Português: 15/11/20

domingo, 15 de novembro de 2020

Análise de "Como morreu quen ben"

 
Assunto: o sujeito poético compara-se àquele(s) que enlouqueceu(eram) ou morreu(eram) por não ser(em) correspondido(s) pela mulher amada.
                Assim como morreu infeliz quem nunca foi correspondido pela mulher amada e viu acontecer o que mais receou – a amada cair nos braços de outro –, assim também morre o sujeito poético pelo mesmo motivo.
 
 
Tema: o amor não correspondido / a coita de amor / a morte por amor.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
Na primeira estrofe, o sujeito poético compara-se a um homem indefinido (isto é, não identificado), que morreu porque nunca foi amado – “nunca bem / ouve” (vv. 1-2) – e porque viu a mulher amada fazer algo de que ele tinha medo – “viu quanto receou / dela” (vv. 3-4).
 
A segunda estrofe repete as ideias da cobla anterior: esse homem morreu porque amou uma mulher que nunca lhe correspondeu esse amor – “foi amar / quem lhe nunca quis bem fazer” (vv. 6-7) – e porque Deus o fez ver algo que o deixou triste – “lhe fez Deus ver / de que foi morto com pesar” (vv. 8-9).
 
Na terceira estrofe, o sujeito poético enumera os efeitos da coita de amor: a loucura – “ensandeceu” (v. 11) –, a perda da alegria e do sono (insónia) – “nom foi ledo nem dormiu” (v. 13) –, o sofrimento por algo que viu – “com grande pesar que viu” (v. 12), além da morte, ideia presente em todas as estrofes por intermédio da comparação.
 
Na última estrofe, o «eu» lírico identifica a causa concreta da coita de amor: o outro homem amou uma dama que nunca o amou ‑ “dona que lhe nunca fez bem” (v. 17) – e viu-a com alguém que não a merecia ‑ “e quem a viu levar a quem /a nom valia, nem a val” (vv. 17-18). E tal como este indivíduo morreu de amor, também o sujeito poético morre, pelas mesmas razões. Esta noção é transmitida através de uma gradação (“ensandeceu” “non foi ledo nem dormiu” “morreu”), que mostra os efeitos progressivos da «coita de amor», da indiferença da mulher amada, ou seja, evidencia, de forma gradativa, o sofrimento do sujeito poético.
A estrofe é a sequência lógica da terceira. De facto, esta terminou com o sujeito poético aludindo à morte de amor e a quarta revela a verdadeira razão da morte: a mulher deixou-se levar por quem não a merecia. É o clímax da cantiga.
 
 
Comparação
 
A cantiga assenta numa comparação que é estabelecida entre o sujeito poético e «alguém» não identificado no poema que morreu infeliz porque nunca foi amado pela mulher por quem se apaixonou. De acordo com a última cobla, essa mulher ter-se-á mesmo envolvido amorosamente com outra pessoa que não a merecia.
O sujeito poético não se queixa diretamente da sua senhora, antes recorre a esta comparação, ao exemplo de um homem indeterminado / indefinido («quem»), que teria morrido por não ser correspondido. Desta forma, evita criticar a sua amada pela não correspondência amorosa, respeitando, assim, o código do amor cortês.
 
 
Coita de amor
 
A coita de amor do sujeito poético está bem presente na cantiga. Ela consiste no estado de sofrimento do «eu», motivado pelo facto de o seu amor não ser correspondido, o que leva à expressão do seu lamento, e que pode conduzir à loucura e à morte.
Estas noções são evidenciadas através da repetição das formas verbais do verbo «morrer» - «morreu», «foi morto» (referentes à pessoa que sofre) e «moir’eu» (referente ao sujeito poético -, repetição essa que acentua a tragicidade das consequências do sofrimento amoroso; da repetição do vocábulo «pesar» («com pesar», «gram pesar») e das formulações «quem nunca bem ouve», «quem lhe nunca quis bem fazer», «dona que lhe nunca fez bem», que realçam o amor não correspondido e a queixa constante em relação à mulher amada.
Neste contexto, assume igualmente grande relevância o refrão. Este é constituído por uma apóstrofe dirigida à amada («mia senhor»), por uma interjeição expressiva de dor («Ai») e pelo segundo termo da comparação presente em cada estrofe («assi moir’eu»), que sugere que a morte é um destino fatal. No seu conjunto, o refrão reforça a forma persistente como o sujeito se lamenta, numa espécie de obsessão com a dor e o sofrimento que o atormentam, isto é, totalmente consumido pelo sofrimento amoroso.
 
 
Refrão
. segundo elemento da comparação que é estabelecida em cada estrofe (“Como morreu…” – “assi moir’eu”);
. contribui para reiterar o sentimento do sujeito poético;
. reforça o sofrimento sentido pelo sujeito lírico;
. intensifica a obsessão do «eu» pela sua amada;
. anuncia a morte por amor do «eu».
 
 
Personagens
. o sujeito poético («eu»)
. a dama / a mulher amada pelo sujeito poético («mia senhor»)
. o rival do sujeito poético
. um indivíduo indefinido («quem»), estranho à relação amorosa do «eu» lírico, com o qual este se compara
 
 
Retrato do sujeito poético
está apaixonado pela sua “senhor”, que é casada (foi levada por quem a não merecia, ou seja, presumivelmente o marido);
▪ sofre imenso por causa da indiferença / da não correspondência amorosa da mulher;
o seu sofrimento e dor vão num crescendo dramático, que atinge o desespero e desemboca na loucura e na morte por amor;
vive uma espécie de obsessão relativamente à “senhor”;
deixa antever o seu ciúme ao constatar que a mulher amada foi levada por outro homem;
a loucura motivada pelo amor faz com que o sujeito poético deixe de viver a sua vida e se torne uma espécie de espectador da mesma, sugerindo assim a tal morte psicológica.
 
 
Retrato da «senhor»
 
A caracterização da «senhor» é feita indiretamente. De facto, as suas características deduzem-se a partir das ações da dama invocada na pequena história do homem com o qual o sujeito poético se compara.
Assim, ela:
▪ não é identificável (em obediência ao código do amor cortês), sendo nomeada apenas pela senha «mia senhor»;
é amada pelo sujeito poético (“rem que mais amou” ‑ v. 2);
é indiferente ao sujeito poético e à sua paixão, não lhe correspondendo e nunca lhe fazendo bem (“lhe nunca fez bem” ‑ v. 17);
escolheu um homem que não a merecia [“(…) a viu levar a quem / a nom valia, nen’a val” ‑ vv. 18-19];
por isto, é a causa do sofrimento, da loucura e da morte (por amor) do sujeito poético;
representa um duplo papel na cantiga: é a amada do sujeito poético e, em simultâneo, a esposa do seu marido.
 
 
Género
 
Este poema é uma cantiga de amor:
. o sujeito poético é masculino;
. expressa a sua coita de amor;
. a atitude de vassalagem amorosa;
. a hiperbolização dos sentimentos: a loucura e a morte de amor.
 
 
Relação com a cantiga de amigo
 
Esta cantiga apresenta traços que encontramos também na cantiga de amigo:
. a presença do refrão;
. o paralelismo de construção de estrofe para estrofe:
- “quen nunca bem / ouve da ren que mais amou” (1.ª estrofe);
- “foi amar / quen lhe nunca quis bem fazer” (2.ª estrofe);
- “amou tal / dona que lhe nunca fez bem” (4.ª estrofe);
. o paralelismo semântico: as estrofes, embora existindo uma certa progressão temática, apresentam ideias muito semelhantes (vide desenvolvimento do tema);
. o desenvolvimento da mesma comparação nas estrofes 1, 2 e 4, de conteúdo equivalente.
Por outro lado, esta cantiga de amor diferencia-se de muitas das outras por não conter nenhum elogio explícito às qualidades da «senhor».
 
 
Forma
 
Esta é uma cantiga de amor de refrão, com versos predominantemente octossilábicos, distribuídos por quatro quadras com refrão monóstico, formando quintilhas.
Relativamente à rima, esta é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema rimático abbac / deedc / cffcc / gaagc.
 

Análise de "Todalas cousas eu vejo partir"

 
Assunto: a donzela constata que tudo muda – os homens, os tempos, etc. –, geralmente para pior, exceto o coração do amigo por ela.
 
 
Tema: a mudança.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Tese: tudo muda (para pior), exceto o coração do amigo de a amar.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Desenvolvimento da tese – a mudança no homem:
. de terra
. de estatuto socioeconómico
. de amor
. a constância do amor do amigo
 
3.ª parte (3.ª estrofe) – Confirmação da tese – tudo muda:
. o próprio tempo
. o homem
. a natureza
. exceto o amor do amigo
 

 Desenvolvimento do tema
 
Nesta cantiga de amigo, João Airas de Santiago desenvolve o tema de que tudo passa e só o amor permanece.
De facto, na composição aborda-se a mudança, sendo clara a oposição entre a instabilidade do mundo e a segurança do amor que existe entre a donzela e o seu amigo: tudo muda, à exceção do amor que ele sente por si.
Deste modo, a cantiga estrutura-se da seguinte forma: nos primeiros 4 versos de cada estrofe, a donzela afirma que tudo muda no mundo e, nos dois últimos (incluindo o refrão monóstico), exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário (último verso de cada cobla) [lítotes]: o coração do seu amigo nunca deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçon partir / do meu amigo de mi querer bem.”).
Na primeira estrofe, a partir da observação do mundo, a donzela conclui que tudo muda e nada se mantém igual (“Todalas coisas eu vejo partir / do mud’em como soíam seer” – vv. 1-2 –, ou seja, ela observa que certas coisas e situações deixam de existir como antes existiam, coisas a que estava habituada) e as pessoas deixam de praticar o bem, deduzindo-se que passaram a fazer o mal (vv. 3-4). Esta constatação provoca o espanto do «eu» (“tal tempo vos vem!” – v. 4) relativamente ao tempo (presente) que vive, que pode ser comparado ao passado. De facto, a exclamação do verso 4 sugere que o sujeito poético se espanta por tudo mudar e, principalmente, pelo facto de a mudança se operar em sentido negativo: as pessoas já não fazem o “bem” – como era costume –, daí o espanto. A exceção a esta mudança constante é o amor do amigo por si: ao contrário do mundo e das pessoas em geral, o coração (metonímia que traduz a origem do amor) do seu amigo não deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçom partir / do meu amigo de mi querer bem” – vv. 5-6). Ou seja, o seu amigo não mudará, não deixará de a amar. Note-se que a palavra «coração» é repetida no penúltimo verso de cada estrofe (dobre), repetição que acentua a importância do sentimento amoroso. Este contraste é marcado pela conjunção adversativa «mais» (= «mas»). Ao nível da linguagem, há a destacar o uso da primeira pessoa, que parece centrar o poema numa questão de interesse pessoal: a constância do amor do amigo por si.
A segunda estrofe abre com a referência à mudança no Homem (isto é, no ser humano, em geral): o coração dos homens afasta-se das “cousas que ama” (v. 8), o homem muda da “terra ond’é” (v. 9) e “d’u grande prol tem” (v. 10). Neste passo, o sujeito poético apresenta o (mau) exemplo dos indivíduos que abandonam e se afastam de um lugar onde (“d’u”) vivem com benefícios e vantagens (“gran prol”) – verso 10. Este lugar de onde se parte pode até ser o que é referido no verso anterior (“e parte-s’home da terra ond’é” –, ou seja, a terra onde se vive. Neste passo, está implícita uma comparação antitética entre o comportamento do “home [que] part’o coraçon / das cousas que ama” e o do amigo, que continua a “querer bem” à donzela. Em resumo: ainda que (“pero que”) outros homens deixem de amar, o seu amigo não deverá imitá-los. Nesta cobla, a antítese é marcada pela locução concessiva “pero que” (“ainda que”).
Em suma: o homem afasta-se das “cousas que ama” e fica a saber-se, pela anáfora dos versos 9 e 10, que essas «cousas» são a “terra ond’é” e “a “prol” que possui.
Na última estrofe, nota-se a repetição do verso 1 no verso 13 apenas com a mudança do vocábulo «partir» para o seu sinónimo «mudar», acentuando a ideia de mudança que rodei a dozela, mudança que é global (“tempos”, “o al”, “a gente”, “ventos” e “tod’outra ren”), mas na qual não se inclui o coração do seu amigo. Esta oposição é marcada, mais uma vez, através da conjunção adversativa «mas». O uso da anadiplose «mudar» / «mudam-s” chama a atenção para o fator “mudança”, reforçado pela anáfora dos versos 14 a 16 e pelos polissíndetos. Por outro lado, a rima interna entre «tempos» e «ventos» traduz exatamente a ideia de transitoriedade.
Em suma, de acordo com a terceira cobla, a mudança atinge “al” (tudo) e “tod’outra ren” (todas as coisas).
 
 
Refrão
 
O refrão (juntamente com o penúltimo de cada estrofe) demonstram, por um lado, o otimismo e a alegria da donzela, uma confiança no amor fiel do seu amigo. Através do verso repetido, ela afirma e reafirma uma situação que não deve alterar-se: nada deve mudar e o sentimento amoroso há de permanecer.
Por outro lado, a insistência que o refrão estabelece tem um significado próprio. De facto, à primeira vista, ele diz e repete que o amigo deve manter o coração firme. No entanto, podemos questionar: aquela insistência não quererá dizer também que há alguma insegurança por parte da mulher? Será o coração do amigo capaz de resistir à tendência que em tudo se observa para a mudança?
 

Dimensão moral e filosófica da cantiga
 
O uso da 1.ª pessoa logo no verso 1 permite concluir que o poema se centra numa questão de interesse pessoal: a lealdade do amigo. No entanto, a segunda estrofe alarga a reflexão do «eu» a considerações de caráter filosófico. Por exemplo, o «home» de que aí se fala não corresponde a nenhum homem em particular, antes evoca a condição humana em geral.
Nessa reflexão está implícita a comparação entre o presente e o passado, concluindo-se que as coisas já não são “como soíam seer”. Esta comparação introduz na cantiga uma tensão dramática, isto é, um conflito entre o que antes era e o que agora é, que se acentua quando se confronta o comportamento do homem que “part’o coraçon / das cousas que ama” com o que é esperado do amigo da donzela.
Assim, se pela forma estamos perante uma cantiga de amigo, pelo tema e pelo propósito ela aproxima-se muito do chamado sirventês moral, que é uma composição de origem provençal que se ocupa, em termos gerais, da crise de valores morais ou religiosos, em estreita conexão com a decadência de costumes sociais.
Segundo Carlos Reis (Leituras Orientadas, p. 66), «o “partir do mundo” que motiva a cantiga pode ser lido como uma imagem que lembra a ameaça do fim de todas as coisas, um fim que a mudança vai preparando. Ao mesmo tempo, [este poema] anuncia alguma poesia que veio depois: o soneto de Camões que começa “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o emocionante poema “Mignonne, allons voir si la rose”, do poeta francês Ronsard, que nos diz da rápida mudança da juventude para a velhice; e, muito mais próximo de nós, o “Soneto da fidelidade”, de Vinicius de Moraes que, em tom de paródia, fala de um sentimento amoroso “que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”. 

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