Português: Carlos Drummond de Andrade
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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Análise de "Nova canção do exílio", de C. Drummond de Andrade


             Este poema, constituído por 17 quadras e 1 dístico, foi publicado originariamente na Revista de Domingo do Jornal do Brasil em 1978 e republicado em Poesia numa hora dessas? em 2002, e traça um quadro simultaneamente humorístico e sinistro do final da década de setenta do século XX.

            Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o campeão foi o Guarani.

            Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais futebol por lá”.

            Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção, comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de prosseguir em prova.

            Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia, e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –, comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general (Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31 de dezembro de 1978.

            Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois, de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta (mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões. Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no Mundial do presente ano.

            Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção» pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas, que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta. Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”). A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e 1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas: “Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”. De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares, visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.

            As estrofes seguintes focam outras questões: poluição, assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade, não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na urbe se morre.

            A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real, concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.

            Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras», agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia. Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso aglomerado de figueiras.

            Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros «primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos, que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo), tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de Oliveira, Luana Piovani, etc.

            A nona estrofe explicita o quadro económico e político do ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em 1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo, o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores, substantivos, “mesmo com todo o problema”.

            As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”. A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que, para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras, empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do século XX, assente no «deboche».

            A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de 1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”, palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia» constituem uma rima interna e formam anagramas.

            A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa (“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de 1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”. A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”) reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético «atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o que já se passou há bastante tempo?

            O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte. Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de continuidade.

            As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção “Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.

            A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar para o governo norte-americano.

            Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática, casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a figura do prefeito biónico.

            A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar», conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta (deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média, nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural. De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama, Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos milhões de telespectadores.

            O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.

            Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar (que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre” foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.

            A situação é dramática: as instituições estão contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e reflexão.

 

Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de Luís Fernando Veríssimo”.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Análise de "A Carne é triste depois da felação", de C. Drummond de Andrade


             Este poema integra o livro póstumo de Carlos Drummond de Andrade, O amor natural, publicado em 1992, e é caracterizado por um tom claramente melancólico.
            O sujeito poético começa por declarar que “A carne é triste depois da felação”. O nome «carne» materializa a humanidade que há no homem, ou seja, “A carne é triste” corresponde à humanidade, ao homem, à própria existência, que é (são) triste(s). Por seu turno, o nome «carne» é o tecido muscular, o músculo, pelo que podemos entender a «carne» como referindo-se ao pénis, que, por sua vez, constituirá uma metonímia do corpo. Assim sendo, o pénis é triste depois da felação, nome que se refere ao gozo sexual provocado pela sucção.
            Será que antes da felação a carne já era triste? Ou se é apenas “Depois do sessenta-e-nove [que] a carne é triste”? A repetição do adjetivo «triste», caracterizando o pós-felação e o pós-sessenta-e-nove, indicia que o «eu» se sente dececionado e insatisfeito, ideia que parece ser confirmada pelos versos “Não há mais nada / após esse tremor?” O gozo parece conduzir ao vazio, à incompletude e, desse modo, à melancolia. O próprio prazer é posto em questão, por causa da sua natureza aparentemente contraditória (“tão fundo na aparência mas tão raso / na eletricidade do minuto?” e até antonímica: “fundo na aparência” mas “tão raso”.
            A forma do poema parece mimetizar o sexo oral: os dois primeiros versos têm 11 sílabas métricas; os dois seguintes, 10; os dois pares subsequentes são formados por um eneassílabo (9 sílabas métricas) e um decassílabo. A alternância 9-10, 9-10 forma em si mesma um par e, também, aponta para um vai e volta. Assim sendo, este emparelhamento e movimento entre pares de versos (dois hendecassílabos, dois decassílabos e dois eneassílabos) parecem remeter (mimetizar) para o sexo oral, sugestão que é reforçada pelo penúltimo verso: “e gosma”. Note-se como este verso é breve, sugerindo o instante pontual do prazer do orgasmo. O último verso – “escorre lentamente de tua vida” – indicia o momento da ejaculação. Estes dois versos complementam-se: “e gosma” significa “e goza” e de “escorre lentamente de tua vida” parecem pulsar jatos de sémen (inclusive na alternância entre sílabas tónicas e átonas). Convém ainda atentar no predomínio de sons consonânticos oclusivos (/g/, /k/, /t/ e /v/),que se pronunciam fechando-se totalmente o aparelho fonador, sem dar espaço para o ar sair, o que sugere o “emparedamento” do sujeito poético perante a constatação imediatamente posterior ao orgasmo de que “Já se dilui o orgasmo na lembrança”, não havendo “mais nada”. O que resta? A melancolia e a tristeza que sucede à felação.

sábado, 11 de setembro de 2021

Análise de "O seu santo nome"

             O título do poema remete para a Bíblia, que, em determinado passo, adverte o crente para não invocar o santo nome de Deus em vão.

            Neste caso, o «santo nome» em causa refere-se ao amor, apresentado como tão divino quanto o símbolo do sagrado. Assim sendo, não deve ser pronunciado em vão.

            Toda a composição poética assenta na anáfora, uma anáfora de carácter negativo. De facto, o advérbio de negação que está presente nos versos 1, 2, 3, 4, 5 e 8 estrutura esta espécie de lição sobre o amor em termos negativos, dado que o sujeito poético enumera um conjunto de atitudes que não devem ser tomadas face ao sentimento amoroso, para que o leitor aprenda o comportamento «correto» a adotar face ao amor.

            O primeiro verso do texto sugere, desde logo, tratar-se de uma palavra sagrada, daí ser necessário ter respeito por ela: “Não facilite com a palavra amor”. De seguida, o «eu» poético sugere que é perigosa, fugidia no que diz respeito ao seu significado, podendo mesmo gerar ambiguidade e complicações para quem a emprega. Mais do que usar de forma leviana a palavra «amor», o sujeito lírico defende claramente que, antes, se deve conhecer o seu valor, ou seja, deve saber-se primeiramente sentir aquilo para que ela remete.

            Note-se que a negação presente no poema é totalmente irónica. De facto, o «eu» adverte o leitor/tu sobre os perigos do amor, mas acaba por incitar à sua procura, no contexto de um mundo sem sentido e insensível. Neste seguimento, o último verso aponta para a necessidade de sentir. O santo nome do amor não deve ser pronunciado, mas, antes, sentir-se.

sábado, 25 de janeiro de 2020

Análise de "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade

Este poema foi publicado pela primeira vez em 1930, integrado na sua obra inicial: Alguma Poesia. É constituído por uma única estrofe de sete versos (sétima) livres e não rimados, que aborda o tema das dificuldades e os desencontros amorosos. Tal noutras poesias de Carlos Drummond de Andrade, o que está em equação nesta é a solidão do sujeito no mundo e a sua dificuldade em estabelecer laços com aqueles que o rodeiam, ou seja, os amores desencontrados.

Podemos dividir o poema em duas partes. Na primeira, constituída pelos três versos iniciais, são apresentadas várias paixões não correspondidas: todos os indivíduos, exceto Lili, amavam sem serem correspondidos. A confusão de sentimentos e os desencontros sucessivos caracterizam a história que o sujeito poético está a narrar, o que nos permite concluir que o amor não é fácil de encontrar e ainda menos de concretizar.
Na segunda parte, composta pelos quatro versos seguintes, o sujeito lírico dá-nos a conhecer o destino das personagens que conhecemos anteriormente: o exílio de João nos Estados Unidos, o recolhimento de Teresa no convento, o desastre que matou Raimundo, o título de tia (imposto?) a Maria, o suicídio de Joaquim e o casamento de Lili (que não amava ninguém) com J. Pinto Fernandes (que até aí nada tinha a ver com a história). Todos parecem ter ficado sozinhos ou deixado escapar o amor, seguindo os seus destinos direções diferentes. Atente-se na forma como o sujeito se refere ao marido: impessoal, sem nome próprio, sendo apresentadas apenas a inicial. Por outro lado, J. Pinto Fernandes parece mais uma designação comercial, que identifica, portanto, uma empresa ou um negócio, do que o nome de uma pessoa. Assim sendo, talvez seja uma forma de insinuar que o relacionamento entre o casal é distante, ou então é uma relação de interesse. Seja como for, Drummond de Andrade parece sugerir no poema a imprevisibilidade da vida e do próprio sentimento amoroso.

O título da composição constitui uma referência a uma contradança de origem holandesa que granjeou enorme sucesso na França, durante o século XVIII, onde recebeu o nome de “Neitherse”. No século XIX, tornou-se muito popular nos salões aristocráticos e burgueses em todo o mundo ocidental. De facto, no poema está presente a quadrilha francesa, que se tornou tradição nas festas juninas brasileiras e que consiste na evolução diversa dos pares, sendo aberta pelo noivo e pela noiva, pois a quadrilha representa o grande baile do casamento que, supostamente, se realizou, onde os casais formam pares que se entre dançam. Na composição, homens e mulheres desencadeiam desencontros amorosos e somente quem não amava ninguém (Lili) consegue encontrar o seu par. Metaforizado pela quadrilha, o amor surge como uma dança onde os pares estão trocados e os sentimentos não são correspondidos. Quase todos os indivíduos estão apaixonados e são alvo do amor de alguém, mas as linhas parecem estar cruzadas e nenhum relacionamento se concretiza. Aparentemente, o sujeito poético retrata o amor como algo absurdo, uma espécie de jogo de sorte que apenas alguns têm a oportunidade de vencer.
Assim sendo, de forma simples e recorrendo a exemplos concretos e do quotidiano, o texto ilustra o desespero daqueles para quem o amor verdadeiro parece ser impossível. A construção do poema assemelha-se a um ciclo vicioso: um ama outro, que ama outro, que ama outro e assim sucessivamente. No entanto, ao contrário do ciclo vicioso, em que seria expectável que o último indivíduo mencionado amasse o primeiro, este termina na última personagem apresentada: Lili.

O recurso a nomes de pessoas comuns significa que qualquer indivíduo pode ser vítima das frustrações do amor: João, frustrado com o desamor de Teresa, parte para os Estados Unidos; Teresa, desapontada com a não correspondência de Raimundo, procurou a clausura no convento para nunca ser de nenhum homem, entregando a sua vida somente a Deus; Raimundo, que amava Maria e que também não foi correspondido, morreu de desastre, talvez numa tentativa de fugir da vida ou de si mesmo; Maria, descontente com o seu destino, não se voltou a envolver com mais nenhum homem, além de Joaquim, que decidiu suicidar-se por causa de Lili, que não o amava nem a mais ninguém. De facto, esta última figura está ligada à tragicidade dos outros indivíduos, mas é a única que não estabelece qualquer vínculo afetivo com nenhum dos pares.

Note-se, por outro lado, que as personagens não possuem sobrenome, à exceção de J. Pinto Fernandes. Sem origem definida, parece simbolizar a perda da individualidade, o sentimento humano que luta para sair do isolamento, da solidão. Assim, a vida constitui uma experiência angustiante, na qual o convencionalismo e as aparências valem mais do que a essência. Tudo isto é agravado pelos desencontros amorosos.

O amor é apresentado como uma extensa cadeia de afetos, os quais se inscrevem num quotidiano centrado nas necessidades imediatas, porém num contexto de superficialidade sentimental. O amor é um sentimento mundano, temporal: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili.
O poema é constituído por uma única estrofe, determinada pela musicalidade que embala a situação de cada personagem, cujo ritmo dos versos é um retrato cómico dos desencontros amorosos em que a dança, isto é, a quadrilha, é a mais célebre representação da condição trágica da carência, da desilusão do amor. No meio dos jogos de desencontros, a dança da quadrilha determina o destino das personagens.

Os nomes são repetidos, facilitando a identificação e memorização das personagens, visto que estão dispostos numa certa ordem nos três primeiros versos, que é repetida nos três últimos. A redundância é um traço modernista.

Na construção humorística e divertida da composição poética, a troca de pares e desencontros amorosos entre as personagens vai sendo apresentada em duplas ao leitor, como é característica das quadrilhas, onde os pares se situam frente a frente. No entanto, há uma alternância entre os pares, visível na presença do conectivo “que”, o qual separa e une os pares, ou seja, os casais mostram o “porquê” dos problemas que impede a união entre eles, isto é, da não conexão. Somente no último verso, que é marcado pela única união (entre Lili e J. Pinto Fernandes), esta é estabelecida através da conjunção coordenativa “e”, que evidencia a afinidade e a oposição estabelecida entre os dois pares, pois um, só com o apelido, Lili, e o outro, só com o sobrenome, J. Pinto Fernandes, atraíram-se, entrelaçando-se em matrimónio.

Um outro aspeto interessante reside no facto de apenas Lili, que não possui nome próprio, apenas apelido, e é a única personagem com essa característica, se ter casado. Ela representa o anonimato de qualquer um que poderia ter entrado na dança e ter-se dado bem, pois, além de se ter casado, foi a única a envolver-se com um homem possuidor de sobrenome, dando a ideia de ser um nobre, originário de uma classe alta, exatamente onde a quadrilha teve origem.

Todos os nomes das personagens, exceto o de Lili e do seu par, são nomes simples, comuns, do povo, ou seja, da plebe, que foi para onde a festa folclórica da nobreza se estendeu após ter descido as escadarias dos palácios franceses. O J. Pinto Gonçalves, que ainda não tinha entrado na história, e muito menos no baile, é uma representação da nobreza, da alta sociedade, expressas no seu sobrenome. O seu primeiro nome não é citado como o das demais personagens, está abreviado. Apenas o seu sobrenome importa, dado que o que é marcante no seio da alta sociedade não é o nome, mas o sobrenome. Ele representa a marca originária da família nobre à qual pertence. É curioso que não se sabe se Lili amava ou não J. Pinto Fernandes, ou se passou a amar ou pelo menos apaixonar pelo seu companheiro depois do enlace. Assim sendo, não se pode dizer que foi uma união perfeita, muito menos feliz.
Se ela não amava ninguém, nem mesmo J. Pinto Fernandes, podemos dizer que se pode ter casado simplesmente para não ter o mesmo destino das demais mulheres do poema, ou ainda, com ambições mais elevadas, pelo facto de querer sair do seu anonimato, por meio da aquisição de um sobrenome de nobreza. A composição poética, que seguia uma sequência de desencontros, foi alterada com a introdução de J. Pinto Fernandes, que «não tinha entrado na história», isto é, alguém que ignora tudo o que tinha havido anteriormente na vida dos outros pares e, principalmente, de Lili, a quem recebe como companheira independente dos seus sentimentos para com ele. Finalmente, quando o casal desconhecido se enlaça, ou se «enrola», não são somente a música ou a dança, mas a própria vida que para quando os caminhos de Lili e J. Pinto Fernandes se cruzaram. Podemos relacionar o poema com a dança da quadrilha, pois as modificações e evoluções acabaram por alterar os compassos da dança, da música e do amor.

Bibliografia:
. ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma Poesia. 8.ª ed.- Rio de Janeiro: Record, 2007.
. CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945: panorama para estrangeiros”. In: Literatura e sociedade. 8.ª ed., São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000. pp. 109-138
. Elenco de cronistas modernos por Carlos Drummond de Andrade [e outros] – 21.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
. VILLAÇA, Alcides. Drummond: primeira poesia. USP.São Paulo: Editora 34, 2002.


terça-feira, 6 de agosto de 2019

Análise de "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade


            O poema “No meio do caminho”, composto por uma quadra e uma sextilha, num total de 10 versos, alternando versos rimados (ABAA) com brancos (o sexto, por exemplo), foi publicado pela primeira vez no número 3 da “Revista de Antropofagia”, em julho de 1928. Posteriormente, integrou o livro Alguma Poesia, datado de 1930.
            Começando pelo título, este remete para um espaço (“No meio do caminho”), antecipando o imprevisto: a pedra.
            O texto é caracterizado pela redundância e pela repetição. De facto, se as eliminássemos, a composição seria a seguinte: “No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. As pedras simbolizam os obstáculos ou problemas com que as pessoas se confrontam durante a sua vida, descrita, metaforicamente, como um “caminho”. Por outro lado, as pedras, enquanto obstáculos, podem impedir o indivíduo de prosseguir o seu percurso, isto é, os problemas podem impedi-lo de avançar na vida.
            Os versos 5 e 6 transmitem uma sensação de cansaço por parte do sujeito poético e do acontecimento que ficará sempre na sua memória. Assim, as pedras também podem indicar um acontecimento relevante e marcante para a vida de uma pessoa.
            Há autores que fazem uma interpretação biográfica do poema, associando-a a um drama familiar do poeta. De facto, em 1927, Drummond de Andrade foi pai de um menino que sobreviveu apenas meia hora. Entre janeiro e fevereiro desse ano, foi-lhe encomendada a escrita de um poema para o número 1 da “Revista de Antropofagia”. Imerso na sua tragédia pessoal, o escritor enviou este poema.
            O crítico Gilberto Mendonça Teles sublinha o facto de a palavra “pedra” conter as mesmas letras do vocábulo “perda”, um fenómeno de hipértese. Mera coincidência ou recurso intencional?


segunda-feira, 8 de julho de 2019

Análise de "José", de Carlos Drummond de Andrade

            “José” é um poema da autoria de Carlos Drummond de Andrade, escritor nascido a 31 de outubro de 1902 e falecido a 17 de agosto de 1987, um dos maiores vultos da segunda geração de modernistas brasileiros, considerado por muitos o maior poeta brasileiro do século XX.
            A composição em questão foi publicada pela primeira vez em 1942, integrada na obra Poesias. Nela, o autor aborda a temática da solidão e do abandono do indivíduo na cidade grande, bem como a desesperança e a sensação de estar perdido na vida, sem saber que rumo seguir.
            O texto abre com uma interrogação que se repete, anaforicamente, ao longo do mesmo, assumindo a forma de uma espécie de refrão: “E agora, José?”. Ou seja, agora que os bons momentos terminaram (“a festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo sumiu”), o que resta? O que há a fazer?
            Por outro lado, a interrogação constitui o mote e o motor do poema: a procura de um caminho, de um sentido para a vida. José, tal como João ou António, é um nome muito comum na língua portuguesa, pelo que o seu uso neste texto pode ser entendido como um sujeito coletivo, uma metonímia. A sua substituição pelo pronome “você” significa que o sujeito poético se está a dirigir diretamente ao(s) leitor(es), comos e este(s) fosse(m) o(s) interlocutor(es).
            Esse “você” não tem nome, mas “faz versos”, “ama, protesta” e “zomba dos outros”. A sua característica de poeta pode ser interpretada como a sua identificação com o próprio Drummond de Andrade.
            A segunda estrofe reforça a ideia de vazio, de ausência e carência de tudo: está sem “mulher”, “discurso” e “carinho”. Além disso, já não pode “beber”, “fumar” e “cuspir” (atente-se na sucessão de anáforas); “a noite esfriou”, “o dia não veio”, tal como não veio “o bonde”, “o riso” e a “utopia”. Isto significa que todas as formas de contornar o vazio, a ausência, o desespero e a realidade não chegaram, nem mesmo o sonho (“a utopia”), nem a esperança de um recomeço, pois “tudo acabou”, “fugiu” e “mofou” (nova sucessão de anáforas), como se o tempo deteriorasse tudo aquilo que é bom.
            Na terceira estrofe, prosseguem as anáforas e as enumerações, nomeadamente das suas características imateriais (“sua doce palavra”, “seu instante de febre”), “sua gula e jejum”, “sua incoerência”, “seu tédio”), bem como daquilo que é material e palpável (“sua biblioteca”, “sua lavra de ouro”, “seu terno de vidro”). Ou seja, tudo desapareceu e nada restou, exceto a interrogação: “E agora, José?”.
            A quarta estrofe apresenta-nos um sujeito poético que não encontra saída/solução para a sua situação: “Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta”. A própria morte enquanto derradeira solução também não é possível – “quer morrer no mar, / mas o mar secou – ideia que é reforçada mais adiante (José é obrigado a viver) –, tal como a possibilidade de um regresso às origens: “quer ir para Minas, / Minas não há mais”. Atente-se no facto de o poeta ser natural de Minas Gerais (Itabira), o que pode indiciar nova possível identificação entre Drummond de Andrade e José. Em suma, o passado também não constitui uma solução para o drama vivido pelo sujeito poético.
            A quinta estrofe contém uma anáfora constituída por várias orações subordinadas adverbiais condicionais, com as formas verbais no pretérito imperfeito do conjuntivo. Todos estes recursos remetem para um conjunto de possíveis escapatórias ou distrações que nunca se concretizam, são interrompidas, ficam em suspenso, ideia suscitada pelo recurso às reticências. O verso 7 desta estrofe destaca novamente a ideia de que a morte não é solução: “Mas você não morre”, pois “você é duro José!”. Estes dois versos sugerem que o sujeito lírico possui uma grande força, uma resiliência e capacidade de sobrevivência que constituem traços da sua personalidade, para quem desistir da vida não é uma opção.
            A última estrofe do texto salienta o seu isolamento total (“Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato”), “sem teogonia” (não há Deus, não existe fé nem auxílio divino), “sem parede nua / para se encostar” (sem o apoio de nada nem de ninguém), “sem cavalo preto / que fuja a galope” (sem nenhum meio de fugir da situação em que se encontra).
            Ainda assim, “você marcha, José!”, mas para onde? Ou seja, o sujeito poético segue em frente, mesmo sem saber em que direção ou com que objetivo. O verbo “marchar” remete para um movimento repetitivo, quase automático. José é um homem preso à sua rotina, às suas obrigações, afogados em questões existenciais que o angustiam; faz parte da máquina, das engrenagens do sistema, por isso tem de manter o seu quotidiano.
            Não obstante, perante uma mundividência pessimista, de vazio existencial, os versos finais do poema parecem sugerir um raio de esperança: José não sabe para onde vai, qual é o seu destino ou lugar no mundo, mas “marcha”, prossegue, sobrevive, resiste.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Análise de "Iniciação Amorosa", de Carlos Drummond de Andrade"

      A análise do poema indicado no título não é propriamente uma inspiração, porém constitui uma pequena aproximação à obra do poeta brasileiro.

     Pode ser consultado aqui: "Iniciação Amorosa".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Outra Análise de "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Em «Quadrilha», de Drummond de Andrade, há uma divertida sucessão de amores desencontrados, «não-correspondidos», como se diz, até que a cadeia se quebra quando aparece alguém que «não amava ninguém». Depois, o poema revela telegraficamente o desfecho de cada vida, finais pouco felizes, e alguns trágicos. Apropriadamente, a mulher que «não amava ninguém» foi a única que se casou. E casou com «J. Pinto Fernandes», cuja inicial lembra a designação de uma empresa, e nos inspira uma imediata antipatia, tanto mais que ele «não tinha entrado na história». Mas o J aponta provavelmente para um nome bastante comum, como José, sem nada de ridículo, certamente não tão ridículo como Raimundo. E se o senhor J. é «Pinto Fernandes», os outros devem ser certamente «Alves» e «Figueiredo» e assim. Gente banal com nomes banais. O poema sugere uma empatia para com todos os envolvidos, com excepção de J. Pinto Fernandes; mas acho que é possível, e até indispensável, defender uma conclusão diferente. Claro que João, Teresa, Raimundo, Maria e Joaquim, que amaram e não foram amados, merecem a nossa compaixão. Mas se o «não amava ninguém» de Lili também vale para o casamento dela com J. Pinto Fernandes, então eu diria que Lili é a única personagem negativa desta quadrilha. Quando a J. Pinto Fernandes, nada nos garante que seja mais duvidoso ou menos louvável do que Joaquim, Maria, Raimundo, Teresa e João. Além de que é provável que amasse Lili, que porventura não o amava a ele, o que dá a J. uma aura trágica que nos toca. O facto de não ter entrado na história não o desqualifica. Entrou certamente noutras histórias, na sua história, todas as histórias têm sempre gente nova a entrar. Não sei muita coisa sobre J. Pinto Fernandes, mas sei que já perdi duas mulheres para ele, e acho que ele as merece mais do que eu.
(c) Pedro Mexia, http://a-leiseca.blogspot.com/

          Pedro Mexia é um poeta e crítico literário, autor do blogue http://a-leiseca.blogspot.com/, ex-director da Cinemateca e membro do Governo Sombra, programa da TSF que passa às sextas-feiras (19 - 20 H) e aos domingos (13 - 14 H), em que tem a companhia de Ricardo Araújo Pereira, João Miguel Tavares e Carlos Vaz Marques.
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