Português: 04/01/2021 - 05/01/2021

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Análise da esparsa "Os bons vi sempre passar"


Assunto: para o sujeito poético, não existe justiça humana e os valores éticos e morais estão invertidos, pois os maus recém prémios e galardões diversos, enquanto os bons são severamente castigados. Ao dar-se conta dessa injustiça, o sujeito faz-se mau, na esperança de também ser premiado, de obter as vantagens e benefícios que observou nos outros, porém para ele logo a justiça funcionou e foi castigado.
 
 
Tema: o desconcerto / as injustiças sociais (abordado de forma jocosa).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª hipótese
 
1.ª parte (5 versos iniciais) – Observação: o «eu» foi observando («vi»), ao longo do tempo («sempre»), que os bons eram castigados e os maus premiados.
 
2.ª parte (vv. 6-8) – Estratégia e consequências: como resultado da sua observação e perante a inversão de valores e os exemplos de injustiça, o «eu» decide ser mau, porque entende ser a melhor forma de alcançar «o bem tão mal ordenado», mas acaba por ser castigado.
 
3.ª parte (vv. 9-10) – Conclusão: o «eu» conclui, de forma irónica, que, afinal, só para si «anda o mundo concertado», dado que só ele foi castigado quando foi mau.
 
 
2.ª hipótese
 
1.ª parte (vv. 1-5) – Situação genérica: o «eu» constata a injustiça no mundo, pois os maus são premiados e os bons são castigados.
 
2.ª parte (vv. 6-10) – Situação pessoal: o «eu» confessa que decidiu mudar o seu comportamento e tornar-se mau, no entanto foi castigado, já que para si o mundo está «concertado».
 
▪ Em jeito de conclusão, podemos afirmar que o sujeito poético acaba por não saber como se conduzir, dada a injustiça e a arbitrariedade que reinam no mundo: se for bom, arrisca-se a passar «graves tormentos»; se for mau, será castigado. Assim, estará sempre à mercê dos caprichos da desordem de um mundo que parece persegui-lo pessoalmente.
 
▪ O poema procura denunciar a inversão de valores que caracteriza a sociedade: os bons são castigados e os maus são recompensados, como se o mundo andasse às avessas.
 
▪ O tema mantém-se atual, visto que ainda hoje deparamos com situações que exemplificam que nem sempre quem tem mérito é recompensado, muito pelo contrário.
 
 
Retrato / Caracterização do sujeito poético
 
            Perante o desconcerto e a injustiça que caracterizam o mundo, o sujeito poético mostra-se admirado e espantado com o que observa. Por outro lado, manifesta toda a sua desilusão, desencanto e tristeza com a injustiça e a arbitrariedade, quando verifica que, quer seja bom, quer seja mau, o mundo castiga-o sempre, o que gera nele pessimismo, frustração e impotência para alterar o estado de coisas e a sua vida.
            Além disso, o «eu» lírico apresenta-se como uma exceção, visto que apenas para si «anda o mundo concertado», ou seja, só ele foi castigado quando praticou o mal. A sua observação das coisas, a sua experiência de vida levou-o a acreditar que deveria ser premiado (como os demais que praticaram o mal), no entanto não foi isso que sucedeu.
 

Intertextualidade
 
• Esta esparsa aborda a questão do desconcerto do mundo, um tema que atravessa a literatura de forma transversal.
 
• Assim, pode relacionar com a cantiga de amigo, nomeadamente com o exemplo da donzela que ama sinceramente o seu amigo, mas não é correspondido.
 
• Por outro lado, pode associar-se também à cantiga de escárnio e maldizer, havendo diversos textos que abordam o tema de forma idêntica, como, por exemplo, aqueles que denunciam os elogios exagerados e artificiais da figura da mulher.
 
 
Análise formal
 
Classificação: esparsa.
O poema é constituído por uma única estrofe de 10 versos, sendo designado, por isso, décima. De facto, a esparsa é uma composição poética de uma só estrofe na qual, de forma breve, se apresenta um pensamento artisticamente construído. Foi um tipo de poema muito cultivado na segunda metade do século XV e no século XVI, tanto em Portugal como em Espanha.
 
Métrica: todos os versos têm 7 sílabas métricas – redondilha maior.
 
Rima:
» esquema rimático: abaabcddcd
» rima cruzada, emparelhada e interpolada
» consoante (“passar”/“espantar”)
» pobre (“passar”/”espantar”) e rica (“assim”/”mim”)
» aguda (“passar”/”espantar”) e grave (“tormentos”/”contentamentos”)
A palavra rimante «tormentos» associa-se ao verbo «passar» e ao adjetivo «graves», todos com conotações negativas e referentes aos bons. Por outro lado, «tormentos» relaciona-se com o verbo «nadar» e com o nome «mar», que sugerem a felicidade, a descontração e a liberdade que esperam os maus.
 
 
Recursos expressivos
 
Antíteses (bem/mal; bons/maus; graves tormentos/mar de contentamentos): os «bons» passam «graves tormentos», enquanto os «maus» vivem num «mar de contentamentos», ou seja, o mundo está desconcertado e dividido em dois grandes grupos, é injusto, dado que os bons sofrem e são punidos e os maus são premiados, por isso vivem felizes e tranquilos. Estas antíteses, por outro lado, realçam os contrastes existentes no poema, nomeadamente entre as consequências dos atos dos bons (penalização) e dos maus (recompensa) em termos gerais e entre as consequências dos maus atos do sujeito poético (penalização) e as dos atos dos outros (recompensa).
 
Repetição da expressão «vi sempre»: traduz a ideia de que o sujeito poético observou, pessoalmente, os acontecimentos ao longo do tempo, isto é, é testemunha da situação. Por outro lado, a repetição sublinha a recorrência desse facto.
 
Metáfora «nadar em mar de contentamentos»: exprime a felicidade e a despreocupação dos «maus» através da ideia de grandeza associada ao mar, bem como a enormidade das vantagens de que beneficiam, e acentua o espanto e a estranheza do sujeito poético perante a injustiça que grassa no mundo.
 
Aliteração, por exemplo, em /s/ (verso 1).
 
Ironia presente nos dois versos finais do poema: traduz a constatação de que o mundo só anda concertado para si.
 
Forma verbal «anda», no presente do indicativo, sugere a intemporalidade da inversão de valores que caracteriza o mundo e da arbitrariedade de que é vítima.
 
Conectores:
▪ a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 8) marca a oposição entre o castigo do sujeito poético e a impunidade dos outros;
▪ a locução «Assi que» introduz a conclusão do sujeito poético: apenas para si existe justiça e ética no mundo.
 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

O mito de Prometeu - Iseult Gillespie

Análise do poema "Erros meus, má fortuna, amor ardente"

 Assunto: balanço/reflexão do sujeito poético da/sobre a sua vida, dominada pela conjura dos erros, da fortuna e do amor, que o tornaram infeliz.
 
 
Tema: o desespero do sujeito poético.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-12) – Num discurso autobiográfico, o sujeito poético confessa que viveu uma vida marcada pelo sofrimento, devido aos erros cometidos, à falta de sorte / ao destino e ao Amor.
 
2.ª parte (vv. 13-14) – Conclusão do balanço de vida, numa expressão de raiva e desespero intensificados pelo desejo de vingança.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
▪ O «eu» começa por identificar os fatores responsáveis pela sua perdição, pela vida infeliz e pelo sofrimento: os erros próprios, a má fortuna e o amor ardente.
 
▪ Os versos 3 e 4 clarificam quem os erros cometidos pelo «eu» e a «má fortuna» foram seus inimigos ao longo da vida e conjuraram/conspiraram contra si, impedindo-o de ser feliz. Por outro lado, acrescenta que o Amor era suficiente para provocar a sua perdição, para o fazer infeliz – constituindo, pois, o principal responsável.
 
▪ Na segunda estrofe, o sujeito lírico esclarece que o passado interfere e condiciona o modo como o presente é vivido. Assim, os momentos difíceis, as “cousas que passaram”, provocaram tão grande sofrimento que ainda estão bem presentes no seu espírito. Por isso, o passado ensinou-lhe uma lição: aprendeu a não desejar ser feliz, desistiu de procurar ser feliz (“Que já as magoadas iras me ensinaram / A não querer já nunca ser contente.” – vv. 7-8), a fim de evitar mais sofrimento. Assim, no presente sente-se condicionado pelas memórias tristes do passado, que impedem a felicidade e o sossego no presente.
 
▪ No primeiro terceto, de forma amargurada, o «eu» confessa que também é culpado pelo seu infortúnio, pelos sucessivos erros que cometeu, daí que a sorte o não tenha bafejado. Por isso, foi castigado pela Fortuna / Destino, provocando-lhe grandes desilusões (“As minhas mal fundadas esperanças.”). Assim sendo, a sua infelicidade foi resultado dos seus erros sucessivos e das punições do Destino, de quem foi vítima.
 
▪ No verso 12, considera que o Amor lhe provocou “breves enganos”: as suas experiências amorosas constituíram breves ilusões (experiências amorosas curtas e enganadoras) e nunca foram a verdadeira vivência do amor.
 
▪ Nos dois versos finais, o sujeito poético manifesta um desejo impossível de realizar: ver alguém puni-lo por toda a culpa que teve na sua vida infeliz. O «eu» sente-se vítima e deseja vingar-se. Trata-se de mais um momento de hipertrofia do «eu», de excessivo egocentrismo.


Estado de espírito do sujeito poético
 
            O estado de espírito do sujeito poético é marcado por diversos sentimentos, tendo em conta o seu percurso de vida:
▪ amargura (v. 1);
▪ perseguição (v. 2);
▪ dor (v. 6);
▪ exasperação e revolta (vv. 7-8);
▪ mágoa (v. 7);
▪ desilusão e sem esperança (v. 8);
▪ desencanto (v. 8);
▪ amargura (vv. 8-9);
▪ culpa (vv. 9-10);
▪ frustração (v. 12);
▪ cólera (v. 12);
▪ desejo de vingança (vv. 13-14).
 
 
Tom do poema
 
            No poema, predomina o tom confessional, melancólico e de ira.
            Este tom adequa-se a este soneto, no qual o «eu» reflete sobre a sua existência, marcada pelo sofrimento e pela infelicidade, e exprime toda a sua revolta perante o que lhe sucedeu.
 
 

Recursos expressivos
 
Interjeição + exclamação “Oh!” (v. 13): enfatiza o tom emotivo com que o sujeito poético manifesta o seu desespero.

Personificações:
. vv. 1-2: identifica as causas da perdição do sujeito poético (os erros próprios, a “má fortuna” e o amor ardente, que se conjuraram para o perder).
 
• Predomínio da 1.ª pessoa: uso das formas verbais (“passei”), dos pronomes pessoais (“mim”), dos determinantes possessivos (“meus”) de 1.ª pessoa determinam o caráter autobiográfico do soneto, que consiste numa reflexão do sujeito poético sobre o seu percurso de vida.
 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Análise do poema "O dia em que eu nasci, moura e pereça"


 Assunto: o sujeito amaldiçoa o dia em que nasceu e manifesta o desejo de que não volte a repetir-se.
 
 
Temas:

- a ligação do nascimento e da morte (verso 1);

- as relações ambíguas com a mãe (verso 8);

- a visão de si próprio com um ser desmesurado, mesmo monstruoso (versos 6 e 7);

- a sensação de desgraça maior (versos 13 e 14).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (2 quadras e 1.º terceto): o sujeito poético amaldiçoa o dia em que nasceu, desejando que ele nunca mais volte, e recria um ambiente monstruoso, apocalíptico, que deseja que se materialize, caso o dia do seu nascimento se repita.
 
2.ª parte (2.º terceto): justificação do desejo – o «eu» considera-se vítima do destino, que começou logo no dia em que nasceu: “[…] este dia deitou ao mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
• No verso 1, o sujeito poético manifesta um desejo: que o dia em que nasceu desapareça e que não se repita.
 
• Caso esse desejo não se cumpra e ele se repita, deseja que seja um dia horrível, monstruoso.
 
• Assim, enumera uma série de maldições que deverão ocorrer caso [o dia em que nasceu] se repita:

1.ª) Deseja que haja um eclipse, que o sol desapareça e seja um dia de escuridão total.

2.ª) Deseja que o mundo mostre sinais de que vai acabar.

3.ª) Deseja que nasçam monstros.

4.ª) Deseja que chova sangue.

5.ª) Deseja que a mãe não conheça o próprio filho.

Em suma, o «eu» lírico espera que esse dia seja de escuridão total («A luz lhe falte»), tenebroso e monstruoso («nasçam-lhe monstros») e de alienação («a mãe ao próprio filho não conheça»). O cenário que constrói é de violência, sofrimento, morte e terror geral.
 
Estado de espírito do sujeito poético: ao manifestar o desejo de que o dia do seu nascimento não se volte a repetir, o «eu» expressa fúria e revolta, bem como desilusão, caso tal não suceda. O seu tom é exaltado e de fúria, em consonância com o seu estado de revolta e desespero. O «eu» é um ser magoado, mas sem medo. Apresenta-se como um ser de exceção, uma vez que a desgraça o acompanha desde que nasceu. A sua excecionalidade culmina com a hipérbole presente nos dois versos finais do soneto: ele é o ser mais desgraçado que o mundo já viu, o que o deixa irado e revoltado.
 
• O primeiro terceto reflete e a reação das pessoas ao ambiente tenebroso desejado pelo sujeito poético: espanto (por desconhecerem a causa de tal ambiente catastrófico), angústia, medo, pavor, desespero, perante a destruição desejada pelo «eu». A enumeração desta terceira estrofe realça a antevisão que o sujeito lírico tem do ambiente de horror que marcará o dia do seu nascimento, caso ele volte a repetir-se.
 
• No segundo terceto, o «eu» lírico justifica o amaldiçoamento do dia do seu nascimento: dirige-se à «gente temerosa», incentivando-o a não estranhar («não te espantes» - v. 12) o desejo, visto que esse dia trouxe ao mundo o mais desgraçado e infeliz dos seres humanos.
 
Perceção do destino: no último terceto, o sujeito poético conclui que, desde o dia em que nasceu, nunca foi feliz. Assim, refletindo sobre a sua vida, considera-se uma vítima do poder destruidor do destino, que o persegue desde o seu nascimento, sendo, por isso, considerado o causador do seu infortúnio. Em suma, o destino, para o sujeito lírico, o destino constitui:
▪ a causa do seu infortúnio, da sua vida desgraçada;
▪ o elemento com poder destruidor que o persegue;
▪ o obstáculo à sua felicidade.
 
• Representação e autoimagem do «eu»: no poema, o «eu» apresenta-se como um ser «especial», infeliz e egocêntrico. O seu egocentrismo reside no facto de ele considerar que pode impor aos outros a sua tragédia pessoal, arrastando-os para um cenário imaginário de terror e cataclismo.
 
 
Recursos expressivos
 
▪ Ao nível fónico, estamos na presença de um soneto, constituído por duas quadras e dois tercetos, em versos decassilábicos, com rima interpolada e emparelhada nas quadras (abba) e interpolada nos tercetos (cde/cde), consoante (“pereça”/”padeça”), grave (“pereça”/”padeça”) e aguda (“dar”/”tornar”), pobre (“dar”/”tornar”) e rica (“acabar”/”ar”). A métrica, como atrás foi referido, oscila entre o decassílabo heroico e sáfico, o último.
 
▪ Ao nível morfossintático e ao nível semântico, os recursos utilizados estão ao serviço da expressão do desespero do sujeito poético, amaldiçoando-o o dia em que nasceu, pedindo o seu desaparecimento e, caso o seu desejo não seja correspondido, traçando um quadro apocalíptico que gostaria de ver materializar-se nessa data.
Há, em suma, um tom de exagero da desgraça do sujeito, uma «hipertrofia do eu», que pretende impor à própria natureza e à «gente temerosa» a enormidade da sua tragédia, de uma forma violenta: eclipse, monstros, chuva de sangue, lágrimas, o medo, a destruição do mundo.
Esta hipertrofia do «eu», conjugada com uma grande dimensão hiperbólica da afirmação da excecionalidade individual na desgraça, exprime-se através dos seguintes recursos:

. Pleonasmo: «moura e pereça» – exprime o desejo do desaparecimento do dia em que nasceu.

. Inversão: «Eclipse nesse passo o Sol padeça»; «A mãe ao próprio filho não conheça»; «Sangue chova o ar».

. Apóstrofe: «Ó gente temerosa…» – evidencia a distância entre o «eu» e os outros, pois, enquanto estes se mostram temerosos e ignorantes, o sujeito não receia e conhece a causa para o caos.

. Modo conjuntivo para traduzir o desejo de amaldiçoar tudo e o conselho dirigido à «gente temerosa» para que não se espante com o cenário apoclítico.

. Discurso valorativo: «As pessoas pasmadas»; «gente temerosa», «a vida mais desgraçada que jamais se viu».

. Alternância das rimas em a aberto e e fechado nas quadras, sugerindo espanto e dor, e em i nos tercetos como um grito de desespero.

. Anáfora: «não», «não» – intensifica o desejo do sujeito poético.

 
Hipérboles – são a expressão do desejo de maldição, de um ambiente de terror:

. “não o queira jamais o tempo dar”;

. “cuidem que o mundo já se destruiu”;

. “a vida / mais desgraçada que jamais se viu!”: o sujeito poético teve e tem uma vida infeliz e desgraçada, cujo causador é o destino.
 
Adjetivação: «pasmadas», «perdida» – os adjetivos traduzem a reação das pessoas ao ambiente de terror, o seu assombro e medo ao serem confrontadas com ele, sem terem explicações para esse ambiente. Por outro lado, a adjetivação acentua a violência dos acontecimentos e marca a impotência humana face às forças que regem o mundo.
 
Metáfora: «nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar» – traduz o delírio emocional do «eu», apontando algumas das maldições por si imaginadas / desejadas.
 
Determinante demonstrativo «este» (v. 13): traduz a proximidade afetiva entre o sujeito poético e o dia do seu nascimento.
 
Verbo «chover»: este verbo pressupõe um sujeito nulo expletivo. O facto de, no poema, ocorrer com um sujeito simples, aliado ao hipérbato, acentua o caos verificado na natureza, que também se manifesta ao nível da frase que o representa.
 
Conjunção subordinativa causal «que» (v. 13): introduz a causa do desejo expresso no verso 1 – no dia do seu nascimento foi dada à luz a pessoa mais infeliz e desgraçada que o mundo alguma vez viu.
 
 
Conclusões
 
• Esta luta com o destino, a ira, as imprecações, constituem uma revolta falsa e não uma real tentativa de libertação. A violência das maldições, os gritos de desespero, o desejo de morte representam uma espécie de desculpa para a vida, um desejo de encontrar um culpado e a absolvição para a própria derrota.
 
• Camões apresenta, neste soneto, uma imagem engrandecida de si mesmo com que vai compensando a humilhação da derrota: também aqui a poesia é contraditória, oscilando entre a autodepreciação e o narcisismo: vai crescendo em si a consciência de ser diferente; a perseguição do destino, na singular crueldade e estranheza que a caracterizam, acaba por o tornar singular; o afastamento e o desprezo do vulgo exprime-se na epopeia e na lírica. Reconhece-se um ser eleito, grandioso, heroico, genial.
 
 
Intertextualidade com o Livro de Job
 
            Este soneto pode relacionar-se com o capítulo III do Livro de Job, intitulado “As lamentações de Job”, dado que ambos os textos revelam o sofrimento de ambos os «eus». A infelicidade sentida leva-os a amaldiçoarem o dia em que nasceram, recorrendo a imagens e situações sobre a ausência da luz solar e da alegria, embora no texto bíblico não estejam presentes as imagens de terror que é visível na segunda quadra do poema de Camões.
 

domingo, 11 de abril de 2021

Caracterização dos Vendedores de telefonias

 
▪ Os vendedores de telefonias são jovens, ativos, diligentes e sagazes. A sua paragem na aldeia fica a dever-se a supostos problemas mecânicos no seu carro: este está a precisar de água.

▪ Um deles apresenta-se “bem vestido”, é elegante, de modos agradáveis, sorridente e afável no trato. Ao reparar que a casa do Batola tem energia elétrica (é a única na aldeia), vê, de imediato, uma possibilidade de fazer negócio.

▪ Mostra também ser observador e atento, seguro de si, convincente, hábil e calculista, características que se adequam a um bom negociante, como o mostram as estratégias que usa para vender a telefonia ao Batola: apresenta o aparelho, experimenta-o na presença do potencial cliente e enumera as suas qualidades.

▪ Por isso, convence facilmente o Batola a adquirir o objeto, usando diversas estratégias de persuasão, como as seguintes expressões permitem deduzir: “poisa a mão sobre o ombro de Batola”, “Sem dar qualquer tempo de resposta, ordena…”, “Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre”. Perante a reação negativa da mulher do vendeiro, adota habilmente uma atitude conciliatória, dirigindo-se-lhe de modo mais formal, até porque percebe que é ela quem decide, propondo que a telefonia fique à experiência durante um mês. Se depois não o quisessem, poderiam devolvê-lo e ele restituiria as letras que o Batola havia assinado como forma de pagamento. Além disso, durante esse mês iriam usufruir do aparelho sem pagar nada.

▪ Note-se que toda a atividade de vendedor por parte do sujeito «bem vestido» assenta no engano. De facto, por um lado, alude a um pretenso problema mecânico para justificar a paragem na aldeia e, por outro, aceita deixar o aparelho à experiência durante um mês (ao constatar a oposição férrea da mulher do Batola), mas leva consigo as letras assinadas pelo vendeiro.

 

O mito de Ícaro e Dédalo — Amy Adkins

Caracterização do Rata

 
▪ Uma das personagens que se destaca do coletivo é o Rata (que é evocado, saudosamente, por Batola), uma figura que vivia na miséria.

▪ Era amigo de Batola, mas contrastava com ele: aquele vive conformado e apático; este saía frequentemente da aldeia e percorria o Alentejo, embora o máximo onde tenha chegado tenha sido Beja. De facto, a personagem vivia de esmolas que ia recebendo em várias terras.

▪ Rata é um mendigo e viajante, uma espécie de mensageiro que traz novidades do que se passa para além dos limites da aldeia. “Ao escutá-la durante «tardes inteiras» de forma entusiasmada, também Batola parecia viajar por «todo aquele mundo». Esta hipérbole (o mais longe que Rata viajara fora até Beja) elucida o impressionante isolamento dos habitantes de Alcaria. Quando ficou impossibilitado de viajar «pelos longes», Rata suicidou-se.” (Violante Magalhães, in Conto Português [séculos XIX-XX]: Antologia Crítica). Este suicídio agudiza a solidão do Batola.

▪ Constituía um agente de mudança, pois trazia o mundo exterior até à aldeia, graças às suas saídas, combatendo o isolamento de Alcaria e dos seus habitantes.

▪ Quando a miséria e a doença o forçam a uma existência estagnada e repleta de privações, suicida-se. De facto, o reumatismo tinha-o tornado incapaz de sair da aldeia. Quando se viu preso e impedido de viajar, o Rata mata-se por não se conformar com o isolamento e a solidão a que se viu remetido pela doença incapacitante.

 

Caracterização dos habitantes de Alcaria

 
▪ Esta personagem – coletiva – é constituída pelos habitantes da aldeia, que trabalham na ceifa de manhã à noite e, quando regressam da faina, exaustos, não vão “à venda palestrar um bocado”. As suas vidas são, de facto, marcadas pelo trabalho árduo e extenuante e pela miséria, que não conseguem superar: são pobres, tal como o local onde habitam, e vivem isolados do resto do país e do mundo.

▪ Os homens de Alcaria são apresentados como «figurinhas» (de presépio?) que vivem em casas «tresmalhadas». Atendendo a esta caracterização das casas (continente), os homens que as habitantes (conteúdo) são aparentados com gado. […] eles são «o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão». A tudo isto acresce a falta de esperança numa vida melhor. Batola não enfrenta aquele tipo de problemas. Pelo contrário, ele dá-se ao luxo de preguiçar, bebe «o melhor vinho que há na venda», carrega um fio de ouro no colete. Todavia, consciente da vida difícil dos demais aldeãos, ele é solidário. E partilha a condição animalesca dos conterrâneos: […] «rumina» a revolta; os suspiros saem-lhe «como um uivo de animal solitário».” (Violante Magalhães, in Conto Português…].

 

Relação entre Batola e a mulher

 
▪ A relação entre o casal é conflituosa, desde logo porque Batola se sente inferiorizado em relação à esposa. Assim, aquela é marcada pela ausência de sentimentos, pela frieza, pelo silêncio e pelo ressentimento, ocasionalmente pela violência física, dado que ele a agride fisicamente.

▪ A relação que mantêm gera raiva e revolta nas duas personagens. Vivem juntos, mas mal se falam, e o silêncio domina a sua convivência diária, o que gera um estado permanente de tensão, raiva e revolta, o que desemboca na violência ocasional.

▪ A mulher é dominadora, enérgica, autoritária quando tem de tomar decisões; ele é passivo, indolente e torna-se violento quando alcoolizado.

▪ Após a compra da telefonia, a situação muda: o Batola corda cedo e assume a gestão da venda, que antes cabia à mulher, que fica em casa e raramente marca presença no espaço comercial. A própria atitude da esposa relativamente ao marido é bastante diferente: o seu autoritarismo desaparece e, agora, surge «com um ar submisso» e humilde, como o evidencia o modo como lhe pede, humilde, quase sob a forma de murmúrio, que conservem o aparelho radiofónico.

 

Os 12 trabalhos de Hércules - Alex Gendler

Caracterização da mulher do Batola

 
▪ Fisicamente, é muito alta, séria (“grave”) e tem o rosto ossudo e os olhos negros.

▪ Psicologicamente, é uma mulher ativa, dinâmica, diligente e determinada, mas também autoritária e prepotente. De facto, é ela quem gere a casa e o negócio do casal: “abre a venda”, avia os fregueses, “põe e dispõe”.

▪ É ela quem detém, pois, o poder e revela-se “silenciosa e distante” relativamente ao marido, ao contrário de quem toma decisões com lucidez. A vida dura e rotineira que tem não a inibe nem impede de seguir um rumo.

▪ A aquisição da telefonia vai provocar uma alteração na personagem: perde o seu ar autoritário e prepotente e mostra-se submissa, “com uma quase expressão de ternura”, pedindo ao marido para ficar com a telefonia. De facto, se, no início, se distancia para não compartilhar da alegria e do entusiasmo do marido e do povo da aldeia, acaba, no final, por se render ao aparelho e às mudanças que este trouxe, provavelmente porque ganhou gosto pela nova vida que ele lhe aportou. Também ela sentia, como os demais, a necessidade de uma companhia (“Sempre é uma companhia”), de romper a solidão e o isolamento em que vivia.

▪ A sua recusa inicial justifica-se pelo facto de, para si, a rádio não possuir qualquer utilidade, constituindo apenas um luxo e, consequentemente, um desperdício de dinheiro; por outro lado, a compra da telefonia não é uma decisão sua, o que constitui outro motivo para se lhe opor.

▪ Não possui nome próprio no conto, o que pode significar que mais importante do que a sua identidade é o papel que desempenha na ação.

 

Caracterização do Batola

 
▪ António Barrasquinho, conhecido pela alcunha de «o Batola», é, fisicamente, um homem baixo, “atarracado”, de “pernas arqueadas”, com a “cara redonda amarfanhada”, veste-se de forma tipicamente alentejana: “chapeirão caído para a nuca” e “lenço vermelho amarrado ao pescoço”.

▪ Psicologicamente, no início do conto, apresenta-se como um indivíduo desmotivado, passivo, entediado, preguiçoso, desinteressado e deprimido, traços sintetizados na expressão “[…] a vida do Batola é uma sonolência pegada”.

▪ Por outro lado, é agressivo, violento, pouco polido e fraco, como o demonstra o facto de se entregar ao vício da bebida, de agredir a mulher e não conseguir superar a situação em que se encontra, o que gera frustração.

▪ Face à vida que tem, sentindo-se só (solidão essa que radica na ausência de convívio com os habitantes da aldeia) e desesperado, evade-se através do álcool (passa os dias “a beber de manhã à noite”) e da ausência (“para ali fica com um olhar mortiço”).

▪ O comportamento e a relação com a mulher suscitam-lhe revolta, a entrega à bebida e, frequentemente, a agressão / violência física: “Era o Batola, bêbedo, a espancar a mulher”. De facto, a relação do casal é marcada pela agressividade e pela violência.

▪ A venda proporciona ao casal uma vida económica desafogada, comparativamente ao resto da comunidade, o que, todavia, não impede que se sinta só, frustrado e vazio interiormente.

▪ Depois da aquisição da telefonia, o Batola sofre uma mudança de comportamento. Assim, torna-se um indivíduo trabalhador, conversador e interessado no que se passa no mundo, adquirindo gosto pela vida. O convívio com as outras pessoas, que passam a vir à venda para ouvir rádio, quebra a sua monotonia, tristeza e solidão, e a sua existência passa a ser preenchida com a música e a informação que lhe chegam via aparelho.

 

Ação do conto "Sempre é uma companhia"

 1. Estrutura
 
1.ª parte (do início até “[…] lá se vai deitar o Batola, derrotado por mais um dia.”): o narrador apresenta as personagens principais, a sua relação (caracterizada pela incomunicabilidade e violência física) e o ambiente do isolamento e da solidão em que viviam.
 
2.ª parte (de “De facto, na tarde seguinte…” até “Foi de esticão.”): o narrador relata a forma como dois vendedores convencem o Batola a comprar uma telefonia.
 
3.ª parte (de “De facto, era sol-posto, pelos atalhos…” até ao final do conto): o narrador narra a mudança de vida dos protagonistas e de toda a população da aldeia, graças à aquisição da telefonia.
 
 
2. Delimitação: a ação é aberta.
 
 
3. Importância das peripécias inicial e final
 
▪ O comportamento das personagens e a relação existente entre elas muda ao longo do conto.
 
▪ Essa mudança é originada pela aquisição de uma telefonia pelo Batola. O objeto, com efeito, atenua a solidão, o isolamento e o tédio das pessoas, bem como a relação de agressividade e violência existente entre o casal protagonista.
 
▪ A telefonia transmite música e notícias. Aquela traz alegria às pessoas, mais convívio, e corta o vazio, a solidão e a tristeza das suas noites. Por seu turno, as notícias permitem que a aldeia contacte com o país e o mundo, quebrando o isolamento em que a população vivia.
 
▪ Na peripécia inicial, encontramos um Batola frequentemente bêbedo e depressivo, que acumula dentro de si o ressentimento, a raiva e a revolta contra a prepotência e o autoritarismo da mulher e a espancar periodicamente. Exemplo disto é o episódio em que uma criança vai à venda comprar café e Batola se demora para não ter de o atender, esperando que seja a mulher a fazê-lo.
 
▪ Porém, na peripécia final, a situação altera-se e o conto termina com a mulher pedindo-lhe com delicadeza e alguma ternura que compre a telefonia, o que comprova a mudança do comportamento e da relação destas personagens, até porque antes tinha ameaçado sair de casa se o marido a adquirisse. Assim sendo, é possível deduzir que o casal se aproximou e que ressurgiram os afetos entre ambos.
 
▪ A telefonia transmite música e notícias. Aquela traz alegria às pessoas, mais convívio, e corta o vazio, a solidão e a tristeza das suas noites. Por seu turno, as notícias permitem que a aldeia contacte com o país e o mundo, quebrando o isolamento em que a população vivia.
 
▪ Esta mudança tem consequências na vida dos habitantes da aldeia, pois continuarão a poder juntar-se e conviver, à noite, na venda, ao som da música e das notícias do exterior.
 

domingo, 4 de abril de 2021

O mito de Aracne - Iseult Gillespie

Resumo do conto "Sempre é uma companhia"

             O conto situa-se na época da II Guerra Mundial e narra-nos a história de um casal que possui uma venda numa aldeia alentejana e cujo quotidiano é caracterizado pela solidão, pelo isolamento do mundo, pela monotonia e tédio e pela agressividade entre os membros desse casal.

            Este panorama é alterado com a chegada de dois vendedores de telefonias, que convencem o Batola, a personagem principal, a comprar um aparelho. Perante a oposição da mulher, um dos vendedores propõe uma compra à condição: a telefonia ficará à experiência durante um mês. Passado esse tempo, se não a quiserem, poderão devolvê-la e receber de volta as “letras”.

            A aquisição do aparelho provoca uma mudança enorme na povoação e na vida dos seus habitantes: os ceifeiros dirigem-se todos à venda do casal para ouvir as notícias da guerra, saem de lá “alta noite” e a discutir o que ouviram “numa grande animação”. As mulheres deslocam-se igualmente para a venda após a ceia, para ouvir as melodias e até (as velhas” dançar ao som da telefonia. Os aldeãos sentem-se, assim, agora, mais próximos do mundo, por consequência menos isolados e solitários.

            Esta mudança acaba por se estender à própria mulher do Batola, que abandona a sua prepotência e o seu autoritarismo e se mostra submissa, pedindo ao marido para ficarem com a telefonia, visto que “é uma companhia” naquele deserto.

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