Português: 07/11/20

sábado, 7 de novembro de 2020

Zôjô-ji Temple in Shiba

Kawase Hasui (1925)

Análise de "Ó sino da minha aldeia"

      Este poema foi publicado, inicialmente, em 1914, no número único da revista “A Renascença”, e, em 1925, no terceiro número de “Athena”, datado de 1924, com ligeiras diferenças de pontuação e ortografia entre ambas as publicações. O manuscrito mais antigo do texto integral do poema data de 8 de abril de 1911, mas, na realidade, nasceu um pouco antes.
O poema corresponde ao primeiro de uma série de dois poemas antecedidos pelo título “Impressões do Crepúsculo”, com os quais Pessoa estreou a sua publicação ortónima em poesia portuguesa após o seu retorno da África do Sul.
 
Em 11 de dezembro de 1931, Fernando Pessoa escreveu uma carta a João Gaspar Simões onde, em dado passo, afirma o seguinte: “Nunca senti saudades da infância; nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido direto da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás”. O poeta admite ter saudades apenas das pessoas a quem amou e que queria ainda vivas, mas no dia de hoje, com as idades que teriam agora. Mais à frente acrescenta que as saudades expressas nas suas obras eram “atitudes literárias”, sentidas intensamente por instinto dramático, tendo dado como exemplo deste fenómeno o poema “Ó sino da minha aldeia”.
Em rigor, este poema, longe de ser inspirado na infância de Pessoa, tem a sua raiz em composições dos poetas novecentistas Luís Palmeirim e João de Lemos. De facto, Pessoa inspirou-se nesses poetas menores portugueses. Uma versão inicial do poema, constituída então apenas pelo primeiro verso e pela última estrofe, tem uma dedicatória: “A João de Lemos, mas escrito por Fernando Pessoa”. Vários poemas de Lemos e Palmeirim denunciam essa influência exercida junto do autor de Mensagem na composição de “Ó sino da minha aldeia”.
 
 
Tema: a nostalgia da infância.
 
 
Assunto: o sujeito poético, ser errante, recorda o passado, tempo de felicidade, como um bem perdido e irreparável, encontrando apenas conforto e sentido para a vida no período da infância.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª quadra): Apresentação do tema do poema.
 
2.ª parte (2.ª e 3.ª quadras): Descrição dos efeitos do toque do sino no sujeito poético.
 
3.ª parte (4.ª quadra): Conclusão do poema – associação do som do sino à saudade e ao passado do sujeito poético.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
▪ O sujeito dirige-se, no primeiro verso, ao sino, através de uma apóstrofe e da sua personificação (dado que lhe confidencia os seus sentimentos), interpelando-o. Ao longo do poema, diversos elementos deíticos sugerem a existência de um diálogo entre ambos: os pronomes pessoais de 1.ª pessoa (“me”, “mim”), os determinantes possessivos de 2.ª pessoa (“tua”, “teu”) e as formas verbais na 2.ª pessoa (“tanjas”, “soas”).
 
▪ A presença do nome «aldeia» logo no verso 1 é bastante significativa. De facto, ele poderá simbolizar o espaço da infância, um espaço de intimidade, metáfora da interioridade do sujeito poético.
 
▪ Note-se a presença da hipálage nos dois versos iniciais (“Ó sino da minha aldeia / Dolente […]”), visto que o adjetivo «dolente» se refere ao sujeito poético, que, de facto, sofre, e não ao sino. Este recurso expressivo sugere a intimidade de uma memória que se reativa e que está na origem da saudade.
 
▪ O toque do sino, como se verá na terceira e na quarta estrofes, tem efeitos no sujeito poético, não lhe sendo de forma alguma indiferente. Pelo contrário, atinge-o no âmago: “Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma.”. O sino toca dentro da alma do sujeito poético, lembra-o de memórias de infância. Quer isto dizer que cada badalada desperta no «eu» reminiscências e nostalgia de um passado distante – real ou imaginário: “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”.
 
▪ À medida que o sino toca, acentua-se essa nostalgia do passado e a primeira pancada tem o som de repetida, visto que soa na alma do sujeito poético (vv. 3-4). A aldeia é uma metáfora da interioridade do «eu»: “Cada tua badalada [espaço exterior] / Soa dentro da minha alma” [espaço interior] – traduz uma interação entre a alma e o tempo, que metaforicamente sugere a união do espaço exterior com o interior.
 
▪ O toque do sino estimula a memória do sujeito poético (v. 4), pois fá-lo recordar a sua infância, o passado distante que se associa a um sonho (vv. 11-12). É um eco do passado que, longe de alegrar o «eu», suscita nele a saudade da infância, uma época dourada mas irrecuperável (vv. 15-16). Os adjetivos “dolente” e “calma” (v. 2), que caracterizam respetivamente o toque do sino e a tarde em que o sujeito o escuta, remetem para a durabilidade do som, que não se apaga da sua memória.
 
▪ Na segunda estrofe, o sujeito poético mostra o efeito que o sino, símbolo da dolorosa passagem do tempo, tem em si. Assim, começa por afirmar que as memórias de um passado saudoso assolam a sua alma tão lentamente como a tristeza da vida (versos 5 e 6), comparando, deste modo, a lentidão do soar do sino com o seu próprio estado de espírito caracterizado pela nostalgia. Além disso, à medida que o sino toca, acentua-se no sujeito poético a saudade de tempos passados e “[…] a primeira pancada / Tem o som de repetida”, pois soa tanto no espaço exterior como no interior, isto é, na alma do «eu». Esse seu ecoar instaura nele uma certa melancolia e tristeza.
 
▪ A comparação dos versos 5 e 6 [e a elipse (omissão do adjetivo «lento»)] entre o soar do sino e a caracterização da vida sugere que ambos se pautam pela lentidão, o que indiciará que o tempo pode custar a passar para o sujeito poético, associando-se, assim, à nostalgia, à tristeza e à melancolia.
 
▪ O poeta identifica o toque do sino com o sujeito poético. De facto, a caracterização que é feita daquele corresponde ao seu estado de espírito, daí a tal identificação entre ambos. Assim, tal como o toque do sino, o sujeito lírico sente-se dolente e triste. Por outro lado, o som do toque do sino é-lhe tão familiar que “a primeira pancada / Tem um som de repetida”, ou seja, a primeira pancada tem o som de repetida porque o «eu» já a tinha ouvido no passado. Ao escutá-la, lembra-se do som que ouvia na sua infância, por isso era como se fosse repetida.
 
▪ Na 3.ª estrofe, o sujeito poético compara o sino a um sonho: “És para mim como um sonho”. O toque do sino remete o sujeito poético para um passado distante, o qual não voltará, fazendo, assim, com que essas memórias pareçam um sonho, despertando nele a nostalgia de uma infância perdida; o toque é como um sonho, porque transporta o «eu» para o passado, fazendo parecer aquilo um sonho. O toque ele não ouve não é o físico, mas o do seu sonho.
 
▪ No verso 3 da terceira estrofe, o sujeito poético revela algum inconformismo, devido à constante procura do «eu». O adjetivo «errante» significa sem destino, sem esperança, remete para alguém que vagueia sem rumo ou sem sentido, reforçando a ideia de que só na infância encontra o conforto e o sentido para a vida. Neste caso, o sujeito poético considera-se errante, pois vive numa constante procura do «eu», sofrendo assim de solidão e ansiedade, que deixa transparecer o conformismo e a incapacidade de se encontrar e aceitar algo, sendo feliz.
 
▪ Na 4.ª e última estrofe, o sujeito poético recorre à anáfora e à antítese (bem como à aliteração em /s/) “Sinto mais longe o passado, / Sinto a saudade mais perto”, ganhando consciência de que a inconsciência e a felicidade que experimentou na infância não poderão ser revividas.
 
▪ Isto gera a saudade e a nostalgia de um tempo passado perdido, do único momento de felicidade plena: a infância. A anáfora da forma verbal «Sinto» (vv. 15-16) concorre para enfatizar a frustração e a nostalgia do sujeito poético.
 
 
Retrato do sujeito poético
 
O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pela solidão, pela ansiedade e pela nostalgia do passado da infância, traços sugeridos pelos adjetivos «dolente», «lento», «triste» e «distante», pelos advérbios «longe» e «perto», pelo nome «saudade», pelo campo lexical da tristeza («dolente», «triste», «errante») e da saudade («sonho», «distante», «passado»). Algumas destas características são comuns ao sino, que é dolente, lento, triste e vibrante.
 
 
Formalmente, o poema é constituído por quatro quadras em redondilha maior. O tempo verbal predominante é o presente do indicativo (o tempo encontra-se fragmentado e o presente remete para a vivência passiva do momento, pela recordação saudosista do passado), na 1.ª pessoa (3.ª estrofe, vv. 1-4), que traduz a identificação do poeta com o sujeito poético.
 
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