, que lhe vem pedir que faça uma camisa para o "seu homem" para o dia seguinte, data em que fará anos que se conheceram. Aquela acaba por ficar sozinha na sala e pega na fotografia de Rosário, atirando-a para dentro da mala.
     Esta cena inicial (que não obedece ao esquema tradicional de divisão das peças teatrais) está prenhe de referências a crenças, maus olhados... e de presságios de tragédia.

Cena II

     De madrugada, várias personagens agrupam-se em frente à casa de Serafina para lhe comunicar a morte de Rosário.

Cena III

     Serafina perde o bebé e encontra-se muito débil. Rosário foi baleado e o seu camião sofreu um acidente e começou a arder, pelo que o seu corpo foi carbonizado. Ora, precisamente o destino do corpo gera um conflito religioso: Serafina quer cremá-lo, porém o padre De Leo opõe-se, argumentando que se trata de um ato pagão, pois a mulher deseja a cremação para conservar as cinzas em casa.
     Surge novamente em Estelle, afinal amante de Rosário, com um ramo de flores para se despedir do corpo, mas é agredida pelas carpideiras.

Cena IV

     Uma manhã de julho, três anos depois: um grupo de mães protesta em frente à casa de Serafina, indignadas com a sua demora na entrega dos vestidos de formatura das filhas.
     Rosa, sua filha de 12 anos, tem um namorado, um marinheiro que conheceu no baile do liceu, por causa do qual a mãe lhe fecha os vestidos, para que a filha não possa sair de casa, daí que ande sempre nua e grite pela janela às mulheres que deem um recado a Jack.
     Ouvem-se gritos dentro de casa e Serafina aparece à porta, desmazelada, suja, desarranjada: Rosa cortou o pulso. No entanto, tratou-se apenas de um corte superficial. A pedido de Miss York, uma velha professora, Serafina (que, após a morte do marido, não mais vestiu um vestido e saiu à rua e conversa com as cinzas dele como se fosse vivo) entrega-lhe a chave do local onde estão guardados os vestidos da filha, que faltou inclusive aos exames por causa da loucura da mãe, motivada pelo pedido de Rosa para que permitisse que Jack viesse a sua casa, para  a mãe o conhecer.
     Serafina, no estado deplorável em que surgiu à porta, "faz uma cena" em frente ao liceu que envergonha Rosa, afinal uma jovem de 15 anos, meiga, doce e excelente aluna.

Cena V

     Bessie e Flora, dois "espantalhos de meia idade" devassos, vão buscar uma blusa à modista, que não a acabou, todavia, por ter estado ocupada com os vestidos para o baile e diz não ter tempo no momento para a fazer, pois tem de ir assistir ao baile da filha. No entanto, acaba por terminar a peça de vestuário porque não tem licença e as duas mulheres ameaçam denunciá-la por essa ilegalidade. É evidente a crítica do dramaturgo, centrada na denúncia da exploração e das deficientes condições de vida dos imigrantes italianos nos EUA).
     Serafina viveu os doze anos de casamento e os três de viúva convencida da fidelidade do marido e mostra nesta cena a crença num amor único e absoluto, um amor idealizado mas verdadeiro. Flora, para a humilhar, declara que Rosário foi amante de Estelle durante mais de um ano. Serafina reage, expulsando-a à vassourada.

Cena VI

     Esta cena dá conta do estado de espírito de Serafina após a facada recebida: indiferença, alheamento, estupefacção, desilusão com o mundo.
     Várias outros acontecimentos têm lugar nesta cena: o primeiro encontro entre Serafina e Jack; a descrição do baile, um grande triunfo de Rosa (recebeu o diploma, um prémio e recitou versos); um diálogo a sós entre Jack e Serafina (no qual é visível a preocupação com questões de honra feminina, com questões religiosas, a moral tradicional e conservadora siciliana, em contraste com um certo liberalismo da sociedade americana); o contraponto entre a oferta do presente de formatura e o desinteresse e alheamento de Rosa pela oferta, por causa do chamamento para o piquenique.
     A cena termina com Serafina a obrigar Jack a ajoelhar frente a Nossa Senhora e a jurar respeitar a honra da filha.


Ato II

Cena única

     Serafina surge novamente desmazelada, suja, despenteada, apenas em roupa interior, e o padre De Leo adverte-a de que ergueu um altar idólatra em casa e adora uma caixa de cinzas, daí ter-se confinado a uma situação de (auto)reclusão e abatimento. Faz-lhe notar que ainda é uma mulher jovem, capaz de refazer a sua vida. Ela contrapõe o seu amor dedicação, exclusivo, diariamente expresso através de gestos apaixonados, ao das outras mulheres, que não sabem cativar os seus homens, não conservam a chama permanentemente acesa e por isso os perdem para as amantes. É esta a razão por que não consegue crer na traição de Rosário. De seguida, questiona o padre sobre se o marido, durante a confissão, lhe terá revelado o nome da amante, ao que ele contrapõe precisamente o segredo do ato confessional.
     Posteriormente, entra em cena Álvaro, um rapaz de 25 anos, simpático e um pouco apalhaçado e desajeitado. Vem discutir com um caixeiro-viajante que tenta impingir um artigo a Serafina por o ter atirado para a valeta e o insultado. O desprezo pelos estrangeiros fica bem patente no tratamento de Macarroni e Spaghetti com que o caixeiro presenteia Álvaro. Será aquele o responsável pelo despedimento posterior deste, ao fazer queixa dele ao patrão.
     Álvaro entra em casa de Serafina por causa da joelhada que o caixeiro lhe deu, acabando ambos a chorar. Ela, notando-lhe o casaco roto, oferece-se para lho coser. O rapaz mostra-se preocupado com as ameaças do caixeiro, já que tem três pessoas cujo sustento depende de si. Além disso, não estão naturalizadas nem têm cartão de cidadão, e o patrão já o tinha advertido de que o despediria se voltasse a envolver-se em zaragatas.
     Serafina repara então em duas características de Álvaro que o assemelham ao ex-marido - o corpo e o facto de conduzir um camião de transporte de bananas - e a partir daí desenvolve-se um diálogo pleno de subentendidos em que fica bem patente um desejo latente que os vai aproximando.
     Por fim, a mulher confidencia-lhe o episódio da rosa tatuada na noite em que concebeu o filho abortado e Álvaro telefona ao patrão, para lhe justificar o atraso, mas acaba despedido em razão da queixa do caixeiro-viajante. Por falta de luz natural, Serafina não tem possibilidade de coser o casaco, por isso empresta-lhe uma camisa cor-de-rosa que lhe tinha sido encomendada por Estelle para Rosário. Os dois acabam por aprazar um encontro para essa noite.


Ato III

Cena I

     Serafina surge em cena envergando um vestido e uma rosa enfeitando o cabelo. Também Álvaro se apresenta bem arranjado, com uma caixa de chocolates e uma rosa tatuada no peito, facto que causa grande perturbação nela. O clima amoroso esfria quando, sem se aperceber, ele deixa cair do bolso um preservativo.
     O diálogo prossegue tumultuoso e é chamado à colação o nome de Estelle. Ato contínuo, a mulher segura uma faca e chama um táxi para ir matar a ex-amante de Rosário, contudo Álvaro Mangiacavallo acalma-a, retira-lhe a faca e telefona a Estelle, solicitando-lhe a confirmação da relação adúltera com o falecido.
     Serafina fica possessa de início. Depois toma uma resolução: diz-lhe que finja ir-se embora, leve o camião para longe do olhar da vizinhança e, seguidamente, regresse e entre pela porta das traseiras, que ela deixará aberta.
     A cena termina com o início de uma noite de amor entre ambas as personagens.

Cena II

     Rosa e Jack dialogam enquanto escutam os gemidos de Serafina no leito amoroso com Álvaro, pensando que a mãe está unicamente a sonhar a prática do ato sexual com o pai. Rosa deseja que o marinheiro faça amor consigo, mas ele recusa, em virtude da idade dela, da promessa feita a Serafina perante a imagem de N. Senhora e também da longa viagem que está prestes a empreender. A jovem marca um encontro entre os dois para a tarde seguinte na estação de autocarros.

Cena III

     Rosa dorme no sofá apenas em combinação. Álvaro depara aí com ela e fica fascinado com a beleza da jovem. Fala alto sem se aperceber, acordando-a, e a rapariga grita. Serafina acorre de imediato e bate furiosamente nele.
     Álvaro acaba escorraçado pela mulher, que inventa uma série de mentiras para se desculpar perante a filha. Rosa, porém, não se deixa iludir e chega a tratar a mãe de forma cruel.
     A jovem sai ao encontro de Jack. Entra em cena Assunta, que encontra a urna das cinzas no chão, partida, mas delas nada - o vento levou-as.
     A voz de Álvaro faz-se ouvir, o que provoca os risos trocistas das vizinhas de Serafina por causa de estar sem camisa. Ela vem à janela e atira-lhes a camisa cor-de-rosa, que as mulheres, rindo, vão passando de mão em mão.
     Em cena ficam apenas as duas mulheres. Serafina diz a Assunta que acabou de sentir o ardor da rosa no peito, o que significa que gerou novamente. De seguida, caminha na direção da voz de Álvaro, gritando-lhe: "- Vengo, vengo, amore!".
     Esquecido (definitivamente) o amor obsessivo e doentio por Rosário, Serafina renasce para o amor e para a vida.

Anexo

     A palavra anexo é usada de forma errada com alguma frequência.

     Quando ela surge numa frase como adjetivo com função adverbial, não se constrói com a preposição em: "Segue anexo o documento solicitado.".

'Ciclo vicioso' ou 'círculo vicioso'?

     A expressão correta é círculo vicioso.

     De facto, ela designa uma sucessão de acontecimentos que se repetem e voltam sempre ao ponto inicial.

     Por sua vez, "ciclo" designa uma série de fenómenos que se sucedem e repetem de forma ordenada, mas não necessariamente circular.

"Joe le Taxi", Vanessa Paradis



1987

Roubo de "e-mail"?


     Aparentemente, nada está fora do alcance de um bom hacker.
     Se é verdade que ninguém gosta de ser confrontado com uma devassa, muito menos de algo tão importante como o e-mail.
     Troy Hunt, um especialista em segurança na Internet, criou um sítio através do qual é possível verificar se o nosso e-mail foi hackeado.
     Para saber se tal aconteceu, basta aceder ao sítio (clicar no link acima) e colocar nele o e-mail e ficar-se-á a saber de imediato. Caso se pretenda ser avisado em caso de roubo, basta subscrever as notificações e receberemos um e-mail a avisar de que fomos hackeados.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Regência do nome "rastreio"

1. O nome «rastreio» rege a preposição «de», dado que deriva do verbo «rastrear», que é transitivo. Sucede que os nomes derivados de verbos (nomes deverbais) têm geralmente a sua regência construída com aquela preposição:
          - O rastreio do cancro é muito importante.

2. «Rastreio» pode também reger a preposição «a»:
          - A importância do rastreio ao cancro do pulmão é ignorada pelos fumadores.

     O uso desta preposição neste caso deve-se ao facto de subentender «o rastreio (que é feito) a alguma coisa».

Postal de Natal (XXVI)


Discurso e gramática no 'Livro do Desassossego'

1. O Livro do Desassossego é uma sucessão de fragmentos desconectados, em que a sequência da paginação não é indicativa da ordem de leitura. No entanto, Pessoa atribui-lhe a designação de «livro».
Mas um «livro», no sentido comum, é um macrotexto. Como tal, seria de esperar encontrar aí uma malha complexa de tópicos entrosados, em progressão rumo a uma conclusão.
Ora, o Livro do Desassossego tem reconhecidamente um carácter diarístico – mais marcado numa fase de redação tardia (a partir de 1930) e, portanto, o que temos é representação fragmentária, desordenada, heterogénea de um mundo interior.
Este é um «livro» como um diário é um livro, um livro de anotações. Mas o que é importante notar é a conformidade desta fragmentação do discurso com a própria representação do eu (ou dos vários eus).

Há algumas passagens de carácter metatextual em que isso mesmo é explicitado:
. «(…) eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também» (p. 105).
. «Imperfeito» significa «não acabado»/«não terminado»/«incompleto»: discurso e sujeito representado são uma e a mesma coisa.
. «Este livro é um gemido» (p. 333).
. «E pergunto (...) de que me serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei como minhas, de emoções que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exércitos que são, afinal, papéis colados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais» (p. 353).

Paralelamente, não é difícil fazer o levantamento de trechos que apresentam uma forte coesão interna: a uma frase genérica (em jeito de mote), que encabeça um fragmento, segue-se uma elaboração (paráfrase), onde tomam assento diferentes atos de composição textual:

. explicação/exemplificação:

– ativação de conector: «O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela» (p. 174).

– retoma por repetição lexical ou recuso a expressões correferenciais: «O entusiasmo é uma grosseria./A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma violação dos direitos da nossa insinceridade. (...) Exteriorizar emoções é mais persuadirmo-nos de que as temos do que termo-las» (p. 200).

– retoma através de quantificadores universais: «Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita» (p. 274).

. exemplificação/particularização: «Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência» (p. 198).

. reorientação: «A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. (...) Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio» (p. 239).

. questionação: «A renúncia é a libertação. Não querer é poder./Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado?» (p. 132).

É exatamente por aqui que se pode entrever alguma unidade macroestrutural: não tanto pela recorrência da estrutura interna de cada trecho, como referi, mas pelas intercorrespondências de crenças e estados (contradições) de alma, como sejam a abdicação da vida e a vivência pelo sonho, a gratuitidade e o poder gerador da escrita, a consciência de si até à autoanulação: «Sou uma prateleira de frascos vazios» (p. 179).


2. Vale a pena, então, debruçarmo-nos sobre o papel destas máximas, que será o de marcação ou separação de cada uma desses fragmentos.

O enunciado genérico redime sob um conceito único características e factos comuns observados em múltiplos objetos singulares e, ao ser proferido, estende esse conceito a uma classe de objetos possíveis.
Atendendo à realização linguística do enunciado genérico, há a assinalar as seguintes características:

• do ponto de vista do léxico:
- seleção de nomes comuns abstratos;
- nomes massivos;
- nomes de carácter hiperonímico;
- expressões de referência a espécie;

• do ponto de vista da sintaxe e da semântica:
- processos de aspetualização (P é sempre verdadeiro);
- dominância do presente simples que faculta a transição de um evento para um estado iterativo, habitual ou estativo (a importância dos enunciados estativos está no facto de estes, ao serem construídos na base de um certo número de ocorrências de um evento, permitem atribuir qualidades);
- advérbios frequenciais;
- ausência de artigo definido; este, quando ativado, implica necessariamente referência a espécie;
- processos de modalização (P é necessariamente verdadeiro);
- modalidade deôntica: produção de um enunciado que se apresenta como incontestável.
- processos de quantificação (X vale por X);
- quantificadores universais;
- pronomes indefinidos;
- frases não finitas;
- 1.ª pessoa plural.

• do ponto de vista da pragmática:
- o carácter normativo: a frase genérica não apela a uma justificação da ordem da estatística; o enunciado genérico tem força de norma.

Alguns exemplos:

. "Tudo o que dorme é criança de novo." (p. 92);
. "Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre." (p. 408);
. "Todos os problemas são insolúveis." (p. 123);
. "Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém." (p. 125);
. "A alma humana é um abismo obscuro e viscoso (...)" (p. 226);
. "A força sem a destreza é uma simples massa." (p. 229);
. "A arte é um esquivar-se a agir (…) " (p. 210);
 " A fé é o instinto da acção." (p. 260);

. "Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã." (p. 403);

. "Conviver é morrer." (p 198);
. "Explicar é descrer." (p.199);
. "Escrever é esquecer." (p.128).

. "(…) a gramática é um instrumento, e não uma lei." (p. 104);
. "Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos." (p. 210).


3. Algumas destas passagens acusam uma reflexão profunda sobre a língua - a que Pessoa/Soares chama de "psicologia verbal" (p. 94). Esta reflexão percorre vários domínios.

. Fonética:
- " Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo - é impossível ocultar-lhes o som - é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente." (p. 158);
- "As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas." (p. 229);
"A palavra é completa vista e ouvida." (p. 231).

. Sintaxe:
. "Há uma relação entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia do senão, do mas, e do porém, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e que parte de amarelo existe no verde azul do céu." (p. 210);
. " (…) o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir o verbos..." (p. 304).
É importante notar que o verbo é a categoria gramatical que apreende linguisticamente um dado estado de coisas como um processo: este dinamismo é essencial à constituição de um enunciado. Para além disso, o verbo, sendo a palavra que mais varia, é fulcral no estabelecimento de nexos coesivos com outros elementos da frase e com outras frases.

. Norma e criação linguística:
- "Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros. (...).
      A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. (...)
      Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e acima da gramática." E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo "super-grammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se." (pp. 103-105).

. Semântica/referencialidade:
- "Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição." (p. 83);
- "Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver." (p. 94).

. Textualidade:
- "A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar." (p. 126);
- "Narrar é criar, pois viver é apenas ter vivido." (p. 163).

Uma narrativa é um texto de orientação presente - passado, regido por nexos temporais-causais. A narrativa não vive só representação da ação, mas sobretudo da criação de referência. Qualquer contador de histórias tenta fazer vingar a ordem sobre a sucessão aleatória de fenómenos. Isso deve-se à alquimia fundamental de transformação do casual em história, ou seja, num esquema de significação inteligível totalizante. A ocorrência singular transforma-se em episódio; constitui-se uma urdidura complexa onde agentes, objetivos, meios, circunstâncias e resultados se harmonizam num todo de significação.


3.1. Há também a relevar outras passagens, que cruzam língua, ideologia, cultura, cognição e arte.

• A produção discursiva enquanto ato interpretativo e criativo que desvela a identidade do indivíduo:
- " Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira." (p. 134);
- "Estremeço se dizem bem. (...) Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. (...) "Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse." (p. 230-231);
- "não sei escrever porque não sei ser." (p. 310).

• Expressão linguística e ideologia:
- "Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociais de moral. Já a palavra "dever" é para mim desagradável como um intruso. Mas os termos "dever cívico", "solidariedade", "humanitarismo", e outros da mesma estirpe, repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de janelas." (p. 161).

• A língua como fonte de cultura:
- "As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e literatura: é, palavras, o que delas fala e fica." (p. 186).

• O homem caracterizado pela faculdade de linguagem:
- "O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer." (p. 185);
- "o que não se pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja possível conseguir em ato ou palavras." (p. 251).


3.2. Esta reflexão sobre a língua é exercitada na própria execução textual do Livro do Desassossego. Há vários momentos que são puros exercícios de estilo ou demonstrações da arte de dizer:

• no plano do léxico:
- "gemedoramente" (p. 265);
- "interiorice" (p. 286);
- "escriturantemente" (p. 310);
- "incompreendedores" (p. 326);
- " delírio intersticiado";
- "Outragem" (p. 413);
- "dramatistas" (p. 450).

• no plano da morfossintaxe:
- "Não durmo. Entre-sou." (p. 245);
- "ubiquito-me" (p. 261);
- "imperfeiçoa-se" (p. 279);
- "retrovei-me" (p. 282);
- "escacharão revoltas, turbilhonarão festas" (p. 289);
- "absurdemos a vida" (305);
- "ergo-me de pensar" (p. 320);
- " Nem sei hoje que porto era, porque ainda nunca lá estive." (p. 444).

• no plano do texto/discurso:
(ensaio de elaboração de um texto informativo /explicativo – uma definição)
- "A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembramos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma." (p.128).


Afinal, as máximas só têm para nos dar aquilo que nós lá pusermos. A máxima "A minha pátria é a língua portuguesa" só diz alguma coisa a quem souber o que está à volta dela e souber (re)conhecer aí o Livro do Desassossego.


* Texto-base sobre o tema de emissão do programa Páginas de Português

Autora: Ana Martins


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