Português: Miguel Torga
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sábado, 9 de setembro de 2023

A Criação do Mundo - O Terceiro Dia


    De regresso, cinco anos depois, a Portugal, o narrador assume a sua rebeldia, não mais se deixando espezinhar pelos tios, e a sua humilhação por constatar, agora, após o contacto com outras realidades, a miséria em que fora criado. Por outro lado, os pais não entendem nem conseguem preencher o vazio daqueles cinco anos de ausência e estranham a linguagem, o novo «eu» que regressou.
    Os tios são recebidos com indiferença e até com escárnio (as histórias de bruxaria que a tia conta, por exemplo), quando eles esperavam ser acolhidos principescamente, na qualidade de filhos da terra que tinham outra civilização e riqueza.
    Em Coimbra, o narrador frequenta a escola de um jovem casal que vive na penúria. Quando regressa de férias, é ultrapassado o distanciamentos que os cinco anos de Brasil tinham aberto com a família e vê partir, com alegria, o tio de regresso a terras brasileiras. Passa inúmeras horas em contacto com a natureza. Obstinado, faz de uma só vez, por exame, os três anos de liceu, por se sentir mal no meio dos colegas muito mais novos e por receio de que o tio se arrependa e lhe corte a mesada.
    Ingressa então no liceu de Coimbra, onde a ausência do calor, da ênfase e do exemplo do amor do jovem casal, aliados à monotonia, à exposição mecânica e sem chama dos mestres do liceu, tornam as aulas extremamente aborrecidas. Só as asas da imaginação e os jogos de futebol no recreio fazem aqueles tempos suportáveis.
    Escolhe frequentar Medicina na Universidade pela liberdade que lhe proporcionará e pelo caminho humano que irá trilhar com a futura profissão. Publica, entrementes, o primeiro livro de versos, negativamente criticado, de forma justa. No entanto, o Dr. Marinho convida-o para colaborar na Vanguarda, revista literária do Modernismo.
    A tropa constitui outro momento de demonstração de rebeldia: falta à primeira chamada, vai à segunda, forçado, como refratário, por isso duplicam-lhe o tempo de serviço a prestar; faz «mil» requerimentos, cansando quem os recebe, por isso acaba por ser perdoado; é insubordinado, desrespeitador dos oficiais, alérgico a cumprir os regulamentos e regras militares; só a presença de um oficial de uma terra vizinha da sua aldeia natal o protege de males maiores. Há (além do espírito de rebeldia e liberdade) outra razão para adiar o exército: a revolta militar ocorrida em 1926, que tinha imposto uma ditadura ao país e que leva os estudantes à revolta e à greve, por a reforma encetada na Universidade pelo novo poder se transformar em métodos de ensino e exames mais conservadores e ultrapassados.
    Só na Vanguarda encontra campo para os seus anseios, embora rapidamente dê conta de que se trata de uma literatura essencialmente polemizante, que por isso os afastava humanamente uns dos outros, e muito abstratizante, desligada da realidade. Por outro lado, o sexo continua a exercer sobre ele um apelo muito grande, daí a torrente de namoradas e a frequência de bordéis.
    Dois homens opostos vivem dentro dele: "O campónio de Agarez, a caminho da formatura, pragmático, acautelado, instintivamente necessitado de perpetuar a espécie, e o poeta, sedento de absoluto, inconformado com a precariedade das coisas terrenas, insocial e rebelde."
    Publica o segundo livro de versos; após o entusiasmo inicial, sai da Vanguarda de relações cortadas com a maioria do grupo; é derrotado nas eleições para o senado e arranja mais inimigos; refilão nas aulas, concita sobre si a antipatia dos mestres; sente-se cada vez mais isolado.
    A conclusão do curso e o futuro profissional próximo deixam-no aterrado. Findo aquele, o tio corta a mesada e o narrador regressa a Agarez, onde é recebido com despeito pelos ricos e um misto de inveja e admiração pelos pobres e revela novamente o total afastamento da religião.
    Aconselhado pela mãe e por causa do abismo que o continua a separar da família e da ausência de perspetivas de futuro, regressa a Coimbra, onde apenas o editor dos seus livros o recebe bem. Acaba por substituir, temporariamente, o médico de Sedim e uma epidemia de febre tifoide granjeia-lhe, graças ao seu denodo e à casualidade de ninguém ter morrido, a confiança das pessoas. Amorosamente, mantém a relação platónica com Alice, via carta, e satisfaz o desejo físico com a criada Isabel.
    O vizinho médico de Fornos tenta difamá-lo para correr com ele de Sendim, mas o narrador resolve o problema com uma par de ameaças físicas. Entretanto, a atividade literária prossegue, através da escrita poética e da criação de revistas, algumas de vida efémera. Mais uma vez a sua retidão e integridade vêm ao de cima: para manter a posição de médico em Sendim, recusa falar com o governador civil e comprometer-se politicamente.
    Uma doença súbita, seguida de operação de urgência, apressam a sua partida. Em Coimbra, trabalha no consultório de um otorrinolaringologista, mas a sensação de vazio e de inquietação não o abandonam. Por isso, reúne o pouco dinheiro que possui e, à boleia com dois homens de negócios, parte em direção à Europa.

    Este terceiro livro traduz o choque do regresso a Portugal e ao contacto com a miséria (física e intelectual) em que nascera e crescera, e documenta a maturação de um temperamento inquieto, livre e rebelde, do homem, do médico e do poeta. Tudo isso sucede em simultâneo com os estudos e com os primeiros anos de desempenho profissional.

A Criação do Mundo - O Segundo Dia


    Esta segunda parte da obra de Miguel Torga começa por relatar a chegada do narrador ao Brasil e o choro ao enfrentar um novo país, uma cultura (crenças, feitiçarias) e «língua» diferentes.
    O tio sobrecarrega-o de trabalho e trata-o como um estranho, enquanto a tia, com medo que a herança tenha mais um candidato naquele sobrinho português, tudo faz para o denegrir e menosprezar. Sacia o desejo, pela primeira vez, com a mulher do oleiro, que no fim lhe fica com todo o dinheiro que traz. Apesar da distância do tio, gosta dele, pelo seu humanismo, audácia, justiça e generosidade.
    Certo dia, o tio surpreende a tia em mais um momento de humilhação e de choro para o narrador. Nada diz, mas mais tarde propõe-lhe a ida para o Ginásio de Ribeirão, onde fica como aluno externo. Apesar do atraso, estuda com afinco, enquanto nutre uma paixão pela colega Lia, uma jovem absolutamente indiferente os estudos. Gosta de ler e demonstra algum talento para a escrita. A frequência das «meninas» presenteia-o com uma doença venérea. Quando regressa à fazendo do tio, de férias, é recebido com todas as honras, mesmo pela tia, que faz das tripas coração para mostra alguma simpatia.
    O abandono da escola por Lia, por causa da morte da mãe, fá-lo perder algum interesse e só o rápido final do ano letivo impede maiores males. O tio, cansado e velho, vende a fazenda e regressa a Portugal.

    Em suma, o Segundo Dia retrata a adolescência do narrador num Brasil profundo, repleto de calor, sensualidade, tristezas e alegrias, paixões adolescentes; os ódios de todos, menos do tio; o árduo trabalho que, na opinião do tio, faria dele «um homem» e o estudante aplicado e interessado pelas Letras.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

O Senhor Ventura, de Miguel Torga


    O Senhor Ventura é um alentejano de Penedono que, aos vinte anos, vai cumprir o serviço militar para Lisboa, onde se distingue pela sua irreverência e pela habilidade para desenrascar pequenas situações ou ocorrências e pelo assassínio de um homem numa taverna, ato que não se consegue provar, mas todos suspeitam de si. Por isso, é enviado para África, onde se envolve, amorosamente, com a filha de um oficial e, descoberto, acaba por desertar e envolve-se no tráfico de ópio por mar. Após assassinar um fiscal britânico quando este se preparava para abordar o barco (mais uma vez sem testemunhas) decide voltar a terra, deslocando-se para a cidade de Pequim, para uma garagem da casa Ford. Aí, encontra outro desertor, um minhoto de nome Pereira, dono de um «local» onde serve refeições, até ao dia em que se envolvem numa rixa com soldados americanos e são obrigados a fechar o «estabelecimento».
    Decidem então ir para a Mongólia entregar duzentos camiões da Ford ao governo chinês. A aventura seguinte é o rapto do velho milionário Chung Lin. O desejo de regressar à pátria é suspenso pela montagem de um arsenal que forneça armamento às várias fações em guerra na China, após umas febres que o afetaram e das quais foi salvo graças aos esforços tenazes de Pereira. Durante um assalto feito pela fação rebelde do exército chinês, o Sr. Ventura perde tudo menos a vida. Menos afortunado é Pereira, que morre e é enterrado no deserto.
    De novo em Pequim, um mês depois, apaixona-se por Tatiana, com quem casa. No entanto, ela é uma mulher rebelde, que não o ama, não é prendada (nem cozinhar sabe), e os dois agridem-se regularmente. Ao amor dele corresponde apenas a atração física dela.
    O nascimento do filho Sérgio leva-o a procurar uma vida economicamente mais estável e menos feita de expedientes, daí que resolva distribuir por vários locais da cidade máquinas de jogo. De seguida, monta uma garagem de táxis e aprende a ler e o dinheiro começa a crescer.
    Intuindo que algo está para mudar na China, vende os carros, pega fogo à garagem, recebe o dinheiro do seguro e monta, num bairro discreto, uma fábrica de heroína. Denunciado o negócio da heroína, o Sr. Ventura é repatriado, deixando na China o filho e a mulher, esta com uma procuração para gerir o que resta da sua fortuna.
    Em Penedono, aluga a herdade do Farrobo por cinco anos com intenções de a fazer render bom dinheiro e descreve à sua mulher, a russa Tatiana, a notícia, mas a resposta demora um ano a chegar. Acumulando graves prejuízos na exploração da herdade durante os primeiros anos, chega a Portugal o filho de oito anos pela mão do Sr. Gomes, que lhe relata o que sucedeu nesses quatro anos na China. Em suma, a mulher levara uma vida de dissipação com amantes, primeiro um turco e depois um inglês.
    A colheita do quinto ano é abundante. O Sr. Ventura paga as dívidas reparte os lucros entrega a herdade, uma chave ao filho, que entretanto colocara num colégio de Lisboa, e retorna à China para se vingar. Passado meio ano de procura obstinada e obsessiva por meio Oriente, encontra finalmente Tatiana em Xunquim, ou melhor, encontra-o ela a morrer num hospital, vitimado por um cancro no fígado.
    Enterrado nessa cidade, o filho é expulso do colégio por falta de quem pague as mensalidades, para o Farrobo, onde o velho Gaudêncio o acolhe e põe a guardar ovelhas. "Pastor, que foi por onde o Senhor Ventura começou."

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Alves & C.ª


    Godofredo da Conceição Alves, dono de uma firma comercial, no dia do seu aniversário de casamento, surpreende a mulher, em sua própria casa, traindo-o com o seu sócio, sr. Machado. Em consequência, expulsa-a para casa de seu pai, atribuindo-lhe uma determinada quantia em dinheiro para suportar o seu estilo de vida e custeia também as despesas de umas férias para iludir a vizinhança quanto aos motivos da separação do casal. Relativamente ao sócio, propõe-lhe um desenlace sui generis: tirar à sorte qual dos dois se há de matar, pois, naquela época, os duelos tradicionais tinham caído no ridículo. Machado recusa esta proposta, considerando-a absurda, preferindo um duelo tradicional.
    No entanto, as testemunhas de ambos acabam por convencer Godofredo da desnecessidade do duelo: tudo não passou de mero namoro e foi a primeira vez. Este concorda, bem como com a ideia de continuar sócio de Machado, embora sem terem relações íntimas.
    Inicia então uma existência abominável (solidão, desmazelo por parte das criadas no amanho da casa e da roupa, saudade de Ludovina). Vê-a esporadicamente até que um dia chega à fala com ela. A pretexto de um candeeiro que não sabe acender, leva-a a casa e a reconciliação acontece. O reencontro de ambos com Machado sucede um dia depois em S. Carlos e, na manhã seguinte, Godofredo e o sócio retomam a velha amizade.
    Um dia, surpreende Margarida a entregar às escondidas uma carta a Ludovina. Furioso e ciumento, questiona a esposa e acaba por encontrar outra missiva que fala de uma esmolas feitas a uma pobre mulher. Entretanto, Machado anuncia-lhe que a mãe está muito doente. A mulher morre e Godofredo convida-o para jantar em sua casa.
    Passam trinta anos, durante as quais morre Neto, o pai de Ludovina; Teresa, a irmã, casa; Machado casa uma vez, enviuva, casa de novo e as famílias passam a viver lado a lado, enquanto o escritório floresceu. Afinal, «Que coisa prudente é a prudência!», pois tudo poderia ter sido estragado com o tal duelo «Por causa de uma tolice, amigo Machado!» Ironia...

domingo, 4 de junho de 2023

Análise do poema "Segredo", de Miguel Torga


                 Este poema, da autoria de Miguel Torga, é constituído por duas estrofes – uma quintilha e uma oitava –, de métrica irregular e com rima emparelhada, cruzada e interpolada, segundo o esquema ABAAB / CDDCEEDC.

                Começando a análise pelo título, o nome «segredo» remete para algo que não é divulgado, que é do conhecimento de apenas um ou poucos indivíduos. No caso do poema, o segredo em questão é aquilo que a personagem – presumivelmente uma criança – guarda só para si, que apenas ela conhece: a descoberta de um ninho com um ovo dentro, do qual nascerá um passarinho de quem pretende ser amigo.

                É exatamente isso que anuncia o primeiro verso: “Sei um ninho.” O menino «descobriu» um ninho, conhece (“Sei”) – atenta-se na diferença entre «sei um ninho» e «sei de um ninho» – a sua localização, e essa informação é exclusiva dele. Os versos seguintes expandem a informação relativa a esse segredo: o ninho contém um ovo, redondinho (o diminutivo sugere a sua beleza e a perfeição), que, por sua vez, encerra dentro de si um passarinho (de novo o recurso ao diminutivo afetivo).

                O que torna o ninho tão importante para o sujeito lírico é precisamente o facto de conter um ovo com uma ave no seu interior. É essa expectativa de uma nova vida que está prestes a nascer que o entusiasma e desperta em si sentimentos de carinho, de ternura, de afetividade, indiciados – repita-se – pelo uso do diminutivo («redondinho», «passarinho»).

                A segunda estrofe mostra-nos a determinação do «eu» em, «egoisticamente», guardar o segredo só para si, mesmo que alguém, aparentemente, insista com ele para o revelar: “Mas escusam de me atentar: / Nem o tiro, nem o ensino”. Assim sendo, vai resistir à pressão para desvendar aos outros o seu segredo e tirar o ninho, ou seja, resistindo à tentação de retirar o ninho do local onde se encontra e de revelar a sua localização. De seguida, esclarece os motivos que estão na base dessa sua decisão. De facto, afirma querer ser «um bom menino», isto é, deseja agir corretamente, não revelando o ninho e a sua localização, para o proteger, porque receia que os «outros» lhe façam mal, lhe mexam, o perturbem, e quer ser amigo do passarinho que vai nascer. É fácil imaginar que, se o «eu» revelasse o seu segredo, todos a quem o revelasse seriam picados pela curiosidade de acorrer ao local e «perturbar« o ninho e a avezinha quando esta nascesse. Por outro lado, o passarinho deixaria de ser o seu amigo em exclusivo.

                Os dois últimos versos remetem para a liberdade: a avezinha voará pelos céus, espaço amplo, infindável e sem portões, limites, barreiras, e aí poderá fazer o pino, exatamente porque será livre para fazer o que quiser, incluindo virar-se de pernas para o ar.

                Este poema relaciona-se com outro texto da autoria de Miguel Torga, concretamente o conto “Jesus”: o assunto é o mesmo, isto é, a revelação de uma descoberta por parte de um menino – um ninho – e a sua atitude de respeito para com o ovo que contém e a avezinha que irá nascer.

                O conto narra a história de um menino que subiu a um enorme cedro e descobriu nela um ninho que tinha um ovo. De seguida, deu um beijo no ovo, que, de imediato, estalou e do seu interior saiu um passarinho. Este texto viu a luz do dia em 1940. Quinze anos depois, em 1955, nasceu Clara Crabbé Rocha, filha de Miguel Torga, que escreveu o poema “Segredo”, lembrando-se do conto: o primeiro verso (“Sei um ninho.”) é uma repetição exata da frase que o menino do conto solta durante a ceia com os pais.

                Ora, o ninho do poema, numa leitura biográfica, é o lar do escritor, e o ovo com o seu passarinho é a nova vida que nele existe: a filha. O ovo é redondinho, como a barriga de uma mulher em adiantado estado de gravidez. E, nos primeiros anos de vida, os pais são os melhores amigos dos seus filhos, aqueles a quem estes confidenciam os seus segredos e sonhos. Este pai, por sua vez, deseja a criar a sua filha em liberdade, fornecendo-lhe asas que lhe permitam voar e fazer o pino no ar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Análise do poema "Nihil Sibi", de Miguel Torga

    “Nihil Sibi” é um poema da autoria de Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, um escritor e médico natural de S. Martinho de Anta em 1907. A sua obra poética em particular aborda temas sociais, como a natureza, a justiça e a liberdade, o amor e a angústia da morte, a condição humana, o papel do poeta na sociedade, e deixam transparecer um sentimento de telurismo permanente entre o ser humano e a terra.
    O título do poema é constituído por uma expressão latina que significa «nada para si» e, neste caso, sugere a ideia de que o poeta é uma figura altruísta, alguém que, tal como uma fonte, não guarda nada para si, antes se entrega inteiramente através da sua arte. Ou seja, indicia que o poeta é alguém cuja obra e produção se destinam ao «outro». A palavra «nihil» significa «nada», enquanto o termo «sibi» é o pronome reflexivo próximo de «se». Deste modo, a expressão completa seria algo próximo de «nada em si» ou «nada para si».
    A epígrafe, entre parênteses, reforça o sentido do título, enfatizando a ideia de que nada retém para si, antes compartilha tudo o que tem através da sua poesia, que constitui um ato de generosidade e altruísmo. Segue-se à epígrafe uma singela quadra de versos brancos e métrica irregular, o que, juntamente com a linguagem simples e clara, aproxima o poema do leitor.
    Este texto abre com uma metáfora que define o poeta como uma fonte: “O Poeta é uma fonte:”. Uma fonte é algo que jorra água incessantemente, símbolo de vida, pureza e renovação. Ao associar a figura do poeta a uma fonte, o sujeito poético sugere que o papel daquele é «dar-se», fazer nascer poesia e originar, de forma espontânea, o canto, partilhando com os outros os seus sentimentos, pensamentos, etc. Ou seja, o poeta é uma fonte de poesia, faz nascer poesia. O verso inicial termina com dois pontos, o que indicia que no(s) seguinte(s) irá explicar / desenvolver a ideia nele expressa.
    De facto, o segundo verso “esclarece” a metáfora inicial, enfatizando o caráter altruísta do poeta, já que ele “Nada reserva para a sua sede”, ou seja, nada guarda para si mesmo. O seguinte confirma claramente que o papel do poeta é dar-se: ele, qual fonte, faz nascer a poesia e origina, desse modo espontâneo, o canto. Claramente, está aqui presente a noção de que o canto é o reflexo da sua abnegação e do seu altruísmo: ele não canta por cantar, antes se entrega e partilha o seu canto.
    O último verso não deixa dúvidas: o poeta está sempre vigilante (“E não dorme”), tem uma postura interventiva e atenta ao que o rodeia e é um ser que se dá ao outro, infatigável (“nem para”). Retomando a metáfora inicial, o poeta é uma fonte que nunca para de jorrar poesia, não dorme, nem para, está em constante processo criativo. A sua atividade – a criação poética – tem, em suma, um caráter permanente e imutável.
    O poema apresenta, pois, o poeta como alguém altruísta e abnegado, isto é, um ser que se dá completamente, nada guarda para si. Esses traços, essa espécie de sacrifício, são necessários para a criação poética, através da qual exprime e partilha as suas emoções, pensamentos e preocupações. O vocabulário usado sugere exatamente essa entrega permanente: «reserva», «dar-se», «não dorme».
    O Mosteiro de Rendufe, mais concretamente o seu terreiro, possui uma fonte granítica de espaldar que ostenta a inscrição latina «Nihil sibi». A Bíblia inicia-se com a referência a uma fonte ou rio no paraíso terrestre que logo se desdobra em quatro (Génesis 2, 0) e encerra no Apocalipse (22, 1) com a fonte originária da vida eterna no quadro da cidade celeste da Nova Jerusalém. No texto bíblico, encontramos também a fonte aberta por Moisés no rochedo do deserto, bem como o encontro de Jesus Cristo com a mulher samaritana junto à fonte de Jacob.
    Miguel Torga, não se sabe se inspirado nessa fonte de Rendufe, usou a expressão latina «nihil sibi» para dar título a este poema, o primeiro de uma obra intitulada igualmente Nihil Sibi, publicada em Coimbra, em 1948. Regra geral, o simbolismo da fonte está associado ao da água: aquela é o símbolo da vida, dado que dela jorra a água sempre necessária à vida. No entanto, a expressão que podemos encontrar no Mosteiro de Rendufe centra o simbolismo na disponibilidade da essência de fonte para dar e não tanto naquilo que dá. A fonte dá e nada guarda para si, pelo que o mais importante é a própria fonte, que está sempre à disposição, humildemente, do «caminhante», não tanto o conteúdo da doação, isto é, a água que dá. A fonte nada guarda para si e nada pede em troca do que dá. O ato desinteressado de dar é a natureza da fonte.
    A obra foi publicada, como já referido, em 1948, apenas três anos após o final da Segunda Guerra Mundial, uma fase em que a Europa estava em fase de recuperação de uma ferida tremenda. O horror descoberto nos campos de concentração nazis, a denominada Solução Final, deixou repleto de sofrimento e de incredulidade o ser humano e suscitou duas grandes questões: 1.ª) como pôde Deus permitir tamanha violência ao Homem; 2.ª) como pôde a humanidade ser capaz de tal atrocidade com o seu semelhante?
    A imagem do poeta metaforizada numa fonte tem uma intenção clara: associá-lo àquele que no mundo tem a função de não deixar morrer a grande mensagem e verdade da vida, presente em toda a obra – existir humanamente. O poeta pode morrer fisicamente, porém permanece vivo através da sua poesia, que não tem fim e vive eternamente.
    Em suma, o assunto do poema, em termos de figurações do poeta, aponta para o seu papel abnegado (enquanto criador de poesia).

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Análise do poema "Viagem", de Miguel Torga

 A Viagem

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar…

(Só nos é concedida

Esta vida que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos)


Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais: à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura…

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga, in Câmara Ardente


Sempre vi neste poema uma espécie de guia para a minha salvação pessoal; tal como diz o sujeito poético no primeiro verso, antes de chegar ao lugar que nos destinamos, é preciso aprontar «o barco da ilusão», expressão metafórica que designa o sonho ao mesmo tempo que valoriza o alcance do mesmo através da ação, do movimento voluntário em direção à concretização do que nos propomos obter na vida. Portanto, não é sentados confortavelmente que lá vamos chegar: há que “aparelhar” o nosso “barco”, há que carregá-lo com os nossos sonhos e, muito importante, há que “reforçar” a «fé de marinheiro»; se é preciso que “reforcemos” a fé em conseguir aquilo que acreditamos que nos vai dar sentido à vida, é porque uma ação com esse objetivo precisa de fé “extra” em nós mesmos e nas nossas capacidades; a fé em nós mesmos é difícil de conseguir quando tudo à nossa volta nada em desânimo e, também, quando já não é a primeira vez que tentamos levar uma viagem a bom porto e fomos obrigados a voltar para trás, nos vimos de novo no cais de onde partimos animados do desejo de fugir à «paz tolhida», ao tédio, ao já sobejamente conhecido, que perdeu a capacidade de nos fazer sentir vivos.

É imprescindível o tal reforço da “fé” também porque os nossos sonhos se situam «longe», sabemos que são difíceis ou até impossíveis de transformar em realidade e, como se isto não bastasse, «e traiçoeiro o mar». Somos nós os nossos traidores sempre que desistimos face às dificuldades que entrevemos sentados no cais a mirar esse horizonte longínquo que preferíamos que fosse já ali, ao virar da esquina; e mesmo quando todos e tudo nos parecem trair-nos, continuamos a ser nós os nossos traidores pelo facto de não nos sabermos ouvir e persistir em valorizar as opiniões alheias, as ideias correntes sobre o significado da felicidade ou do que é uma vida com sentido. E então, vivemo-nos a nós por intermédio dos outros. Esta será, penso eu, a nossa grande fraqueza e a razão principal que nos mantém cativos no velho cais à espera de tempos melhores que sabemos que não virão porque nada vem se não o formos buscar.

Entre parêntesis, o sujeito poético escreveu a razão pela qual nos devemos dar a tanto trabalho e enfrentar a pior dificuldade de todas, mesmo antes de fazer face ao mar encapelado: nós próprios; por isso, altera o pronome pessoal «eu» para «nós», sugerindo que o «eu» se dilui entre a massa humana da qual faz parte e que partilha com ela idênticos dramas, busca idênticas soluções para apaziguar a consciência da efemeridade a que todos estamos condenados porque «Só nos é concedida/ esta vida que temos» e encontrar, nesse curto tempo de vida, na maior parte do qual nos limitamos a tatear, insatisfeitos, em busca de algo de que precisamos e que, precisamente porque só temos uma vida para experimentar a aventura de estar vivo, nos faz viver sem rumo definido e, sobertudo, nos obriga a fazer escolhas sem saber se essas terão sido as mais convenientes.

Como só temos direito a uma vida, a nossa opção principal devia consistir em dedicar o tempo que nos foi concedido a ressuscitar um prazer de viver que niguém, exceto nós próprios, sabe o que é, ainda que possa ser mais pressentido do que sabido, como é «o velho paraíso/ que perdemos»; só se perde o que em tempos se possuiu e cada um de nós sofre devido a isso que já sentiu e deixou de sentir, talvez porque se foi deixando ficar para trás na alienação dos dias, acabando por se esquecer do seu projeto pessoal, à força de querer, consciente ou inconscientemente, viver segundo ideias e valores que não são os seus. A perda do que temos de mais genuíno paga-se caro e por isso é preciso “reforçar” «a fé de marinheiro» antes de “A Viagem”.

A determinação do sujeito poético é contagiante: «Prestes, larguei a vela/ e disse adeus aos cais: à paz tolhida.» É preciso resistir à tentação de olhar para trás e seguir, mesmo sabendo que nos espera «a revolta imensidão» do mar da vida desconhecida que vamos ter que enfrentar e, mesmo sabendo que perigos vários nos podem surpreender, tudo é melhor que apodrecer sentado no cais. É certo que não somos mais que «uma errante e alada sepultura» porque é essa a nossa condição e a ela não podemos fugir: somos mortais e a cada dia que passa mais nos aproximamos da morte; andamos sem rumo definido porque vivemos pela primeira vez e não conhecemos aonde nos levam os caminhos que escolhemos. Porém, cada um de nós tem um projeto para cumprir e esse pode tornar-se o nosso guia de orientação, se tivermos ânimo para levar a bom porto a nossa viagem.

Finalmente, há que ter lucidez e saber que nada, mas mesmo nada estará algum dia assegurado para nós, por muito que o desejemos; mas a escolha é nossa, esta, pelo menos, ninguém no-la tira: podemos escolher viver eternamente na cepa-torta, entediados de morrer até morrer ou podemos aceitar a aventura, sabendo que «em qualquer aventura,/ o que importa é partir, não é chegar.» Ora, ninguém se sente realmente vivo sem sonhos para concretizar e, pensando bem, quem os quer concretizar? Depois de realizados, os sonhos morrem de morte natural, portanto, sonhemos e partamos em busca disso que nos faz sentir vivos, tenhamos a coragem de deixar o cais sem a certeza de encontrar um porto de abrigo; todos os portos de abrigo são provisórios, mas nós somos gente do mar, eternos marinheiros.


A análise - brilhante! - não é nossa, mas antes foi retirada deste blogue [atena2010], infelizmente entretanto descontinuado.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Análise do poema "Sísifo", de Miguel Torga

Mito de Sísifo

Sísifo era filho de Éolo e rei da Tessália. Além disso, era o fundador da cidade de Éfira, mais tarde chamada Corinto, bem como dos jogos de Ístmia, os designados jogos Ístmicos. Era considerado uma pessoa muito habilidosa e o mais esperto dos homens, razão por que se dizia que era pai de Ulisses.
Certo dia, Sísifo avistou Zeus a raptar Egina, filha de Asopo, deus dos rios. Quando este o interrogou sobre o paradeiro da jovem, Sísifo não hesitou e denunciou Zeus, em troca de uma fonte de água para a sua cidade.
Como castigo, o pai dos deuses ordenou a Tanatos, o deus da morte, que o levasse para o reino dos mortos. No entanto, Sísifo, graças à sua astúcia, enganou e prendeu Tanatos. A prisão da divindade impedia que os mortos pudessem alcançar o Reino das Trevas, por isso foi necessário que Ares o libertasse. Então Sísifo, para escapar de novo à morte, engendrou novo ardil: instruiu a mulher que não lhe prestasse exéquias fúnebres, que não o sepultasse.
Quando chegou ao mundo dos mortos, queixou-se a Hades, soberano do reino das sombras, da negligência da esposa e pediu-lhe que o deixasse regressar ao mundo dos vivos, apenas por um curto período de tempo, para a castigar.
Porém, assim que se viu novamente à superfície, Sísifo recusou regressar ao mundo dos mortos. Pela sua falta de respeito em relação aos deuses, Hermes, o deus mensageiro e condutor das almas para o Além, decidiu castigá-lo pessoalmente: Sísifo foi condenado, no reino dos mortos, a empurrar eternamente uma rocha até ao cimo de uma montanha. Uma vez atingido o cume do monte, a pedra caía invariavelmente e regressava ao ponto inicial. Este processo seria sempre repetido até à eternidade.


Tema

O tema do poema é a luta permanente e persistente do homem para alcançar os seus objetivos, não se contentando com menos que o todo, o absoluto: “De nenhum fruto queiras só metade” – v. 10).


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – O sujeito poético aconselha ou incentiva o ser humano a não desistir e a ser ambicioso, dando como exemplo uma caminhada.

2.ª parte (2.ª estrofe) – O sujeito poético defende que o ser humano deve ser persistente na realização dos seus sonhos.

* * * * * * * * * *

1.ª parte

O sujeito poético aconselha o «tu» a recomeçar o percurso de vida a cada momento, de forma tranquila e persistente, ainda que o caminho seja difícil: “Nesse caminho duro”.

O «eu» usa o verbo «recomeçar» no modo imperativo (e não o verbo «começar»), visto que não se está a referir ao início de um percurso, mas a relembrar ao «tu» a necessidade de recomeçar em cada momento.

O modo imperativo tem um valor de exortação e incitamento do «eu», dirigido ao «tu».

As reticências traduzem uma ideia de continuidade, reforçando o valor do prefixo «re» da forma verbal «recomeçar»: a tarefa já foi executada anteriormente, ou seja, é necessário fazer um caminho que já se percorreu, tendo consciência de que tudo tem de se reconstruir e refazer. É necessário recomeçar repetidamente.

O «eu» lírico aconselha que a tarefa seja encarada com tranquilidade e vagar: “Se puderes, / Sem angústia e sem pressa.” – vv. 2-3.

Ele alerta o «tu» para a dificuldade do caminho (“Nesse caminho duro”), mas procura suavizar a ideia através de uma atitude mais otimista, que valoriza o esforço empreendido: a pessoa a quem o «eu» se dirige é incentivada a assumir-se como senhor(a) do seu destino e a usufruir das sucessivas oportunidades que a vida lhe oferece na busca de realização, trilhando o seu caminho de forma autónoma: “os passos que deres / […] Dá-os em liberdade”. O recomeço deve ser feito sempre em liberdade, isto é, de forma autónoma, por livre escolha.

O «tu» deve ser também perseverante (“Enquanto não alcances / Não descanses” – vv. 8-9), inconformado e exigente (“De nenhum fruto queiras só metade” – v. 10). A metáfora presente neste último verso realça a importância de lutar até ao fim pela concretização dos seus sonhos, não os deixando pela metade.

As formas verbais no presente do conjuntivo («alcances», «descanses», «queiras») traduzem os conselhos do sujeito poético relativos ao valor da persistência e do esforço na construção do projeto futuro.

As consoantes sibilantes e os veros curtos do início do poema conferem-lhe um ritmo lento, o qual se adequa à serenidade que o sujeito poético defende (v. 3).

2.ª parte

O pomar está cheio de frutos que, mesmo depois de alcançados e degustados na totalidade, deixarão na boca do Homem um sabor a falsidade.

O sonho é aquilo que fez a humanidade avançar, pois obriga o ser humano a lutar pela sua concretização: “Sempre a sonhar.” (v. 14),

É possível associar estes versos a outra figura da mitologia: Tântalo. O seu castigo consistia na perpétua tentativa frustrada de alcançar os frutos que saciariam a sua fome. Assim se justifica que o sujeito poético aconselhe a ir “colhendo / Ilusões sucessivas no pomar”. São os frutos que, se não são proibidos, pelo menos são apetecíveis. Porém, não são totalmente satisfatórios: por mais que desfrutemos deles, nenhum «fruto» se exime da sua falsidade. Daí que o sujeito poético / ser humano “nunca [fique] saciado”.

A realidade (“Acordado” – v. 16) é conotada tanto com a concretização, como com o malogro dos sonhos, ideia sustentada na presença do nome «logro», que tanto pode significar «concretização de algo» como «engano».

No verso 18, o sujeito lírico dirige novo apelo ao «tu»: que se recorde de que a sua condição de ser humano lhe confere a responsabilidade de ter uma existência digna, isto é, uma vida na qual não se resigne à mediocridade e em que lute pelos seus ideais.

Os versos 19 e 20 concretizam a oposição entre o sonho e a realidade. A loucura associa-se ao sonho, na medida em que este se relaciona com a capacidade de perseguir algo que parece irreal. No entanto, é a aptidão de assumir esta loucura com «lucidez», isto é, com noção concreta da realidade, que permite ao Homem realizar um percurso em direção à concretização dos sonhos, em virtude do qual lhe será possível construir-se a si próprio e, portanto, “reconhe[cer-se]. (adaptado de Entre Nós e as Palavras 12, Alexandre Pinto e Patrícia Nunes, Santillana).

O Homem é um ser lúcido («Acordado», «lucidez») e a sua condição enquanto tal obriga-o a cair e a levantar-se, a ser derrotado e a lutar de novo, sempre consciente dos seus atos.

Em suma, nos três versos finais, ressalta a ideia de que o ser humano não pode esquecer a sua condição humana e que a loucura – isto é, o sonho – só é verdadeiramente seu quando é ele próprio a controlá-lo.


Título

▪ No mito grego, Sísifo é condenado a realizar eternamente uma tarefa absurda, pois os seus esforços são inglórios e a tarefa tem de ser continuamente reiniciada.

▪ No poema, o mito de Sísifo associa-se à condição humana, pois, tal como ele, o Homem é obrigado a reiniciar constantemente as suas lutas, que redundam frequentemente em fracasso. Contudo, o Homem mostra-se digno pela sua capacidade de recomeçar continuamente o percurso e continuar a sonhar a concretização desses sonhos.

▪ Sísifo é, afinal, uma metáfora do caminho do Homem em direção à concretização do sonho. É o símbolo do esforço incessante e persistente, presente no gesto sacrificial de rolar continuamente a pedra até ao cimo da montanha, bem como do inconformismo e do incentivo à procura de liberdade e de luta pela concretização dos sonhos. E é isto que dá sentido à vida do ser humano.

▪ Por outro lado, o mito assemelha-se ao trabalho do poeta: a criação poética. De facto, Sísifo, perante a tarefa que repete quotidianamente (rolar a pedra até ao cimo da montanha, sabendo que cairá quando chegar ao cume e que terá de a fazer subir novamente), recupera e recomeça o seu trabalho sem fim.

▪ De modo semelhante, o trabalho de criação poética, para o poeta, nunca estará completo, daí que o seu trabalho não tenha também fim com as suas palavras, os seus poemas. É uma tarefa infindável, tal como a de Sísifo.


O poema enquanto hino à condição humana

Óscar Lopes afirma que este poema é um hino à condição humana, como parece sugerir o verso 18: “És homem, não te esqueças!”.
De facto, a composição valoriza o sonho e a liberdade como valores que devem estar na base da ação humana.
Por outro lado, defende o espírito de resistência e de insubmissão do ser humano, espírito esse que é simbolizado pelo esforço de superação sugerido pela retoma sucessiva da tarefa, por Sísifo.
Além disso, o poema apresenta o Homem como um ser condenado a carregar a sua cruz até ao fim da sua vida, «sem angústia e sem pressa», «em liberdade» (isto é, por livre escolha), até alcançar o «fruto desejado».

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Análise de "Prospeção", de Miguel Torga

Tema

O tema é a busca de si mesmo por parte do sujeito poético, descrevendo o trabalho árduo que tem de realizar para tal.
Por outro lado, a composição poética aponta também para o drama da criação poética, associada à ideia de pesquisa incessante a que o poeta tem de se dedicar, procurando descobrir-se e uma explicação para o mundo que o rodeia, questionando-o e não se conformando com a solidão a que o ser humano está frequentemente votado.


Estrutura interna

Neste ponto da análise, socorremo-nos da proposta apresentada pelos autores do manual Encontros 12, da Porto Editora, pág. 193, sabendo que há outras possibilidades (como, por exemplo, dividir o texto em dois momentos, coincidentes com as estrofes que o constituem: na 1.ª, encontraríamos a procura, por parte do «eu» lírico, de um “tesoiro sagrado”; na 2.ª, teríamos a especificação dessa procura, identificando as etapas que deve superar para se encontrar, fazendo uso da poesia enquanto arma ou meio para o conseguir).
De acordo com a proposta referida, o poema poderá dividir-se nos seguintes três momentos:

1.ª parte (vv. 1-2): o sujeito poético estabelece o conceito de “prospeção”, restringindo-o (não visa a descoberta de minerais preciosos, mas de si mesmo).

▪ O sujeito poético começa por afirmar que não procura oiro, algo material, um minério precioso. De facto, o que ele busca é interior, pois situa-se dentro de si, no seu íntimo: “Oiro dentro de mim…” – v. 2. Ele deseja encontrar o que de mais puro há em si.

▪ Se o ouro é um metal precioso e representa algo valioso, conotado com a riqueza material, a procura do sujeito poético corresponde a algo mais valioso para o ser humano: o oiro, o filão mais rico e profundo da sua identidade, isto é, ele mesmo, o conhecimento de si próprio.

2.ª parte (vv. 3-14): o sujeito poético concretiza o objetivo da sua busca – encontrar-se a si mesmo (dentro de si) – e os trabalhos desenvolvidos para a sua consecução (“Cavo, / Lavo, / Peneiro”).

▪ O sujeito poético procura o seu “tesoiro sagrado”: ele mesmo, a sua essência, o “tesoiro” de interrogações de “nenhuma certeza” que as pequenas certezas do dia a dia (“mil certezas de aluvião” – hipérbole) tentam calar (“Soterrada”).

▪ Ele procura descobrir o seu verdadeiro “eu”, isento de influências de terceiros: “Busco apenas aquela…”.

▪ O processo de autoconhecimento envolve um trabalho árduo: “Cavo, / Lavo, / Peneiro” (vv. 10-12). Estas três formas verbais remetem para o trabalho árduo da prospeção do ouro: o prospetor cava o solo, lava o que dele extrai e depois peneira o que resta, de modo que na peneira fiquem presas as pepitas. É um trabalho artesanal árduo.

▪ De modo semelhante, a prospeção que o sujeito poético efetua no seu íntimo é árdua: ele procura, analisa e investiga o seu interior, uma atividade que é contínua, incessante e sistemática. Em suma, a enumeração metafórica das três formas verbais traduz a incansável busca de si próprio por parte do “eu”.

▪ Os versos 11 a 13 sugerem a duplicidade da natureza do trabalho: os sentidos das formas verbais sugerem tanto uma pesquisa interior quanto uma pesquisa prática, organizadoras do trabalho poético.

▪ A metáfora da busca da poesia enquanto mineração está presente tanto em sentido metafísico como alquímico.

▪ A oração coordenada adversativa dos veros 13 e 14 clarifica a finalidade do sujeito: “Mas só quero a fortuna / De me encontrar”.

3.ª parte (vv. 15-18): o sujeito poético reconhece que o seu objetivo é vasto.

▪ A comparação do verso 17 (“Puro como um deserto”), a metáfora e a adjetivação do seguinte (“Inteiramente nu e descoberto.”) sugerem a busca da própria essência poética por parte do sujeito poético. A nudez simboliza aquele que espera vestir-se, isto é, fazer-se e preencher-se, e de forma total, visto que a sua nudez é inteira, como se infere do advérbio de modo “inteiramente”.

▪ De acordo com os versos 15 e 16, é através dos seus versos que o «eu» encontrará as respostas que procura, em busca de si próprio.

▪ Estilisticamente, o poema é dominado pela metáfora em torno do «ouro» e da sua prospeção, com a finalidade de exprimir a beleza da incansável busca de si próprio, o autoconhecimento, o encontrar da sua identidade.

▪ O recurso ao presente do indicativo sugere a continuidade do processo de autoconhecimento, da busca de si próprio.


Título

O título (“Prospeção”: pesquisa destinada a descobrir filões ou jazidas de uma mina) aponta para a procura de algo, neste caso da própria identidade, de si mesmo.


Retrato do sujeito poético

O sujeito poético mostra-se, desde o início, determinado e consciente da sua condição e da sua solidão, a qual o faz sentir-se vazio, sem se ter ainda encontrado.
O seu objetivo está claramente identificado: encontrar o que há de mais puro em si. A busca incessante, durante a qual se mostra incansável, que enceta para se encontrar é semelhante à que o poeta faz para versejar. De facto, produzir poesia requer a mesma procura, o inconformismo, a luta intensa e determinada de quem não pretende copiar ou seguir modelos impostos, mas descobrir o seu próprio caminho.


Arte poética de Torga

A poesia é apresentada, metaforicamente, como um trabalho árduo, persistente e constante sobre a palavra, o que implicaria pesquisa, esforço, uma busca interior, para tentar encontrar a sua essência através da poesia. A arte poética, a criação poética implica um trabalho aturado e um esforço persistente.
A criação poética é uma tarefa de pesquisa incessante que o poeta tem de realizar para se encontrar e conhecer. É um assumir de consciência de que o trabalho de autoconhecimento é, de facto, interminável e duro, conduzindo a um permanente inconformismo.


quarta-feira, 18 de março de 2020

Análise de "Orfeu rebelde"

O mito de Orfeu

Orfeu é uma figura da mitologia grega, filho de Calíope, musa da poesia épica, e de Apolo, deus da poesia e da música, de quem recebeu uma lira como presente.
Orfeu era um poeta que se celebrizou pelo seu canto melodioso, que encantava a própria Natureza. De facto, os sons da sua lira domavam as feras, que se deitavam a seus pés, e atraía também seres humanos e a própria Natureza.
Casou-se com Eurídice, seu grande amor. No casamento, esteve presente Himeneu para abençoar a união, mas o fumo da sua tocha fez lacrimejar os noivos, o que não trouxe augúrios favoráveis. Pouco tempo depois, Eurídice passeava com as ninfas, quando foi surpreendida pelo pastor Aristeu, que, ao vê-la, se apaixonou perdidamente e a tentou conquistar. Na sua fuga, Eurídice pisou uma serpente, que a mordeu no pé e lhe causou a morte.
Orfeu, desesperado e incontrolável, desceu ao reino dos mortos para a reaver. Perante os deuses do Inferno, cantou o seu desgosto e o seu amor, dizendo que, se não lha devolvessem, ele próprio ficaria com ela no reino dos mortos. Graças ao seu canto, conseguiu comover Hades e Perséfone a autorizarem o regresso de Eurídice ao mundo dos vivos, mas com uma condição: em caso algum, Orfeu poderia virar-se para trás, olhá-la, enquanto não tivessem transposto os limites infernais e alcançado o mundo superior, a superfície. Caminhando na frente, Orfeu estava quase a chegar aos portões do Hades e a atingir o seu objetivo, mas, com receio de ter sido enganado por aqueles deuses, virou-se para trás para confirmar se a esposa o seguia. Eurídice, lavada em lágrimas, foi imediatamente levada de volta para o mundo dos mortos. Orfeu tentou alcança-la, mas sem sucesso.
Profundamente triste, permaneceu na margem do rio durante sete dias, sem comer nem dormir, suplicando o regresso da esposa. Depois, vagueou, triste e solitário, pelo mundo, sem nunca mais querer saber de mulher alguma e repelindo todas as que o tentavam seduzir, até que um dia as mulheres da Trácia, enfurecidas pelo seu desprezo, o mataram e lançaram o seu corpo ao rio Ebro, que acabou por ser levado até à ilha de Lesbos, onde, durante muito tempo, a cabeça de Orfeu, presa numa rocha, proferia oráculos. A sua lira foi colocada num templo de Lesbos.
Outra versão do mito sugere que as musas o enterraram em Limetra, num túmulo onde o rouxinol canta mais suavemente do que em qualquer outra parte da Grécia, e a sua lira foi colocada por Zeus entre as estrelas. Orfeu encontrou por fim Eurídice e, abraçando-a, nunca mais deixou de a contemplar.

NOTA: Miguel Torga reutiliza muitos mitos gregos, tirando partido do seu significado e aplicando-os quer a si mesmo quer à sua terra. No caso do mito de Orfeu, destaca a rebeldia de quem não aceita os limites que lhe são impostos.


Assunto: rebelde, o sujeito poético pretende gravar, através do canto (a poesia), a fúria de cada momento, afirmar a sua rebeldia face à transitoriedade da vida e à inevitabilidade da morte.


Tema: a revolta contra a inexorabilidade do tempo e a morte / o ofício de poeta.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Autocaracterização do sujeito poético.

▪ O sujeito autocaracteriza-se como um poeta rebelde cuja poesia corresponde à expressão de si mesmo («canto como sou»), da sua intensidade, da sua revolta, do seu perene sofrimento. Autocaracteriza-se igualmente como um poeta sincero («canto como sou»), autêntico enquanto ser, no seu sofrimento e nos seus sentimentos («Violências famintas de ternura»).

▪ O sujeito poético assume-se como um rebelde – a rebeldia de Orfeu – e revolta-se cantando como um possesso (comparação que traduz a fúria com que o sujeito poético exprime o seu «canto», a sua poesia).

▪ Essa fúria, essa violência constituem um grito contra a morte e contra a passagem inexorável do tempo, são motivadas pelo desejo de lutar contra a passagem do tempo e a efemeridade da vida, através da eternização dos momentos permitida pela escrita.

▪ O sujeito poético pretende que a sua voz obsessiva e esse grito contra o tempo se prolonguem para a eternidade, daí a gravação «a canivete» (metáfora), para que a própria evolução da casca torne mais duradoura e viva a sua revolta.

▪ De facto, a metáfora da «casca do tempo» expressa a ideia de que a casca eterniza a sua revolta, no entanto, contraditoriamente, estaremos perante algo efémero e aparente – a gravação da fúria de cada momento – por ser apenas casca. Afinal, o que o sujeito poético procura é encontrar a eternidade na realização poética, à maneira clássica.

2.ª parte (2.ª estrofe) – Oposição entre os «outros» e o «eu».

▪ O sujeito poético recusa a poesia de outros poetas, românticos, de canto suave e harmonioso, descomprometidos da realidade, que se conformam («Outros, felizes, sejam rouxinóis…» – v. 7 – metáfora e ironia relativamente à aceitação fácil da vida).

▪ Pelo contrário, o «eu» distancia-se desses outros poetas, pois não pretende exprimir emoções, mas um canto agressivo e violento, de revolta, de desafio (poesia romântica/descomprometida versus poesia de revolta), um grito violento revelador da falta de ternura. Então, recorre à violência, ou melhor, a uma expressão violenta e agressiva para vencer o que o instinto lhe adivinha e ele recusa: a inexorabilidade da morte e a opressão que se abate sobre ele (vide versos 8-11). O sujeito poético é um ser atormentado e revoltado que desafia as leis do tempo e da vida (v. 10).

▪ A metáfora «…. O céu e a terra, pedras conjugas…» (v. 9) exprime a união de todas as forças que se conjugam para triturar o sujeito, para o oprimir – «Do moinho cruel que me tritura…» (v. 10), metáfora e personificação que evocam a passagem inexorável do tempo (que provoca o sofrimento permanente do «eu») pelo movimento circular do moinho e contra a qual ele se revolta. O céu e a terra unem esforços para atormentar o sujeito poético, um espírito moído pelo sofrimento da vida que roda sem fim, como se de um moinho se tratasse, o moinho do tempo cuja mó é, precisamente, o céu e a terra conjugados.

▪ A personificação e a comparação presentes nos versos 9 a 11 [«… o céu e a terra (…) / Saibam que há gritos como há nortadas / Violências famintas de ternura…»] exprimem a força e a violência do grito do sujeito poético contra a passagem do tempo, semelhante à violência e à força dos elementos da Natureza, como as nortadas Por outro lado, a agressividade do «eu» traduz igualmente a aspiração ao afeto, que ele não possui.

▪ De facto, a personificação de sabor metafórico presente no verso 12 exprime a força e a necessidade de amor e ternura que o sujeito poético sente.

3.ª parte (3.ªestrofe) – Função interventiva da poesia.

▪ O sujeito poético afirma-se possuidor do instinto dos animais – que o leva a adivinhar a inevitabilidade da morte – e do corpo de um poeta que a recusa e contra ela luta através do seu canto.

▪ A comparação e a metáfora dos versos 15 e 16 («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa.») reafirmam a postura de rebeldia do sujeito poético e a ideia da poesia como arma e a palavra e a liberdade de expressão são veículos de denúncia.

▪ Isto remete para o conceito de poesia sugerido pelo poema: o sujeito poético canta para agir sobre o (seu) tempo, assumindo uma posição interventiva. De facto, a poesia constitui um grito, um refúgio, um desabafo, face à consciência da passagem triturante do tempo e à iminência da morte. Estes recursos estilísticos emprestam à criação poética conotações de luta: o canto poético funciona como uma arma.

▪ Os dois últimos versos do poema sugerem que o canto do sujeito poético oscila entre a exaltação e o terror em relação à realidade, visto que esta, apesar de toda a sua beleza, é caracterizada pela omnipresença da morte

NOTAS:

1.ª) Miguel Torga socorre-se do mito de Orfeu para dar voz à sua rebeldia, mas desenvolve-o de forma diferente do tratamento que lhe foi dado pelos clássicos. Por um lado, o Orfeu mitológico representa a rebeldia por causa do amor, enquanto o Orfeu de Miguel Torga simboliza a rebeldia motivada pelos seus limites e pelos limites humanos, sobretudo a impossibilidade de travar a passagem inexorável do tempo e a impossibilidade de vencer a morte. O poeta, simultaneamente, aproveita e subverte o mito: o poeta é o próprio Orfeu, o que significa que se automitifica.

2.ª) Por outro lado, de acordo com o mito grego, Orfeu caracterizava-se por ser suave e encantatório, enquanto o canto do sujeito poético é caracterizado pela intensidade, pela força, revelando a face rebelde e revoltada de um Orfeu desafiador.

3.ª) A poesia é entendida como uma arma do poeta, utilizada em legítima defesa: «Canto como um possesso», «desafio», «moinho cruel», «gritos», «nortadas», «violências». Essa arma serve de arma de defesa do sujeito poético contra o esquecimento, a morte, a passagem do tempo. A poesia é arma de combate – a única arma que pode vencer a morte; é uma poesia de desespero humanista.

4.ª) Como poeta, Miguel Torga considera-se chamado à missão suprema de gritar a sua solidariedade humanista com todos os homens, sobretudo os que são mais abandonados, e dar-lhes esperança.

5.ª) O humanismo de Torga é o humanismo de um revolucionário, de um revoltado e, mais do que um revoltado, de um rebelde. O canto poético é o seu instrumento de combate, «em legítima defesa» dos valores que «articulam» o seu humanismo, que não é de «abdicação mas de confronto».

6.ª) A mensagem do poema remete para o drama interior do homem e a sua obstinação em lutar contra esse drama, patente na imagem órfica presente nesta atitude do poeta perante a poesia e a morte, ou mesmo perante o amor feito «ternura».


Caracterização do sujeito poético
▪ O sujeito poético é um poeta revoltado e rebelde (“Orfeu rebelde” – v. 1), não por ter perdido a amada, como Orfeu, mas por causa da passagem do tempo e da transitoriedade da vida.
▪ É igualmente um ser sincero, autêntico e genuíno («Canto como sou» - v. 1) e intenso («Canto como um possesso» - v. 2).
▪ É um ser sofredor, atormentado e revoltado pela passagem inexorável do tempo e pela morte, que desafia as leis do tempo e da vida («Que o céu e a terra, pedras conjugadas / Do moinho cruel que me tritura» – vv. 9-10), faminto de ternura («Violências famintas de ternura» – v. 12).
▪ É, assim, um poeta que luta contra a passagem do tempo e contra a morte.
▪ Exprime a dolorosa condição do ser humano («Bichinho instintivo que adivinha a morte» – v. 13), mas procura superá-la, recusando-a e afirmando a sua identidade.
▪ O seu canto constitui uma arma, uma arma de defesa e complexa («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa. / Canto, sem perguntar à Musa / Se o canto é de terror ou de beleza.» – vv. 15-18).


Título

Orfeu é uma figura mítica ligada à poesia, o que se adequa ao poema de Torga, cujo tema é a conceção do ofício de poeta.
Por outro lado, o poeta identifica-se com Orfeu, dado que, tal como sucedia com a figura da mitologia, também o seu canto tem um forte impacto naqueles que o rodeiam,
Por sua vez, o adjetivo «rebelde» corresponde à conceção de poeta veiculada pelo poema: um poeta da revolta e da intensidade e não suave, harmonioso e encantatório como o de Orfeu.
Por último, tal como Orfeu, que procurou lutar contra recorrendo ao seu canto (foi assim que resgatou Eurídice do reino dos mortos), também o poeta se revolta contra a morte e procura combatê-la e reverte-la através da sua poesia.



Outros recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico

Estrofes: o poema é constituído por três sextilhas.
Rima:
- esquema rimático: ABCDCD/ABCDCD/ABBCBC;
- os dois primeiros versos de cada estrofe são brancos, exceto o segundo da última estrofe, que emparelha com o seguinte;
- os quatro últimos versos de cada estrofe apresentam rima cruzada;
- consoante («canivete»/«compromete»);
- rica («canivete»/«compromete») e pobre («momento»/«sofrimento»);
- grave («canivete»/«compromete»).
Métrica irregular: versos maioritariamente decassilábicos, exceto o 2.º da 1.ª estrofe e os 3.º e 5.ºda 3.ª estrofe (de 6 e 8 sílabas).
. Ritmo oscilante, dadas as características da rima e da métrica.
. Vários casos de transporte contribuem para o ritmo do poema.
. Aliteração do fonema /c/ ao longo do poema, conjugada com a aliteração do fonema /t/, que remete para a luta e rebeldia do sujeito poético.

2. Nível morfossintático

. A adjetivação (“rebelde”, “cruel”, “famintos”, “instintivo”, “legítima”) é sugestiva de rebeldia e também de ironia no caso do adjetivo felizes.
. Predomínio de verbos e nomes expressivos de ação, força, agressividade, rebeldia, ao serviço de um estilo viril.
. Verbos:
– domínio do presente do indicativo: sugere a continuidade da luta, um processo interminável, e do sentimento de revolta do sujeito poético;
– presente do conjuntivo: o desdém;
– pretérito imperfeito do conjuntivo: a hipótese.
. Predomínio de sensações auditivas.


Marcas torguianas e presencistas do poema:
- a superlativação do “eu”;
- a emotividade da linguagem;
- a aguda da consciência da função do Poeta e da Poesia;
- o humanismo revolucionário.


Síntese

Miguel Torga é um poeta órfico, no duplo sentido em que relaciona o orfismo com o glorioso Orfeu, poeta, ora com as práticas doutrinárias que inculcam a crença de que o corpo é a prisão da alma e de que a purificação do pecado se obtém pela mortificação do corpo, pela abstenção de certos atos e pelo culto de certos ritos.
No primeiro sentido, o mais glosado dos mitos helénicos é Orfeu, patrono emblemático da poesia, o portador da lira cuja música não só subjuga a própria natureza como Caronte e os deuses do Hades, das trevas infernais em que estava Eurídice nas suas “faixas de morta, incerta, suave e sem impaciência” (Rilke). No segundo sentido, o orfismo torguiano revela-se na contínua frequência com que o poeta introduz na natureza do ato poético o ingrediente ascético e catártico que lhe dão eficácia, necessidade e sentido de único vínculo e veículo que encaminha o nosso rumo interior para o projeto superior da Poesia.
À reinvenção deste mito presidem paradoxalmente as metáforas de Orfeu Rebelde, Orfeu Cansado e Orfeu Mártir.
É introduzida aqui uma rebeldia que tem como reverso o pânico de quem se deu conta que as cordas da lírica órfica são “grades” e de quem, irremediavelmente mergulhado na desafinação da melodia, deliberadamente perdida, quer “ao menos falhar em tom agudo”, insistindo em transformar cada novo som discordante num “grito/Que no seu desespero diga tudo”.
Esquecido da sua missão de ressuscitar Eurídice, Orfeu introduz no canto e na melodia que enterneciam e domavam os deuses das trevas infernais – “a fúria de cada momento”, desinteressado de “se o canto é de terror ou de beleza” e apenas determinado a usá-lo “em legítima defesa”, a ver se o seu canto compromete a eternidade no seu sofrimento.
De resto, a estratégia da arte poética torguiana da procura do paradigma formal e a tática de rotura e desvio que lhe é implícita são o próprio absoluto da contradição órfica – inerente como foi sempre o orfismo à soberania e ao culto de Dioniso, deus da fúria, da desordem catabática, meta da divina demência ou da divina intoxicação.
Rebelde, Orfeu – Torga, os dedos enclavinhados nas grades da prisão da lira, o corpo rasgado, por dentro, pelos golpes de paixão da alma encarcerada, por fora, pelo ferro dos versos da emoção endurecida, nunca deixará de ser o apaixonado para quem é tão necessário conseguir dos deuses a descida aos infernos em busca de Eurídice como ser o rebelde que contraria a lei de a não olhar para a não perder.
Toda a poesia torguiana está cheia desse imperativo órfico em virtude do qual só na autoflagelação e na catarse do exercício poético a nossa perfuração existencial adquire a direção ascensional no sentido purificador da super-existência pela Poesia.
É, com efeito, necessário que Orfeu desça aos infernos à procura de Eurídice, não para a trazer consigo para as alegrias domésticas de uma felicidade familiar, mas para a reintroduzir na inessencialidade da noite – dessa noite que, sendo o limite do dia, é também o seu pressentimento e a sua promessa. E é igualmente necessário que Orfeu suba de novo à luz do dia, à precisão luminosa da solidão do seu corpo, à cintilação do seu olhar portador da morte que é a profundidade da vida, no mesmo sentido em que a Poesia é a profundidade do absurdo do mundo sem Deus e em que o esquecimento é a profundidade da memória. Cúmplice do esquecimento e da morte, a Poesia é, portanto, a imagem do excesso da vida incomportável no esquecimento e na morte que o olhar do rosto rebelde reintroduz nas trevas e na noite, perfil da luz e do dia (cf. “Descida aos Infernos”).




 

Relação do mito com a poesia de Torga
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