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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Resumo do capitulo II de O Meu Pé de Laranja Lima

    O capítulo abre com Zezé a explicar que, na sua família, os mais velhos tomavam conta dos mais novos e relembra com carinho a relação com os irmãos, especialmente com Lalá, que já não lhe dá tanta atenção desde que começou a namorar. Deste modo, a relação mais próxima atualmente é a que mantém com o mais novo, Luís, por quem Zezé demonstra grande carinho e responsabilidade.
    Os dois irmãos vão brincar para o quintal e Zezé, com a sua fértil imaginação, transforma o espaço num zoológico (que, na verdade, não passa de um galinheiro), na Europa e até num campo de aviação, imaginando que o morcego Luciano era um avião. A criança inventa histórias, dá nome a lugares e cria brinquedos com objetos simples, tudo para entreter o irmão, bem como para se proteger do mundo que o rodeia, já que é frequentemente punido pelas suas travessuras.
    Enquanto brincam, Zezé escuta a conversa entre Glória e Lalá sobre si e apercebe-se de que elas já têm conhecimento de uma das suas últimas travessuras – cortar uma corda de roupa com um pedaço de vidro. Ele sente-se culpado e, resignadamente, aceita a punição que certamente se seguirá.
    A mãe decide que todos devem ir visitar a casa nova, para onde se mudarão dois dias após o Natal, facto que desperta em Zezé a recordação da dura infância da progenitora, impedida de frequentar a escola e forçada a trabalhar desde os seis anos. Este passo suscita o tema do Natal, abordado num tom triste e melancólico, em virtude da pobreza da família. Zezé, não obstante, tem alguma esperança no nascimento do Menino Deus.
    Ao visitarem a casa pela primeira vez, cada irmão escolhe uma árvore do quintal. Zezé fica para trás e entristece, porque as melhores já foram escolhidas. Glória tenta animá-lo e indica-lhe um pé de laranja lima. Inicialmente, o menino rejeita-o, mas Glória destaca o facto de serem ambos muito jovens e de poderem crescer juntos, como irmãos. Depois de escolher a sua árvore, Zezé sente-se insatisfeito e frustrado, desejando ser muito rico no futuro para poder comprar uma selva inteira. Nesse momento, enquanto está sentado no chão, só e a choramingar, a árvore fala pela primeira vez com a criança, dizendo-lhe que concorda com Glória e que ela iria perceber que tinha feito uma boa escolha. Zezé reage com admiração, mas rapidamente se deixa encantar pela forma como a árvore lhe explica que a ligação entre os dois é única e especial. A partir desse momento e até a mudança de casa se concretizar, o menino visita o pé de laranja lima – que passa a chamar Minguinho – com regularidade. Rapidamente, cria um vínculo mágico com a árvore, imaginando que falam um com o outro. O pé passa então a representar um refúgio emocional para Zezé, um amigo secreto que o compreende e escuta. O capítulo termina com o menino a declarar que, mesmo se pudesse trocá-lo por outras árvores, não o faria.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Estrutura de O Meu Pé de Laranja Lima

    O Meu Pé de Laranja Lima está dividido em duas secções relativamente proporcionais, dois momentos que caracterizam distintamente o crescimento de Zezé.
    A primeira parte da obra tem o subtítulo “No Natal, às vezes nasce o Menino Diabo”, é constituída por cinco capítulos (“O descobridor das coisas”, “Um certo pé de laranja lima”, “Os dedos magros da pobreza”, “O passarinho, a escola e a flor” e “Numa cadeia eu hei de ver-te morrer”) e apresenta as personagens que darão corpo ao enredo principal, permitindo, dessa forma, começar a desenhar o perfil do protagonista, o “descobridor das coisas”, conjugando a vulnerabilidade natural de uma criança de cinco anos com a determinação e a força de uma criança que crê que o mundo existe para ser entendido e explorado.
    Miguel Neves Santos (op. cit., pp. 7-11), subdivide esta primeira parte nas seguintes sequências: “A família e o «Descobridor de Coisas»”, “A Ilusão e a Desilusão: Sonho e Miséria”, “Imaginação e Crescimento”, “Memória e Esperança”, “A Sensibilidade e o Bom Coração do «Menino Diabo»”.
    A segunda parte, composta por nove capítulos (“O morcego”, “A conquista”, “Conversa para cá e para lá”, “Duas surras memoráveis”, “Suave e estranho pedido”, “De pedaço em pedaço é que se faz ternura”, “O Mangaratiba”, “Tantas são as velhas árvores”, “A confissão final”), tem como subtítulo “Foi quando apareceu o Menino Deus em toda a sua tristeza” e é nela que se desenvolvem os aspetos mais marcantes da narrativa. Deste modo, o leitor assiste ao crescimento de Zezé, cuja existência oscila entre a felicidade e a tristeza, a esperança e o infortúnio.
    O subtítulo remete para momentos de revelação e de transformação, que se revelam também dolorosos e que guiam o percurso de aprendizagem de Zezé, uma criança que, graças à experiência que vai adquirindo, deixa progressivamente de o ser, “principalmente aos olhos de um narrador adulto que parece também notar tal facto, à medida que compõe a história que quer contar.” A testemunha de tudo isso é o pé de laranja lima, o «amigo de todas as ocasiões” que se constitui como uma das mais importantes para a compreensão da obra.
    Miguel Neves (op. cit., pp. 13-19) subdivide esta segunda parte nas seguintes sequências: “Amigos Inesperados: a Importância das personagens secundárias”, “Pequenas e Grandes Conquistas: a Vida é feita de Mudanças”, “Entre o Céu e o Inferno: o Afeto dá Lugar à Violência”, “Sarar as Feridas e Reparar os Sonhos”, “A Dor e o Vazio Impostos pela Perda Irreparável”.

Análise de O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos

 I. Vida de José Mauro de Vasconcelos


II. Obras


III. Obra


IV. Época


V. Ação

        1. Resumo

        2. Estrutura

        3. Resumo dos capítulos

                3.1. Primeira parte

                        3.1.1. Primeiro capítulo

                        3.1.2. Segundo capítulo

                        3.1.3. Terceiro capítulo


quinta-feira, 12 de junho de 2025

Resumo do capitulo I de O Meu Pé de Laranja Lima

A obra abre com o relato de uma caminhada de Zezé e Totoca, seu irmão, que lhe dá instruções práticas para a vida e o afasta da imaginação e das ilusões que poderão colocar o protagonista em perigo ou fazê-lo sofrer. Por meio de comentários, breves memórias e curtas analepses, o leitor começa a conhecer as personagens e o contexto da ação.
    Os dois irmãos caminham de mãos dadas e Totoca ensina a Zezé coisas do mundo, como, por exemplo, o caminho para a escola ou como atravessar a rua em segurança, nomeadamente a movimentada Rio – São Paulo, explicando que, antes de o fazer, é necessário olhar para os dois lados. O protagonista sente medo, mas esforça-se para não o demonstrar, enquanto o irmão o incentiva a fazer o trajeto sozinho, afirmando que está a crescer e necessita de aprender.
    Enquanto caminham, conversam sobre diversos temas. Zezé evidencia uma grande curiosidade filosófica e poética sobre a vida. Por exemplo, questiona se a “idade da razão pesa” e mostra admiração por Tio Edmundo, um senhor aposentado que ele considera «sábio» e que gostaria de imitar quando crescesse, incluindo uma gravata de laço, porque todos os poetas que vê nas revistas usam esse acessório.
    Entretanto, chegam à nova casa para onde a família se vai mudar. Zezé gosta da habitação, mas não compreende o motivo da mudança. A conversa revela, então, um contexto familiar difícil: o pai está desempregado, a família enfrenta problemas financeiros, por isso terão que se mudar para a outra casa. Além disso,  a mãe começará a trabalhar fora, e até a irmã Lalá já está empregada. O próprio Totoca, apesar de ainda ser jovem, terá que ajudar na missa para contribuir financeiramente para o núcleo familiar.
    Mesmo sendo criança, Zezé percebe a dureza da vida e tenta lidar com as circunstâncias com criatividade e fantasia. Assim, pergunta sobre o seu «zoológico», uma brincadeira infantil que envolve a presença imaginária de animais como panteras e leoas. Totoca brinca de forma afetuosa, dizendo que será ele quem desmontará o zoológico da casa antiga para o remontar na nova.
    Totoca, de seguida, tenta descobrir como o irmão mais novo conseguiu aprender a ler sozinho, mesmo antes de completar seis anos, um acontecimento que causara o espanto de toda a família. Zezé insiste que não sabe como aprendeu e ninguém o ensinou. Recorda-se apenas de uma ocasião em que perguntou a Tio Edmundo se era possível alguém aprender a ler com cinco anos, ao que aquele respondeu afirmativamente, acrescentando que era, no entanto, incomum. Zezé recorda também um episódio em que surpreendeu Jandira, a irmã, ao ler uma oração afixada atrás da porta. Ninguém acreditava que ele realmente soubesse ler, por isso Jandira deu-lhe um jornal e a criança leu-o. Em poucos minutos, os vizinhos e os familiares estavam reunidos para assistir ao «fenómeno», concluindo que tinha aprendido a ler sem ajuda direta de ninguém, o que causou um misto de espanto, orgulho e desconfiança.
    Posteriormente, Zezé relembra uma conversa com Tio Edmundo, durante a qual lhe pediu um presente: um cavalinho de pau chamado “Raio de Luar”, como o do cinema. O homem aceita o pedido, mas em troca quer um abraço, um gesto a que a criança acede sinceramente, ao perceber que o Tio se sente só e falta dos filhos. Logo a seguir, promete-lhe que vai ler para ele, provando a sua habilidade recém-descoberta.
    No final do capítulo, Tio Edmundo cumpre a promessa e oferece-lhe o cavalinho. Ele testa Zezé com um jornal, e a criança lê corretamente até palavras difíceis como «farmácia». Em suma, ninguém entende como o pequeno aprendeu a ler, e nem este mesmo sabe explicar – é tratado quase como um «milagre». Emocionado, Tio Edmundo compara o seu nome ao de José do Egito, que também foi um menino especial, e prognostica que a criança será alguém especial. Zezé não entende as palavras do homem, mas afirma que quer ouvir essa história quando “crescer mais”, pois adora histórias difíceis.
    Neste contexto, Totoca fica impressionado, mas, em simultâneo, aborrecido por o irmão ter aprendido a ler tão cedo, acrescentando que agora ele terá que ir à escola, pois a irmã Jandira considerou que seria uma forma de manter a casa mais tranquila pela manhã. Além disso, avisa que não voltará a atravessar a rua com Zezé, que terá de aprender a fazê-lo sozinho.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Resumo de O Meu Pé de Laranja Lima

    O Meu Pé de Laranja Lima é uma obra narrativa autobiográfica que relata a infância sofrida e as desventuras de Zezé, um menino de cinco anos natural de Bangu, periferia do Rio de Janeiro, no final dos anos 20 do século XX. Muito esperto e independente, aprende a ler sozinho e, como qualquer criança deixada solta, “vive aprontando”, expressão que designa as asneiras e partidas que prega e que, regra geral, têm consequências desastrosas para quem as faz e as sofre: “Aprendia descobrindo sozinho e fazendo sozinho, fazia errado e fazendo errado, acabava sempre tomando umas palmadas.”

    A sua vida é tranquila e estável, habita uma casa confortável e vive com conforto material, até ao momento em que o pai perde o emprego e a mãe se vê forçada a trabalhar na cidade, mais especificamente no Moinho Inglês, uma fábrica de tecidos. Para agravar a situação, a família é extensa – Zezé tem cinco irmãos: Glória, Totoca, Lalá, Jandira e Luís. Operária na fábrica, a mãe passa o dia a trabalhar enquanto o pai, desempregado, fica em casa e começa a beber. Em virtude da nova situação para que é arrastada, a família vê-se forçada a mudar de casa e a levar uma vida modesta, por isso não é de espantar que os Natais outrora fartos sejam substituídos pela mesa vazia e por uma árvore sem presentes. No quintal da nova residência, existem diversas árvores, e cada membro da família escolhe uma para chamar sua. Zezé é o último a escolher e fica com um modesto pé de laranja lima, com o qual mantém longas conversas e a que chama carinhosamente Minguinho e Xururuca. Dadas a sua traquinice e as constantes travessuras, é frequente ser agredido fisicamente pelos pais e pelos irmãos, indo depois consolar-se com a árvore. Certa vez, foi sovado de tal maneira por uma das irmãs e pelo pai que ficou uma semana sem ir à escola.

    A outra grande amizade de Zezé é Manuel Valadares, também conhecido por Portuga, um emigrante português que trata a criança com o afeto, a atenção e paciência que não tinha em casa. Por uma fatalidade do destino, Valadares é atropelado pelo comboio e morre, evento que tem um fortíssimo impacto em Zezé, que fica doente. Outro acontecimento dramático marca negativamente a sua vida: o pé de laranja lima é cortado por ter crescido mais do que era suposto.

    Zezé recupera e recomeça avida, apesar de sentir um enorme vazio. Entretanto, a situação económica da família melhora quando o pai encontra emprego numa fábrica. Por outro lado, não há também motivo para temer o corte do pé de laranja lima, dado que tal não acontecerá tão cedo. É neste contexto que a história termina, com Zezé a assumir simbolicamente que a sua árvore amiga já fora cortada, associando-a ao desaparecimento do Portuga, sem o pai perceber.

    A ação termina com o narrador a ser um Zezé agora adulto que se dirige a Manuel Valadares, mais de quarenta anos depois, e lhe confessa o impacto que teve na sua existência. Por outro lado, desabafa a influência que teve em si o facto de ter sido precocemente atingido pela realidade dura e cruel, que choca com a inocência, a alegria e a esperança que deveriam caracterizar a infância.

Época de escrita de O Meu Pé de Laranja Lima

    O período de vida de José Mauro de Vasconcelos coincidiu com uma época marcada por algumas das transformações mais importantes ocorridos no mundo ocidental.
    Em termos históricos e políticos, o escritor viveu a sua adolescência e juventude no chamado Período (ou Era) Vargas, numa alusão ao governo liderado por Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. Esta fase da História do Brasil ficou marcada por um conjunto de reformas sociais e económicas que tiveram como foco principal a industrialização e a crescente urbanização, bem como pela forte centralização do poder e pelo nacionalismo.
    Posteriormente, surge o período histórico que coincide com a vida adulta do escritor e que diz respeito à fase compreendida, sensivelmente, entre a década de cinquenta e o início dos anos 80 do século XX. São anos marcados pela instabilidade política e pela alternância entre a democracia e a ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985. Assim sendo, quando publicou O Meu Pé de Laranja Lima, o Brasil já estava sob o regime militar, caracterizado, entre outras coisas, pela censura e pela repressão política. Esta época de alternância ficou marcada por um surto de crescimento e progresso, acompanhado de grandes desequilíbrios sociais, que persistem e, de certo modo, se acentuam na vida quotidiana dos brasileiros. Ao tema da pobreza juntam-se, sistematicamente, os da injustiça e da opressão, por exemplo, e que inspiram muitas das suas obras. A taxa de pobreza era muito elevada, havia graves problemas de acesso à educação e saúde, especialmente no interior do país e entre as classes mais baixas, daí que muitas famílias migraram do campo para as cidades em busca de melhores condições. Além disso, havia também problemas de negligência infantil, com crianças de classes populares a enfrentarem abandono, trabalho precoce e violência, temas tratados em diversos livros de José Mauro de Vasconcelos.
    Culturalmente, a vida do escritor coincide com as diferentes fases do Modernismo, caracterizado pela liberdade criativa, pelo olhar atento ao comportamento humano, pela tendência para exibir traços nacionalistas e pela valorização dos aspetos que revelam a identidade de cada região.
    Por outro lado, novamente nas palavras de Miguel Santos (op. cit., p. 6), “Privilegia-se […] o espaço da imaginação, a exploração dos limites da consciência racional do indivíduo, o papel do sonho e até do delírio, mas, ao mesmo tempo, não se negligencia o real, a ciência, o conhecimento e promove-se uma visão reflexiva e inquiridora face ao mundo. São também estes alguns dos traços que tornam a sua obra não só uma viagem através da sensibilidade humana, mas também um relevante e esclarecedor testemunho acerca da realidade social, de que todos fazemos parte.”

terça-feira, 10 de junho de 2025

A obra de José Mauro de Vasconcelos

    Miguel Neves Santos, numa análise de O Meu Pé de Laranja Lima, publicada na coleção Análise de Obras Essenciais, da Fábula Educação, pronuncia-se sobre a obra de José Mauro de Vasconcelos nos seguintes termos: “A nitidez dos cenários que apresenta nos seus textos decorre, então dos espaços e ambientes que ele mesmo percorre, à medida que interiormente vai dando forma aos seus romances, através da memória e da imaginação. O autor define da seguinte maneira a génese do seu processo criativo: «Quando a história está inteiramente feita na imaginação é que começo a escrever. Só trabalho quando tenho a impressão de que o romance está saindo por todos os poros do corpo. Então vai tudo num jacto.»
    É talvez por isso que as obras de José Mauro se revestem de uma linguagem simples, tantas vezes corrente e popular, mas com uma acuidade tremenda, que coloca o leitor em permanente contacto com os aspetos concretos da realidade em que o autor quis reparar e nos quais quis que o leitor se focasse.
    Neste contexto, O Meu Pé de Laranja Lima (1968) surge como um dos momentos mais altos da carreira literária do autor. Redigido numa fase de inquestionável maturidade artística, esta obra coloca em evidência as suas virtudes poéticas, naquela que é também uma viagem ao passado, num romance com um evidente cariz autobiográfico, posto desde logo em destaque pela escolha do nome do protagonista, Zezé, mais uma das múltiplas ocasiões em que a infância de José Mauro se projeta literariamente.
    A história desta criança de seis anos, personagem principal do enredo, criou um estrondoso impacto em leitores de todas as idades, facto que se mantém até aos dias de hoje, visto tratar-se de uma das obras mais lidas de sempre. De facto, continua a ser admirável o número de pessoas que, ao longo dos anos, vai afirmando que foi esta a sua primeira leitura significativa enquanto jovens, que foi esta a primeira vez que entenderam o valor emocional que um livro pode acarretar, que foi após a leitura desta obra que se tornaram verdadeiramente leitores.
    Em suma, José Mauro de Vasconcelos coloca nas suas obras as vivências quotidianas de um mundo contemporâneo que definitivamente tarda em revelar-se moderno e sofisticado para todos. A sua escrita expõe o seu apreço pela clarificação dos pensamentos e sentimentos das personagens a cada instante. Além dos papéis sociais, importa sobretudo a dimensão psicológica e a carga emotiva que cada pessoa traz consigo (nada melhor que uma criança para reparar com profundidade nos aspetos mais simples da existência). São esses cenários repletos de humanidade que privilegia e é precisamente esse lado pessoal que permite ao leitor ligar-se às vidas que vão surgindo página após página. Muitas das obras do autor estabelecem, inclusivamente, interessantes nexos de intertextualidade com outros romances e autores da época, como, por exemplo, a célebre história d’ Os Capitães da Areia, publicado em 1939, por Jorge Amado.”

Obras de José Mauro de Vasconcelos

. Banana Brava (1942)

. Barro Blanco (1945)

. Longe da Terra (1949)

. Arara Vermelha (1953)

. Arraia de Fogo (1955)

. Rosinha, Minha Canoa (1962)

. Doidão (1963)

. O Garanhão das Praias (1964)

. O Meu Pé de Laranja Lima (1968)

. Rua Descalça (1969)

. O Palácio Japonês (1969)

. Farinha Órfã (1970)

. Chuva Crioula (1972)

. O Veleiro de Cristal (1973)

. Vamos Aquecer o Sol (1974)


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Biografia de José Mauro de Vasconcelos

    José Mauro de Vasconcelos nasceu em Bangu, no Rio de Janeiro, no dia 26 de fevereiro de 1920, no seio de uma família pobre, oriunda do Nordeste brasileiro e com raízes portuguesas (era filho de um imigrante lusitano). Viveu uma infância com parcos recursos, tendo ido viver aos 8 anos para casa de uns tios, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Os seus primeiros anos foram marcados, portanto, por um contexto socioeconómico desfavorável, um facto de que contribuiu para que tivesse um olhar bastante crítico sobre o mundo. A nova família educou-o com esmero, porém acabou por se aperceber de que era um «menino dado», o que deixou marcas no seu trabalho adulto como uma nostalgia de perda.
    Aos 9 anos, aprendeu a nadar e recordou, ao longo de toda a sua vida, com grande prazer, a época em que mergulhava nas águas do Rio Potengi para se preparar para competições de natação em que participava regularmente, tendo vencido diversas. O seu primeiro emprego sucedeu aos 16, 17 anos, como parceiro de treino de boxers peso-pena.
    A sua juventude foi agitada, nomeadamente após os anos de frequência da escola, marcada por um curso superior inacabado e incursões em áreas profissionais muito distintas (carregou bananas numa quinta em Mazomba, foi pescador, garimpeiro, pugilista, professor primário em Recife...). No curso ginasial, leu romances de Graciliano Ramos, Paulo Setúbal e José Lins do Rego.
    A frequência durante dois anos do curso de Medicina permitiu-lhe que se tornasse uma espécie de enfermeiro, enquanto viajava pelo interior profundo do Brasil. Por outro lado, serviu de modelo para o Monumento à Juventude Brasileira, uma estátua da autoria do escultor Bruno Giorgi, em 1941, que foi colocada nos jardins do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro.
    À semelhança do que sucedeu com o escritor Lima Barreto, conviveu de perto com a loucura, dado que o pai adotivo era diretor de um hospício e aí teve oportunidade de ler livros de psiquiatria e conviveu com os loucos. Numa entrevista dada à revista “Manchete”, em 1973, declarou que talvez esse interesse o tenha conduzido à frequência do curso de Medicina.
    Depois de ter concluído os estudos secundários, José Mauro de Vasconcelos frequentou sucessivamente as faculdades de Medicina, Direito e Desenho e Filosofia, sem, contudo, ter concluído qualquer curso. Em 1952, beneficiando de uma bolsa de estudos, frequentou durante três dias a Universidade de Salamanca, em Espanha, saindo com o pretexto de que “tudo ali era muito chato”, facto que evidencia o seu empenho em dar prioridade às múltiplas experiências que se inscrevem no lado mais prático e emocional da sua vida, em detrimento de um saber académico que condicionasse a liberdade da sua imaginação. De Salamanca partiu para Madrid, Itália e França, a expensas próprias. Regressado ao Brasil, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, cidade onde trabalhou como lutador de boxe, como referido anteriormente.
    Começou a escrever em 1940, tendo sido os romances de estreia – Banana Brava e Barro Blanco – bem recebidos pelos críticos literários, tendo chegado a ser comparado a Jack London. As experiências vividas foram criando a matéria-prima para as suas histórias. Com efeito, os traços realistas e autênticos das suas obras decorrem, de facto, do seu contacto com questões como a pobreza extrema, as desigualdades sociais, a mudança, a família, a morte e os sonhos. De facto, o conhecimento que foi adquirindo, sobretudo durante as suas viagens, a partir dos 20 anos, pelo Brasil e pela Europa, constituiu uma das principais bases da sua criação literária. Por exemplo, da sua primeira viagem à selva, durante a qual abriu mato a peito, morou com os índios e se aventurou no garimpo, nasceu a obra Banana Brava, um livro-experiência que lhe “custou a perna direita quebrada em três lugares”. No regresso da aventura, ao subir o rio Tocatins, trazia a obra pronta na cabeça, tendo-a escrito em 27 dias. Quando chegou a São Paulo, onde residia por favor na casa de uma tia, decidiu tratar da perna paralisada, por isso viajou para o Rio de Janeiro a fim de se tratar num hospital de indigentes, onde conheceu um grade dominicano que leu o livro e o levou para a Editora Agir.
    José Mauro de Vasconcelos, apesar das suas origens bem humildes, frequentou a alta sociedade paulista, aparecendo com frequência nas colunas sociais de Tavares de Miranda, da revista “O Cruzeiro”. Por outro lado, soube também valorizar as dedicatórias inscritas nos seus textos. Por exemplo, em O Meu Pé de Laranja Lima, faz uma oferta a Ciccillo, com a advertência “para os vivos” na edição original, e “para os que nunca morreram”, nas edições posteriores à morte do amigo, antes de mencionar os parentes já falecidos.
    José Mauro de Vasconcelos participou também no cinema nacional. Assim, em 1956, no romance Arara Vermelha foi adaptado e distribuído pela Columbia Pictures do Brasil, com Tom Payne na realização e Anselmo Duarte, Odete Lara, Milton Ribeiro, Hélio Santos e Ricardo Campos no elenco. Em 1961, estreou-se como ator no filme Mulheres e Milhões, tendo sido galardoado com o prémio Saci de melhor ator. Em 1962, participou em A Ilha, ao lado de grandes nomes, como Eva Vilma, Elizabeth Hartman ou Laura Verney.
    José Mauro de Vasconcelos faleceu em São Paulo, a 24 de junho de 1984, aos 64 anos, vítima de uma broncopneumonia.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

    V.1. Caracterização

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana

        5. Estela

        6. Léonie

        7. Pombinha

        8. Jerónimo

        9. Piedade

        10. Leandra

        11. Ana das Dores

        12. Dona Isabel

        13. Leocádia

        14. Zulmirinha

        15. Augusta Carne-Mole

        16. Neném

        17. Velho Botelho

        18. Henrique

        19. Agostinho

        20. Alexandre

        21. Paula

        22. Albino

        23. Firmo

        24. Senhorinha

    V.2. O percurso existencial das personagens femininas

    V.3. Os tipos sociais e as forças naturais instintivas.


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


Os tipos sociais e as forças naturais instintivas em O Cortiço

    Um dos valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais. As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes (beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações. Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas, tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam "objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga". Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera" (FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO, 2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos, realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável. A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar, onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência, a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza, "crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja "subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro  (op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo. Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda. Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização" de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado. Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se "quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito" abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar. Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas, miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu. Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op. cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha, "a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo;  [...].(op. cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para "crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida: personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p.. 102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica, uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os "bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço, era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa - apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p. 129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância). No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista, [...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...] Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?... [...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p. 140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já, prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição": [...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si. (op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista, segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração" para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie, os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis [...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p. 218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado. Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo europeu.

(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Caracterização de Senhorinha

    Senhorinha é filha de Jerónimo e Piedade, tem nove anos e estuda num colégio interno, sendo muito querida pelos habitantes do cortiço, os responsáveis pelo epíteto "Senhorinha". As visitas à mãe ao domingo eram o único momento de felicidade da progenitora, após a fuga de Jerónimo com Rita Baiana.
    Durante a semana, é visitada no colégio pelo pai, que lhe deomonstra o seu afeto levando-lhe doces e frutas de presente e perguntando se necessita de roupa ou calçado. As visitas regulares passam a raras após um dia ter aparecidoo no colégio tão bêbedo que adiretora não o deixa entrar.A vergonha torna as visitas esporádicas.
    Acaba por ser protegida de Pombinha, que a vai preparando para ser uma futura prostituta, dado que, no fundo, não passava de uma "pobre menina", dilha de pai ausente e mãe bêbeda.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Caracterização de Firmo

    Firmo é o amante de Rita Baiana, um mulato capoeirista, magro e ágil como um cabrito, de cerca de "trinta e tantos anos", embora com a aparência de mais jovem ("... mas não parecia ter mais que vinte e poucos.").
    Firmo tomara conta de Rita após a morte da mãe desta, porém o seu relacionamento fora sempre inconstante, feito de idas e vindas, de ruturas e reconciliações. Uma das razões para essa inconstância era o facto de a mulher não querer casar, pois considerava que os maridos tratavam as esposas como escravas.
    Firmo é um dos grandes animadores das festas do cortiço com o seu violão. À medida que Jerónimo e Rita se vão aproximando, fica ciumento e os dois homens fazem crescer entre si uma forte oposição. Certa noite de festa, enfrentam-se e, apesar de Firmo ser magro, mais baixo do que o rival, ter perbas e braços finos, como era bem mais ágil e praticante de capoeira, acaba por atingir o português na barriga com uma navalhada. De seguida, foge e desaparece no capinzal.
    Quando é erguido na rua outro cortiço, o "Cabeça-de-Gato", Firmo passa aí os domingos de farra, na companhia do amigo Porfiro. Apesar de Rita não gostar desse facto, os dois continuam a encontrar-se em terreno neutro, isto é, num quartinho alugado noutra rua. No entanto, Firmo tem um bom motivo para permanecer no novo cortiço: sente-se aí protegido de qualquer perseguição e vingança pelo que fizera a jerónimo, dado que os residentes de ambos os cortiços eram inimigos entre si.
    Mais de três meses após o episódio da navalhada, um mulatinho do Cabeça-de-Gato conta-lhe que Jerónimo regressara ao cortiço, o que desperta em Firmo um ciúme doido. Embebeda-se e decide vingar-se, porém é atacado e morto à pancada por Jerónimo, Zé Carlos e Pataca. No cortiço Cabeça-de-Gato, a sua morte é atribuída aos carapicus, os moradores do cortiço rival, daí desencadear-se uma batalha generalizada entre os habitantes dos dois empreendimentos, a qual só termina quando é avistada uma labareda de fogo a sair de uma das casas. A Bruxa tinha conseguido, desta vez, incendiar o cortiço.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Caracterização de Paula

    Paula é uma cabocla velha, meio idiota, benzedeira e lavadeira. O narrador diz-nos que era extremamente feia, grossa, triste e com olhos de louca, daí ser apelidade de "Bruxa".
    Na noite em que Firmo e Jerónimo lutam, num acesso de loucura tenta incendiar o cortiço, pegando fogo ao número 12 com palha e pedaços de pau, todavia nunca ninguém consegue descobrir quem havida começado o incêndio.
    No momento em que os habitantes dos dois cortiços se enfrentam por causa da morte de Firmo, incendeia novamente o cortiço, desta vez com sucesso, pois não houve nenhuma tempestade que apagasse o fogo, como sucedera da primeira vez.
    Acaba por morrer carbonizada quando, bêbeda, surge à janela de casa, que arde, sem sentir as queimaduras e as feridas, e a habitação desaba sobre si.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Caracterização de Alexandra

    Alexandre é um mulato de quarenta anos, soldado da polícia, "de bigodão preto, sempre bem barbeado e bem vestido, de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço.", o que mostra que é um homem asseado e vaidoso, preocupado em manter uma boa apar~encia. É casado com a lavadeira Augusta "Carne-Mole".
    No final da obra, o narrador informa-nos que fora promovido a sargento.

Caracterização de Agostinho

    Agostinho é uma criança filha da lavadeira Leandra, a "Machona". Trata-se de um "menino levado dos diabos", isto é, travesso, irrequieto e irreverente, "que gritava tanto ou melhor que a mãe". O seu caráter irrequieto acabará por o levar a um destino terrível. De facto, morre violentamente: quando brincava na pedreira, como habitualmente, com dois rapazitos da estalagem, desequilibrara-se e caíra de uma altura superior a duzentos metros. A descrição do seu corpo é particularmente crua: "Todo ele, coitadinho, era uma só massa vermelha; as canelas, quebradas no joelho, dobravam moles para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada, abrira no casco e despejava o pirão dos miolos; numa das mãos faltavam-lhe todos os dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra."

Caracterização de Henrique, de O Cortiço

    Henrique é um jovem de 15 anos, proveniente de Minas Gerais, filho de um fazendeiro muito importante, possivelmente o melhor freguês que Miranda tinha no interior do país.
    Ele vai para o Rio de Janeiro para terminar os estudos, de modo a entrar na Academia de Medicina. É um rapaz "bonitinho, acanhadom com umas delicadezas de menina. Parecia muito cuidadoso no sestudos." Além disso, é poupado e a sua existência limita.se aos estudos, vivendo entre a casa e a escola ("Gastava muito pouco e só saía de casa para ir para as aulas."). Ou seja, estamos na presença de alguém disciplinado, dedicado aos estudos, reservado e prudente no que toca a finanças.
    No entanto, acaba por ser seduzido por Estela e envolve-se amorosamente com ela, sendo igualmente objeto de afeto por parte do velho Botelho, que os surpreende nos fundos do quintal certa noite.
    À medida que cresce, perde a timidez que o caracterizava quando viera para o Rio e torna-se um boémio, divertindo-se com os amigos e com prostitutas, como Pombinha, não se poupando a gastos. Todos estes aspetos evidenciam a transformação sofrida pelo jovem vindo do interior, de um meio conservador e protegido, em contacto com um meio bem diferente, o do Rio de Janeiro. O único traço que permanece é o de académico aplicado: frequenta o quarto ano de Medicina.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Caracterização do velho Botelho

    O velho Botelho mora na casa de Miranda, um pobre coitado de quase setenta anos, antipático, de cabelo branco, «curto e duro como uma escova, com barba e bigode do mesmo tipo".
    Já fora rico, graças ao comércio e ao tráfico de escravos, porém acabou por entrar numa espiral de fracassos que o conduziu à ruína financeira: "... foi perdendo tudo". Agora, velho e desiludido, vive graças à caridade de Miranda, de quem é amigo desde os tempos em que tinham sido colegas de trabalho na juventude.
    Botelho está a par das traições de Estela e o próprio marido, Miranda, costumava desabafar com ele o seu infortúnio no matrimónio, nomeadamente o desprezo que sentia pela esposa. O velho ficava contente com o facto de Miranda falar mal da consorte e concordava com ele. Ocasionalmente, a própria Estela não lhe escondia o desprezo e o nojo que dedicava ao marido, o que deixava Botelho ainda mais contente. Estamos, pois, na presença de uma figura mesquinha e cínica, que encontra satisfação nos conflitos e infelicidade alheios. Além disso, demonstra que a sua pretensa amizade por Miranda não é sincera, antes se devendo às suas necessidades.
    Experiente, nunca transmite a nenhum dos dois o que dizem um do outro, continuando a agir de forma dissimulada. Tanto é assim que certa noite surpreende Estela e Henrique envolvidos no fundo do quintal. Só aparece ao casal quando se separa, finge compreensão pelo caso amoroso ("acho isso a coisa mais natural do mundo!"), o que pode indiciar o seu caráter fingido, mas também pode sugerir a prática comum do adultério, de tal forma que se tornara quase natural. Na sequência, promete a Henrique guardar segredo acerca do seu envolvimento com Estela, aconselhando, inclusive, a envolver-se com mulheres mais velhas e não com "jovens donzelas", que lhe poderão causar problemas. Até lhe diz que está a fazer um favor ao próprio marido, pois faz com que a esposa fique de melhor humor e não aborreça o esposo, que necessita de descanso por causa do trabalho. Desta forma, Botelho incentiva o adultério de forma cínica, manipulando o inocente Henrique. Acrescenta ainda que deve evitar as prostitutas por causa das doenças e reafirma que necessita de se manter igualmente afastado das donzelas. Todo o diálogo entre o velho e o jovem é pautado por constantes gestos de carinho daquele ["(...) acho você simpático, porque acho você bonito!"),que sugerem a homossexualidade de Botelho.
    Deste modo, Henrique vê-se envolvidom do alto dos seus 15 anos, com uma mulher mais velha, o que nos coloca num quadro de pedofilia, e é desejado também por Botelho.
    Em determinado momento, começa a aproximar-se de João Romão, procurando tornar-se seu amigo, aproximação correspondida por parte do dono do cortiço. Na verdade, esta nova amizade era movida por interesse de ambos e o velho Botelho acaba por sugerir ao outro o casamento com Zulmirinha, a filha de Miranda e Estela, pois "Quem casar com Zulmira leva os prédios e ações do banco que estão no nome dela!...". Interesseiro, o velho pede a Romão vinte contos de réis para o ajudar a casar com a jovem.
    A concretização do casamento enfrenta um obstáculo: Bertoleza. Botelho sugere a João Romão que a mande embora e acaba por aceitar duzentos mil-réis para a denunciar como escrava fugida  a entregar aos herdeiros do homem de quem fugira, confirmando o seu caráter racista e abjeto: "Eu, para devolver negro fugido para o dono, estou sempre pronto."

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Caracterização de Zulmirinha

    Zulmirinha, filha de Miranda e Estela, é uma menina muito pálida e franzina, pouco desenvolvida fisicamente, com doze para treze anos. Trata-se de uma típica carioca, com olhos grandes, negros e maliciosos.
    O velho Botelho caracteriza-a como um «bom partido», uma «ótima menina», tranquila, dona de uma educação esmerada ("uma educação de princesa") que fala francês, toca piano, sabe cantar e desenhar e «Costura perfeitamente!», ou seja, é uma jovem prendada, educada e uma fala do lar. Além disso, é dona de prédios e possui ações no banco, isto é, é rica, o que desperta o interesse de João Romão. Nesta fase da obra, a rapariga conta 17 anos e perdeu o ar deslavado e anémico, apresentando já formas femininas desenvolvidas ("... agora tinha seios e quadril.").

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Caracterização de Augusta Carne-Mole

    Augusta Carne-Mole era uma lavadeira brasileira branca, casada com Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado na polícia.

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