Português: Sá de Miranda
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sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Análise de "Cerra a serpente os ouvidos"

          Este poema de Sá de Miranda é construído em torno da simbologia de vários elementos: a serpente, o encantador e a sereia.
         No caso desta composição poética, somos confrontados com a imagem de uma serpente que, corajosamente e inteligentemente, resiste à sedução do encantador, mais concretamente à sua voz: “Cerra a serpente os ouvidos / à voz do narrador”. Pelo contrário, o sujeito poético não é capaz de resistir ao som sedutor e encantador dessa voz, por isso, inundado de dor, deseja agora perder os sentidos, nomeadamente a audição, visto que são os responsáveis pela sua desgraça, ao fazerem com que se enamorasse por uma “encantadora”.
         Nos versos 5 e 6, o sujeito poético evoca o mar e as figuras míticas da sereia e de Ulisses, o qual, aquando do regresso de Troia, para não ser tentado e seduzido por aquelas, se amarrou ao leme para resistir ao seu canto. Por sua vez, ao contrário da serpente e de Ulisses, que souberam resguardar-se, o sujeito poético não o fez e agora lamenta-se: “eu não me soube guardar / fui-vos ouvir nomear, / fiz minh’alma e vida alheas”.
         Observe-se o modo como o «eu» poético assume o seu amor como um erro que acarretou para si terríveis consequências. Por outro lado, no momento em que dele se apercebeu, já era demasiado tarde para escapar ou corrigir a situação. A consequência foi ter-se apaixonado pela “encantadora de serpentes”: “fiz minh’alma e vida alheas”. A sua alma e vida deixaram de lhe pertencer; são da mulher por quem se enamorou.
         Uma novidade que este poema nos traz reside no facto de o amor não ter tido como origem a visão e a beleza visão da mulher, mas a audição da sua voz, a sua «nomeação», o que significa que o enamoramento foi mais intelectivo do que é norma na poesia amorosa. Por outro lado, o contraste entre as atitudes da serpente e do «eu» colocam-no num plano inferior ao do animal, dado que este se revelou mais avisado.
 

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Obra de Sá de Miranda



Formas

Temática

Poesia do Cancioneiro Geral
(vilancetes, cantigas, trovas, esparsas)
. O amor e as suas mágoas: o sofrimento do coração enamorado que o leva a fugir das pessoas e de si próprio.
. A saudade que o amor deixa no coração.
. A divisão do «eu».





Sonetos





. O desejo da perfeição formal.
. A mudança: a mudança reversível e cíclica da natureza versus a mudança irreversível do homem (sempre para pior).
. O conflito entre o amor e a razão.
. A poesia tem uma função pedagógica.
. A poesia como mensagem e não apenas como entretenimento (no Cancioneiro Geral a poesia era considerada como um mero entretenimento do espírito).
. A dignidade das Letras (tema muito grato aos humanistas).
. O amor petrarquista(1): a mulher idealizada e as contradições que o amor provoca na alma.



Cartas



. Crítica à sociedade (a cobiça, a hipocrisia, a injustiça, a ambição, etc.).
. Crítica à corrupção da corte.
. A apologia do ideal de Horácio da “áurea mediania”/”aurea mediocritas”.
. O elogio do campo/aldeia.
. A crítica ao abandono do campo.


Éclogas



. Crítica às injustiças (desconcerto do mundo).
. Apologia da “aurea mediocritas”.
. Desprezo pelas glórias e bens do mundo.
. Condenação da tirania despótica dos que vivem à custa dos “pequenos”.
. O recurso ao bom senso e ao saber dos antigos.




(1) Facetas do Petrarquismo:
- o elogio hiperbólico da mulher amada no aspecto físico, psicológico, moral e social  -  ideal, perfeita, inigualável, divinizada;
- as contradições íntimas do sujeito poético feliz-infeliz;
- os efeitos contraditórios do amor;
- o lamento e a saudade na ausência da mulher;
- a inexistência de palavras que a possam retratar;
- a apresentação de uma natureza sombria ou amena/alegre segundo o estado de espírito do “amador”;
- a luta entre o amor e a razão.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Sá de Miranda e a nova medida

            Em Portugal, a consagração do novo estilo deveu-se em grande parte a Francisco de Sá de Miranda, secundado por uma plêiade de discípulos.
            De facto, em 1521, iniciou uma viagem a Itália, onde se demorou até 1526, que lhe permitiu conhecer mais de perto alguns dos grandes escritores italianos vivos (Bembo, Sannazzaro, Sadoletto, Ariosto) e outras personalidades marcantes, como Vitória Colonna, a amiga de Miguel Ângelo, sua suposta parenta. No regresso, de passagem por Espanha, em 1526, terá conhecido Boscán e Garcilaso, dois dos maiores nomes da literatura espanhola de então.
            Colaborador do Cancioneiro Geral, cultivou em língua portuguesa e castelhana as formas consagradas nessa coletânea, antes e depois da sua conversão ao novo estilo. Nunca, aliás, repudiou a «medida velha». Por exemplo, na écloga Alexo, que é uma das primeiras expressões da nova escola em Portugal, aceita a coexistência dos dois estilos; numa elegia dedicada a António Ferreira, muito mais tarde, reconhece o interesse das antigas formas de trovar (vilancetes, glosas esparsas, poesia obrigada a mote); e numa carta a António de Meneses, manifesta-se preso ainda ao ambiente dos extintos momos e serões de Portugal, onde se fizera poeta.
            Na primeira fase da sua carreira, anteriormente à sua campanha pelo novo estilo, Sá de Miranda cultiva exclusivamente a poesia amorosa dentro dos temas petrarquianos então em voga. A nota que mais frequentemente fere é a da contradição entre a razão e a «vontade», isto é, a inclinação amorosa. Os seus versos testemunham um espírito torturado e tenso; já então os repassa uma melancolia inconfundível, que se acentuará posteriormente; e já por vezes se nota a expressão condensada, elíptica, que é uma das grandes dificuldades, mas também um dos interesses do seu estilo conciso, em que as palavras parecem faltar para cingir a intensidade ou a largueza do pensamento.
            Em fase ulterior, nos poemas que marcam a sua campanha pela introdução em Portugal das formas italianas, enriquece e varia consideravelmente o seu material literário. Nas éclogas, em que segue o modelo de Garcilaso, exibe um estendal de erudição histórica e mitológica, reconta histórias célebres da Antiguidade e alude constantemente a lugares-comuns clássicos. Mas os melhores valores da cultura greco-romana, mesmo os de expressão mítica, pareciam-lhe provir dos «Livros Divinos». Tanto nas éclogas como noutras obras de inspiração clássica – elegias, sonetos, canções – toca certos tópicos característicos da literatura renascentista: o desdém pela vulgaridade, a superioridade do culto das letras sobre o das armas, a necessidade de renovação pelo estudo dos modelos estrangeiros, e exorta à composição de poemas heróicos de assunto português.
            Mas a parte mais original da obra poética de Sá de Miranda é em redondilha menor: a écloga Basto e as Cartas, editadas em 1626 como sátiras de tipo horaciano. O autor expõe aí o que pensa do mundo que o rodeia. Falando do seu retiro rústico, com uma rudeza ostensiva de «guarda-cabras», a sua atenção privilegia o contraste entre a vida rural e a vida urbana e palaciana. O elogio da simplicidade rústica, como estado mais seguro e mais repousado que a vida artificial na cidade ou na corte, é um tema característico da Antiguidade clássica e particularmente de Horácio. Mas Sá de Miranda dá-lhe novos traços datados e combina-o com uma crítica social que lembra alguns dos utopistas do século XVI, num fundo de austeridade estóica ou senequista
            Está talvez na origem desta crítica um certo sentimento cioso da liberdade pessoal. O homem da corte, e de modo geral todo o que vive no seio da civilização urbana, teria alienado a liberdade. Sá de Miranda parece considerar essa alienação, por um lado, sob a forma da pressão social que se manifesta nas convenções e intrigas da vida da corte; por outro lado, sob a forma de sujeições resultantes da estrutura produtiva. O homem apenas seria livre conformando-se com a «boa razão» e a «mãe natureza», «madre antiga», que bastaria à satisfação das nossas necessidades; segundo o dito evangélico, as aves do céu não fiam nem tecem e andam, todavia, mais ricamente vestidas que Salomão. Sá de Miranda desdenha doutra actividade além da lavoura, que lhe parece a própria dos homens; condena o tráfego marítimo, a busca de ouro debaixo do solo, que os obriga, de costas para o dia, a entrar pela noite dentro. A ambição do ouro origina, segundo ele, as guerras, que desviam para a destruição o fogo, antes dado para proveito dos homens, e formas reais ou metafóricas de escravatura, que levam a pôr aos lanços na praça «espíritos vindos do céu». A invenção, então recente, da artilharia é para Sá de Miranda mais um exemplo dos malefícios resultantes do afastamento da natureza.
            Dentro desta lógica, até mesmo a propriedade individual da terra aparece ao mesmo tempo como efeito e causa da violência: a sangue e fogo foi a terra desigualmente repartida; o meu e teu está na origem das guerras.
            Estes tópicos são frequentes na poesia clássica, em que a Idade de Ouro, tida como anterior à propriedade agrária individual, à moeda, ao Estado, à guerra, constituía a idealização poética do comunitarismo primitivo ou do clã patriarcal. É bem possível, todavia, que Sá de Miranda tenha em vista qualquer fenómeno social que então se processasse entre nós, do género das vedações («cercas») e apropriações, pela aristocracia inglesa, de terrenos comunais dos aldeãos. A sua indignação pelo que então se passa neste sentido e que ele testemunha como fidalgo à antiga, patriarcalmente próximo do trabalhador rural, atinge uma vibração ainda hoje bem comunicativa, ao afirmar, por exemplo, que certos «salteadores com nome e rosto de honrados» andam quentes, «forrados de peles de lavradores». A idealização clássica do comunitarismo primitivo pelo mito da Idade de Ouro, no qual a própria agricultura e a pastorícia eram ainda sentidas como sacrílegas e antinaturais, transfere-se assim para as relações agrárias então existentes, pintadas com as cores idílicas da «áurea mediania» rural de Horácio.
            Por outro lado, Sá de Miranda percebe claramente a ligação existente entre este exacerbamento e crise da exploração feudal, o absentismo da nova nobreza cortesão e a expansão ultramarina, que despovoa o Reino «ao cheiro desta canela». Não esconde a sua antipatia pelo modo de vida que então contribuía para a alteração da estrutura medieva do País:
Os marinheiros vadios
que vilmente a vida apreçam
pelas cordas dos navios
volteiam como bugios,
inda que vos al pareçam.
            Outro tema grato a Sá de Miranda é a crítica da corte como centro do governo: a astúcia dos privados, o seu engrandecimento à custa dos pequenos; a corrupção da justiça, o exibicionismo devoto; todo um sistema de exploração em proveito de um grupo dirigente, que consegue perverter as boas leis tornando-as «fracas teias de aranha», de que são vítimas as mulheres, os órfãos, a «pobreza dos mesteres». Eles não se atrevem sequer a falar diante dos poderes, esses poderes que deviam ser «nossos» mas que os envolvedores «buscaram para si». Contra estes males, Sá de Miranda vê o remédio num poder régio justamente exercido, ao serviço do Povo, idealização típica do Renascimento.
            Tais ideais exprimem-se num tom nostálgico. Sá de Miranda volve os olhos para os costumes dos antigos portugueses, para a «casa antiga e a torre», símbolo de um mundo em desaparecimento: evoca os reis antigos, que se prezavam do nome de «lavradores», e também D. João II com a sua divisa «Pela lei e pela grei». Para ele o mundo está em decadência. A utopia de uma vida natural no seio da «madre antiga», em que não existia o teu e o meu, nem a guerra, casa-se com aquela melancolia que ensombra os seus versos. Não é por acaso que nestas cartas (em que predominam as quintilhas de redondilhas com dois esquemas alternativos de rima) Sá de Miranda conservou construções e vocábulos arcaicos, como que acentuando o carácter arcaizante do seu pensamento.
            Tal arcaísmo ostensivo – próprio sobretudo das composições na medida velha – combina-se, todavia, com uma acentuada originalidade, e até com um pessoalismo muito acusado. Sá de Miranda foge à expressão discursiva então letrada, quase não estabelecendo transição sintáctica entre o texto básico e os comentários incisos, ou os exemplos, com lição moral. Com vista a este efeito, a sua expressão é fortemente condensada e muitas vezes elíptica. O seu léxico prefere os temas concretos às generalidades e aos eufemismos, sacrificando para isso a dignidade classicizante tão grata a João de Barros ou a António Ferreira. As imagens, por vezes muito evocativas, provêm do mundo familiar, e não apenas do arsenal da tradição literária erudita; e mesmo quando a este recorre, Sá de Miranda veste-o de uma aparência vernácula e até quase rústica. Esta tendência foge às convenções do estilo novo, e sobretudo ao carácter discursivo, expositivo e oratório que está na essência do classicismo. Pelo contrário, orienta-se para uma expressão engenhosa, feita de agudeza conceptual, combinando um artífice extremo com um certo folclorismo apaixonado por apólogos, provérbios e efeitos de oralidade. Ora a importância da elipse avultará no estilo de Góngora, que é directamente avesso à expressão discursiva. Desta forma Sá de Miranda está na corrente que conduz ao Barroco peninsular, e torna-se um dos precursores do conceptismo seiscentista.
            Além dos primeiros versos na medida nova, deve-se a Sá de Miranda a primeira comédia em estilo clássico. Sabe-se também que escreveu uma tragédia com o título Cleópatra, de que nos restam poucos versos, em redondilha maior.
Os Estrangeiros, sua primeira comédia em prosa, localiza-se na Itália. Os tipos e situações evidenciam a imitação de Plauto e Terêncio e da comédia renascentista italiana em fala vulgar portuguesa. Há a competição de um jovem, um fanfarrão e um doutor à volta de uma rapariga posta a preço. As regras do classicismo renascentista são acatadas: acção concentrada num troço de rua, onde se atam e desatam os nós dos interesses em conflito.
            Posterior a esta, e com características muito semelhantes, a comédia Vilhalpandos, que tem por personagens uma cortesã, a mãe proxeneta, dois fanfarrões e um escrivão hipócrita, está animada de um anticlericalismo intenso, que tira partido da localização do enredo em Roma. Ambas as comédias dão expressão a um ideário humanista renascentista: ridicularização das bravatas militares, crítica da Escolástica, do monaquismo e da mendicância beata, da remissão pecuniária dos pecados, exaltação das Letras humanas clássicas e da paz.
            Embora com êxito contestável, Sá de Miranda luta no teatro contra o gosto então dominante dos autos: o prólogo da sua primeira comédia supõe o público surpreendido por não estar a assistir a um auto em verso e rima.

A. J. Saraiva & Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa


Sá de Miranda: entre as tradições medievais e as inovações italianas

            A grande maioria das composições do Cancioneiro Geral está versificada em redondilhas e dentro de certos moldes peninsulares quatrocentistas (vilancete, cantiga, etc.), cuja característica dominante é a de serem constituídos por um mote e respectiva glosa. Esta é a chamada medida velha.
            Entretanto, já no século XIII se consagrara na Itália um novo tipo de verso e de composição poética, o chamado «dolce stil nuovo». A partir de então impôs-se o verso de dez sílabas, o decassílabo, acentuado obrigatoriamente ou na 4.ª e 8.ª sílabas (verso sáfico) ou na 4.ª, 6.ª e 10.ª sílabas (verso heroico) – então denominado «hendecassílabo» (isto é, verso de onze sílabas), visto que, segundo o sistema italiano, se contava a sílaba postónica quando a última palavra era grave. Sendo mais longo, admitindo maior variedade de acentos facultativos e de pausas, o decassílabo é mais flexível, presta-se a maior número de combinações que a redondilha, e consente, portanto, maior liberdade ao poeta. Adapta-se a uma poesia mais individualizada, a uma maior variedade de tom e de temas.
            Quanto às combinações de versos, às construções estróficas, Petrarca seleccionou algumas já cultivadas pelos Provençais:
* o soneto, com dois quartetos de rima geralmente abba e dois tercetos sujeitos a combinações regulares de duas ou três rimas;
* a canção, com número variável de estrofes iguais e um remate, mas sendo o tipo de estrofe (que é um agrupamento de decassílabos e quebrados) da escolha do poeta;
* a sextina (seis sextilhas e um terceto final, com as mesmas seis palavras em diferentes finais de verso para cada estrofe);
* as composições em tercetos (de rima aba, bab, cdc, etc., e rematando por um quarteto em xyxy), e em oitavas (abababcc), composições que se podem prolongar indefinidamente;
» outras.
            O soneto e a sextina, ao contrário das restantes composições, um pelo esquema estrófico e ambos por um sistema obrigatório de rimas ou remates dos versos, mantêm-se mais próximos do formalismo da poesia medieval, e obrigam a uma condensação conceituosa do pensamento ainda comparável àquela que era imposta pelas composições com mote e glosa.
            Além destas formas e géneros, os Italianos assimilaram géneros líricos característicos das literaturas grega e latina, como:
* a écloga, quadro, geralmente dialogado, de tipos populares, sobretudo pastoris (tendo por moldes Teócrito e sobretudo Virgílio);
* a elegia, poema de tonalidade melancólica (à imitação de Tibulo e Propércio) ou sentenciosa (conforme os modelos helénicos), a que os poetas renascentistas adaptaram a composição em tercetos;
* a ode, quer laudatória (modelo: Píndaro), quer lírica, mais heterogénea (modelos: Safo, Alceu, Anacreonte, Catulo e principalmente Horácio);
* a epístola, ou carta em verso (que tem igualmente o modelo em Horácio);
* o epigrama, composição curta e conceituosa, de conteúdo geralmente satírico (modelos: Juvenal, Marcial);
* o epitalâmio, composição congratulatória dirigida a nubentes.
            O estilo novo correspondia a um novo conceito de poesia. O «poeta» quer distinguir-se do «trovador», pretende ser mais que um simples artífice do verso.  Arroga-se a vocação e o destino de revelar o mundo íntimo do amor e de apontar o caminho glorioso por onde devem seguir, não os homens vulgares, mas os grandes do mundo. A poesia tem para os poetas humanistas uma função doutrinária e edificante. Não falando na poesia heroica, nem no teatro, a poesia lírica só por si comporta os assuntos mais diversos além do amor: elogios de heróis, conselhos epistolares sobre o bem público, ensinamentos morais, políticos, religiosos e filosóficos.
            A influência italiana na lírica peninsular manifesta-se já na primeira metade do século XV: o petrarquismo, como nova expressão do amor, é corrente nos cancioneiros castelhanos do século XV e nos poetas quatrocentistas do Cancioneiro Geral. Mas, embora já muito antes o marquês de Santillana tivesse escrito sonetos «al itálico modo», e o italiano castelhanizado Francisco Imperial praticasse os metros do novo estilo, só no séc. XVI, com Juan Boscán e Garcilaso de la Vega, enraizou ele definitivamente na Península.

A. J. Saraiva & Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa

Vida de Sá de Miranda

            Filho de um cónego de Coimbra de cepa fidalga, Francisco de Sá de Miranda nasceu nesta cidade, em 1481(?). Estudou Gramática, Retórica e Humanidades na Escola de Santa Cruz e frequentou depois a Universidade, ao tempo estabelecida em Lisboa, onde fez o curso de Leis, passando de aluno aplicado a professor considerado.
            Frequentou nessa altura a Corte, datando-se de então a sua amizade com Bernardim Ribeiro. Para o Paço, compôs cantigas, vilancetes e esparsas, ao gosto dos poetas do século XV.
            Tendo-lhe falecido o pai, empreendeu, em 1521, uma viagem a Itália. Graças a uma suposta parente abastada, Vitória Colona, marquesa de Pescara e amiga de Miguel Ângelo, teve o ensejo de conhecer e conviver com algumas personalidades do Renascimento italiano – Bembo, Sannazzaro, Sadoletto, Ariosto –, apreciando muito a estética literária que todos os humanistas cultivavam com entusiasmo.
            No regresso a Portugal, em 1526, de passagem por Espanha, terá conhecido os poetas em voga, Boscán e Garcilaso, afadigados em introduzir a estética clássica no seu país.
            Em 1627, lançou-se na composição de uma comédia em prosa, à imitação de Plauto, Os Estrangeiros, numa época em que Gil Vicente estava no auge da sua actividade e prestígio. A Fábula do Mondego, a écloga Alexo e alguns sonetos são talvez as primeiras expressões portuguesas conhecidas do novo estilo.
            Casado antes de maio de 1530 com D. Briolanja de Azevedo, da melhor fidalguia minhota, beneficiou da Comenda das Duas Igrejas, que o rei lhe concedeu. É na Quinta das Duas Igrejas, junto ao rio Neiva, que compõe quase toda a sua obra, em novos moldes, por influência da estética italiana.
            O resto da sua vida passou-a na Quinta da Tapada, entregue ao amanho da terra e ao cultivo das letras, alheado da corte, mas mantendo convivência epistolar com uma roda de admiradores, entre eles Pêro de Andrade Caminha, D. Francisco de Sá de Meneses, D. Manuel de Portugal e mais tarde Diogo Bernardes, Jorge de Montemor e António Ferreira. Aí lhe chegaram os pedidos insistentes da Corte, sobretudo do príncipe D. João, pai de D. Sebastião, para que lhe enviasse as suas composições, o que o levou a refundi-las.
            Os últimos anos foram amargurados por vários lutos: primeiro, a morte do filho em 1553; depois, a do príncipe D. João, a da sua mulher e a de D. João III.
            Muito atento ao que se passava no seu país, as últimas composições estão repletas de comentários sociais e moralistas, bem amargos e pessimistas.
            Sabe-se que em maio de 1558 ainda era vivo, mas já então bastante enfermo, e deve ter falecido pouco depois.
            Nos séculos XVI e XVII foi o poeta mais admirado depois de Luís de Camões. A consagração do novo estilo em Portugal ficou a dever-se em grande parte a Sá de Miranda, secundado por uma plêiade de discípulos.
            Todavia, a consagração das suas inovações teve de vencer grandes resistências, de que se queixou, mas foi animado nessa campanha pelos jovens admiradores e pelo conhecimento da obra de Garcilaso.


A. J. Saraiva & Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa

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