Português: 08/10/19

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Análise do capítulo II de Sermão de Santo António aos Peixes

      No segundo capítulo, inicia-se a Exposição, com uma interrogação retórica que identifica o destinatário aparente do sermão (os peixes) e mostra algum desalento do pregador: “Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes?”. Nele, predominam a ironia e a alegoria, por exemplo quando Vieira afirma que se dirige aos peixes, quando, na realidade, quer visar os homens, nomeadamente os habitantes do Maranhão que não se deixam converter. A resposta a essa pergunta é profundamente irónica, ao afirmar que os peixes são o “pior auditório” (= os homens), precisamente porque são “gente (…) que se não há de converter”.
            Neste parágrafo ainda, inicia-se a Propositio (Proposição), que terminará em “E onde há bons, e maus, há que louvar e que repreender”.
            De seguida, enumera duas qualidades dos peixes em geral: ouvem e não falam, qualidades essas que contrastam com um defeito: não se convertem. Este primeiro parágrafo introduz a oposição entre os peixes e os homens (bons / maus ouvintes) e inicia a crítica ao comportamento destes últimos pela sua ausência de conversão. No entanto, essa insensibilidade à palavra de Deus é tão costumeira, tão habitual (“Mas esta dor é tão ordinária”), que o orador quase não a sente (“já pelo costume quase se não sente.”). Por isso, não falará “em Céu nem Inferno”, o que tornará menos triste o sermão, comparativamente aos que costuma pregar aos homens, facto que constitui nova ironia, pois os peixes são uma alegoria daqueles, como sabemos.
            Em suma:

            Em todo o lado, há bons e maus, tal como sucede com os peixes: os primeiros devem ser louvados e os segundos censurados, como afirmaram São Basílio [“Não há só que notar (…) e que repreender nos peixes, senão também que imitar, e louvar.”] e o próprio Jesus Cristo (“… diz que os pescadores recolheram os peixes bons, e lançaram fora os maus…”), que comparou a sua igreja a uma rede de pesca, da qual os pescadores recolhiam os peixes bons e lançavam fora os maus, o que leva Vieira a concluir que “há que louvar e que repreender”.
            Note-se que o orador trata os peixes como “irmãos” (apóstrofe), estabelecendo assim a ligação com os homens, que são, na verdade, o alvo do seu sermão, o seu auditório e quem ele pretende atingir.
            Daqui, o padre Vieira parte para a divisão/a estrutura/a apresentação do plano do sermão: no primeiro momento, procederá ao louvor das virtudes dos peixes (caps. II – em geral – e III – em particular) e, no segundo, procederá à repreensão dos seus vícios (caps. IV – em geral – e V – em particular): “Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios”. A alegoria é evidente: os peixes funcionam como metáfora dos homens e as suas virtudes são, por contraste, a metáfora dos vícios dos homens, enquanto os vícios dos peixes são, por semelhança, a metáfora dos vícios dos homens. Este é um método adotado pelo orador que possibilita que os ouvintes possam seguir melhor as suas palavras e o seu raciocínio.
            Em suma, tal como o sal apresenta duas propriedades, também o seu sermão se organizará em dois momentos:


            O terceiro parágrafo dá-nos a conhecer os louvores/as qualidades gerais dos peixes:

▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou (“primeiro que as aves do ar, (…) aos animais da terra, e a vós primeiro que ao mesmo homem”);

▪ foram os primeiros animais a serem nomeados quando Deus atribuiu ao Homem o poder sobre todas as criaturas;

▪ são os animais mais numerosos e os maiores (“Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores”).

            Como de costume, socorre-se das palavras de figuras (como Moisés) ou passagens bíblicas como argumentos de veracidade e autoridade. Por outro lado, no final do excerto critica os homens pela sua vaidade e adulação: “mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.”.
            O quarto parágrafo contém novo louvor dos peixes: são bons ouvintes e obedientes, atentos e devotos (“é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António”.
            Em cada uma destas virtudes, lemos uma crítica aos homens por contraste, visto que se realça assim que elas estão ausentes neles.
            Esta virtude dos peixes é enunciada a partir da referência ao episódio vivido por Santo António em Arimino, cujos habitantes o perseguiram, descontentes com as suas críticas, e o quiseram expulsar da terra ou até matá-lo, o que o levou a mudar o local e o destinatário da pregação, dirigindo-se então ao mar e passando a pregar aos peixes. Vieira compara o comportamento dos homens com o dos peixes, pois, se estes não o escutavam e o perseguiram, os peixes acorreram à pregação e escutaram-na com grande obediência, ordem, quietação e atenção “o que não entendiam”. O contraste é evidente: “Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo…” / “… os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando em silêncio e com sinais de admiração e assenso…”; “… na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos…”.
            O comportamento de homens e peixes é tão díspar e contrário ao que seria de esperar que o padre Vieira conclui: “Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes: mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão…”. Ou seja, através deste quiasmo pretende destacar a forma como os animais se comportavam como se possuíssem razão (que Deus não lhes tinha dado) – ouvindo atentamente o pregador –, enquanto os homens, a quem tinha sido dado o entendimento racional, se comportavam como seres irracionais, perseguindo e maltratando Santo António: “Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras…”.
            Mais uma vez fica clara a relação de contraste entre seres humanos e peixes: a vaidade daqueles versus a modéstia destes; a atitude perante a pregação do santo: perseguição por parte dos primeiros versus a devoção por parte dos segundos; os racionais comportam-se como irracionais e vice-versa.
            É curioso o facto de Vieira se referir, neste parágrafo, simplesmente a «António», não explicitando com clareza que se trata do santo, o que permite ler esta passagem do capítulo como referindo-se a si próprio, em virtude das semelhanças existentes entre a situação vivida por Santo António em Itália e a que ele enfrentava no Brasil, salientando, assim, a incompreensão de que também é vítima.
            Algo semelhante sucedeu a Jonas, que foi miraculosamente salvo por uma baleia após ter sido atirado ao mar pelos homens. Viajando aquele num navio, durante uma tempestade foi atirado ao mar pelos homens, para ser comido pelos peixes. No entanto, uma baleia engoliu-o e conduziu-o até à cidade de Ninive para pregar aos habitantes locais (os assírios). Esta disparidade de atitudes leva o orador a interrogar-se: “É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?”. E, de imediato, através de uma apóstrofe conclui que os peixes são melhores que os homens. Em suma, “Os homens tiveram entranhas [= tiveram coragem] para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas (= sentido literal do nome) a Jonas para o levar vivo à terra.” (trocadilho). De novo, procura realçar-se “o contraste entre a brutalidade daqueles que deviam ter compaixão – os homens – e a compaixão daqueles que deviam revelar brutalidade – os animais.” (PINTO Alexandre Dias, Entre Nós e as Palavras 11, Santillana).
            O quinto parágrafo refere-se às “virtudes naturais e próprias dos peixes”, abrindo com a referência às palavras de Aristóteles (repita-se que estas citações servem para reforçar e credibilizar a argumentação do orador). A virtude agora mencionada é a liberdade e a indomesticabilidade dos peixes: “Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam.”. Tal sucede porque vivem afastados dos homens, em retiro, arguta e sensatamente: “Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor…”. Vieira enumera, de forma gradativa, os animais que se domam ou domesticam, em contraste com os peixes:
Terrestres                                                            Do ar
. “o cão é tao doméstico”                           . “o papagaio nos fala”
. “o cavalo tão sujeito”                               . “o rouxinol nos canta”
. “o boi tão serviçal”                                    . “o açor nos ajuda e recreia”
. “o bugio tão amigo e lisonjeiro”             . “grandes aves de rapina (…)
. “até os leões e tigres (…) se                       recebem o sustento”
amansam”
Peixes
. “lá se vivem nos seus mares e rios”
. “lá se mergulham nos seus pegos”
. “lá se escondem nas suas grutas”
            Atente-se no uso do advérbio com valor temporal «lá», que traduz a distância que os peixes mantêm dos homens, e do determinante possessivo («seus», «suas»), que clarifica que o espaço onde habitam em harmonia não só é longínquo como lhes pertence.
            Por outro lado, a liberdade que caracteriza a existência dos peixes é contraposta ao cativeiro em que vivem os restantes animais:
. “Cante-lhe (…) o rouxinol”
. “diga-lhes ditos o papagaio”
. “vá com eles (…) o açor”
. “faça-lhe bofonerias o bugio”
. “contente-se o cão (…) roer o osso”
. “preze-se o boi (…) formoso e fidalgo”
. “glorie-se o cavalo mastigar freios dourados”
. “tigres e leões comem carne”
MAS
. “na sua gaiola”
. “na sua cadeia”
. “nas suas pioses”
. “no seu cepo”
. “levado (…) pela trela”
. “com o jugo sobre a cerviz puxando pelo arado e pelo carro”
. “debaixo da vara e espora”
. “presos e encerrados”

            Face ao exposto, prudentemente os peixes devem manter-se afastados dos homens, para evitarem o cativeiro. Se agissem de forma diferente, poderiam obter algumas vantagens, como comida, por exemplo, mas pagariam um preço elevado: o cativeiro.
            Este passo do sermão relaciona-se diretamente com o objetivo global da obra, que era a defesa dos índios do Maranhão, explorados e escravizados pelos colonos portugueses. Por analogia, pode concluir-se que também aqueles deveriam viver afastados dos segundos. Por outro lado, o padre Vieira, ao enumerar os vícios, pretende que os ouvintes tomem consciência deles e os corrijam. É a moralização dos costumes que o orador procura, em suma.
            De seguida, no sexto parágrafo, Vieira socorre-se de dois argumentos de autoridade para comprovar a sua pregação. O primeiro é a referência ao dilúvio, ao qual sobreviveram todos os peixes, ao contrário dos demais animais, cuja sobrevivência se restringiu a um casal de cada espécie. Além de todos terem escapado, os peixes “ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar.”. E por que razão não sofreram eles esse “universal castigo”? Porque eram os únicos animais que viviam afastados dos homens e, por consequência, dos seus pecados, daí não terem sido castigados, como o comprovam as palavras de S. Ambrósio. O dilúvio era, pois, “um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, (…) para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens que lhe viera todo o mal e que por isso os animais que viviam mais perto deles foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.”.
            O outro argumento de autoridade prende-se com Santo António, o qual, para se aproximar de Deus, se afastou dos homens, abandonando a casa dos seus pais e recolhendo-se numa religião que professava a clausura, na medida em que a sua existência se encontrava contaminada pelo pecado. “E, porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado…”, abandonou Lisboa, depois Coimbra e, por fim, Portugal. Mas o santo não se ficou por aí, tendo também mudado o hábito, o nome, ocultado a sua sabedoria, até se ter isolado num ermo, de modo que “tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.”. Como afirmam Auxília Ramos e Zaida Braga (Sermão de Santo António aos Peixes. Porto Editora. 2010 – p. 29), “O capítulo termina com um novo apelo aos peixes para que sigam o exemplo de Santo António que tudo deixou, a sua cidade e até o seu país, alterando a sua própria identidade, o seu saber (“Para fugir e se esconder dos homens, mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando a sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota”). Esta atitude radical foi a forma que encontrou para se afastar da maldade dos homens e se encontrar com Deus, optando por uma vida solitária, afastado do convívio com os homens.

            Em suma, neste capítulo, o padre António Vieira enumera as virtudes gerais dos peixes:
▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou;
▪ são os animais mais numerosos e os maiores;
▪ são bons ouvintes e obedientes;
▪ são livres e não se deixam domar nem domesticar;
▪ são sensatos e prudentes (“Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência”).

            Por outro lado, ao longo do capítulo, de forma implícita ou explícita, o padre Vieira aponta os vícios/defeitos dos homens:
▪ a vaidade e o deslumbramento face à adulação (“isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação”);
▪ a insolência e a presunção (“Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo”);
▪ a violência e a obstinação (“os homens tão furiosos e obstinados”);
▪ a crueldade irracional (“os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras”);
▪ o exibicionismo (“longe dos homens e fora dessas cortesanias”).

  
            Por outro lado, este capítulo do sermão mostra, com total clareza, a forma como o padre Vieira estrutura o seu discurso e, sistematicamente, o demonstra e comprova com argumentos. Observemos:

1.º argumento: a passagem da vida de Santo António, que decidiu pregar aos peixes, tendo os peixes ocorrido, obedientemente, a ouvir a palavra de Deus.

Peixes
. ouviram a palavra de Deus pela boca de Santo António
comportamento racional
Homens
. perseguiram Santo António porque este os criticava
comportamento irracional


2.º argumento: o exemplo de Jonas, que foi lançado ao mar de um barco, durante uma tempestade, pelos homens, e engolido por uma boleia, que o manteve vivo e conduziu até à praia.

Peixes
salvam

o peixe recolheu Jonas nas suas entranhas e salvou-o
Homens
matam

tiveram entranhas para atirar Jonas ao mar

3.º argumento (de autoridade): segundo Aristóteles, dentre todos os animais só os peixes “se não domam nem domesticam” e vivem em liberdade porque vivem afastados dos homens.

Animais da terra e do ar

vivem perto do homem, agradam, ajudam-no, mas amansados, presos
Peixes

vivem afastados, longe dos homens, e livres

4.º argumento: o episódio bíblico do dilúvio, a que unicamente os peixes sobreviveram na totalidade.

Outros animais
. salvaram-se dois de cada espécie
. sofreram o castigo divino por viverem perto do homem
Peixes
. salvaram-se todos
. foram poupados do castigo divino por viverem em retiro

Bibliografia:
. Andreia Sousa e Regina Carvalho, Sermão de Santo António (aos Peixes);
. Auxília Ramos e Zaida Braga, Sermão de Santo António aos Peixes;
. Francisco Martins, Para Compreender Padre António Vieira;
. Cidália Fernandes, Argumentar é fácil;
. Margarida Martins, Análise de Textos;
. Hernâni Cidade, Padre António Vieira;
. Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira;
. António José Saraiva, O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira.

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