Português: 03/01/2021 - 04/01/2021

domingo, 28 de março de 2021

"Autobiografia sumária de Adília Lopes", de Adília Lopes

 
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
 

            Apesar de o título do poema apontar para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto autobiográfico?

            É certo que o elemento «auto-» está presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos «meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia, mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.

            Uma leitura metafórica do poema permitiria entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas» como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente, sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer poético.

            Porém, o poema pode ser lido também de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam de brincar com estas.

            O uso do determinante possessivo tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).

            Numa crónica publicada na revista “Visão”, Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois. Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”

            A partir da leitura desta crónica, Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que “[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.

            Assim sendo, esta composição poética é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e pela solidão humana que pode sugerir).

            Além disso, os gatos ligam-se afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória: “O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”

            O poema, pela relação que estabelece entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”) que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente garantida.

            O uso do presente do indicativo na apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja, a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que compreende o relato de acontecimentos passados.

 

Análise de "Se fores boa menina", de Adília Lopes

 
Se fores boa menina
dou-te um periquito azul
eu fui boa menina
e sem querer abri a gaiola
se tivesses sido boa menina
o periquito azul não tinha fugido
mas eu fui boa menina.
 

            A composição poética constrói-se, em parte, a partir da anáfora dos versos 1 a 5 (“Se” / “se”) e da repetição da expressão “boa menina”, que traduzem o contraste entre o ponto de vista do mundo adulto e o do mundo infantil e a incompatibilidade que existe entre ambos.

            Por outro lado, o poema configura uma espécie de diálogo entre o sujeito poético – um adulto – e uma criança, sendo que os versos 1, 2, 5 e 6 contêm as “falas” do primeiro e os 3, 4 e 7, as do segundo.

            A figura adulta oferece uma recompensa a uma criança (e dar em seguida), se ela se comportar bem (“Se fores boa menina”) e agir de acordo com o padrão estabelecido pelas pessoas adultas. De seguida, o sujeito poético dá conta de que a menina recebeu o seu presente: um periquito azul. No entanto, ela deixa-o escapar, pois esqueceu-se da porta da gaiola.

            A partir deste «episódio», mostra o contraste existente entre os pontos de vista adulto e infantil, evidenciando as lógicas diferenciadas que caracterizam os dois mundos. Se, à primeira vista, o adulto exerce o seu papel de educador, já que parece estar preocupado com a formação e educação da menina, alertando-a para as atitudes que adotar e evitar para se tornar uma “boa menina”.

            Por outro lado, podemos ler a fala inicial do adulto como uma forma de chantagem: ele só dará o presente se a menina obedecer às suas ordens/seguir os seus conselhos e se comportar de determinado modo, ideia sugerida pelo uso do conectivo condicional «se» e pela variação de tempos verbais, nomeadamente no modo conjuntivo, no futuro (“se fores”) e pretérito imperfeito (“se tivesse”). O modo conjuntivo sugere a dúvida que o sujeito poético tinha relativamente à conduta da menina, isto porque, antes mesmo de ter dado o pássaro, o adulto já desconfiava dela, visto que, segundo ele, se a menina tivesse sido boa menina, a ave não teria fugido. Assim sendo, a recompensa dada pode ser interpretada como uma espécie de manobra por parte do adulto, já que as suas suposições relativamente à criança se confirmaram: ela não fora mesmo “boa menina”.

            Por oposição, a fala da criança traduz a sua certeza, visto que está convicta de que foi boa menina, ideia traduzida pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito do modo indicativo (“eu fui”). A mudança do modo conjuntivo, presente nas falas do adulto, para o indicativo, característico das da criança, traduz o contraste de pontos de vista e o seu inconformismo. De facto, para ela, o facto de ter deixado, por descuido, a porta da gaiola aberta, não justifica o julgamento do adulto, isto é, não compreende a razão por que não pode ser considerada uma “boa menina”. O ato de abrir, sem querer, a porta da gaiola, não pode servir como único determinante da sua conduta.

            Há, aqui, uma espécie de conflito quanto ao comportamento ético: o esperado pelo adulto e a conduta efetiva dela. As regras impostas pelos adultos devem ser seguidas e cumpridas, o que faz com que o presente que a criança tinha recebido deveria ter sido preservada com todo o cuidado, o que faz com que o pássaro que se encontrava preso numa gaiola é, de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos adultos – e, no fundo, da sociedade em geral, que dita as regras –, um indício de mau comportamento, já que as normas do bom comportamento não foram observadas.

            Todo o poema é percorrido pela ironia, presente, desde logo, na expressão “boa menina”. Para o adulto, a sua conduta configura o oposto: ela é uma “má menina”. Porém, ele não usa o antónimo “má”, o que pode configurar uma forma de maldade por parte daquele, dado que a ideia que a criança tem de “boa menina” se distancia da que está presente na mente do seu interlocutor. Por outro lado, a repetição faz ressaltar as noções de bondade e maldade. Em última análise, o poema questiona quem pode ser realmente mau: o adulto, por causa da forma como recriminou a menina, ou esta por não ter cumprido adequadamente o seu dever?

 

Como estacionar um avião

sábado, 27 de março de 2021

Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes

 
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
contaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
 
            Este poema, constituído por 8 versos, constrói-se a partir da repetição de duas estruturas: “minha Musa” (vv. 1, 2 e 7) e “língua” (vv. 4 e 5), e tem como tema a relação do sujeito poético com a sua Musa.

            A Musa avisa o «eu», antes mesmo de desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa, castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça” que faz ao sujeito poético.

            Apesar de reconhecer a crueldade da sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo. Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da linguagem.

            Sucede que, neste poema, a Musa inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua. A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das formas verbais nas primeira e segunda pessoas.

            A nível estilístico, a repetição irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua” é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua” no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.

            Este acarretará, naturalmente, consequências. Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada, não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo, este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.

 

Manutenção preditiva de aviões

"Eu sou a luva", de Adília Lopes

 
Eu sou a luva
e a mão
Adília e eu
quero coincidir
comigo mesma
 

            Neste poema, o sujeito poético apresenta-se com diversos «eus».

            A composição poética abre com duas metáforas: a da luva e a da mão, que sugerem a ligação entre duas pessoas, equiparando-se no que diz respeito ao modo de pensar e de agir. No entanto, neste poema parece sugerir a existência de conflitos e divisões.

            A ausência de pontuação – nomeadamente de vírgulas – permite-nos fazer diferentes leituras do texto. Assim, o sujeito poético apresenta-se, no início, marcado por dois nomes: a luva e a mão. Poderá isto significar que há dois «eus»: a Adília e o eu, que o sujeito poético procura fazer coincidir, formando um único ser. Deste modo, estaremos perante a união do sujeito poético (eu) com Adília. Convém, neste contexto, ter presente o facto de Adília Lopes constituir o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Deste modo, quando afirma que o «eu» do poema quer coincidir consigo “mesma”, este «eu» parece não ser já Maria José, visto que é com Adília (a figura que assina os textos) que o «eu» se quer unir, formando um único ser. Esta ideia parece ser confirmada por entrevistas dadas pela própria poeta, que afirma que “Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”. No entanto, logo de seguida acrescenta: “E muitos outros nomes que eu não sei”.

            Esta nota permite fazer outra leitura do poema. Se separarmos as conjunções coordenativas copulativas «e» presentes nos versos 2 e 3, deparamos com uma pulverização de «eus», visto que, além de Adília Lopes e Maria José, podem existir “muitos outros nomes”. Assim sendo, o «eu» que encontramos no início do poema não seria nem Adília Lopes (embora no terceiro verso apareça uma Adília, convém notar que o sobrenome Lopes não está presente, o que poderá indiciar a existência de outra figura, de outro nome, diferente da poeta que assina os seus textos como Adília Lopes) nem Maria José, mas um «eu» que não sabemos quem é. A leitura do segundo verso, deste modo, estender-se-ia até à segunda conjunção «e», presente no verso 3. Este dado permite afirmar que a mão é, agora, Adília. A ocorrência do segundo «eu». No final desse terceiro verso, poderá remeter tanto para o «eu» do primeiro verso como para outro, distanciando-se do primeiro. É este segundo «eu» que quer coincidir consigo mesmo. Assim sendo, se, de acordo com a primeira leitura, estaremos perante o par Adília Lopes / Maria José, de acordo com a segunda, seremos confrontados com várias «faces», podendo ser ora Adília Lopes, ora Maria José, ou ainda muitos outros nomes.

 

O avião é uma gangorra

ETOPS - Bimotores cruzando os oceanos

“Arte poética”, de Adília Lopes

 
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
            Esta composição poética tem como tema o ato de escrita, definido a partir de uma comparação estabelecida entre o poeta e um pescador que pretende “apanhar um peixe / com as mãos”.
            Segundo o sujeito poético, o poeta necessita de ter atenção e cuidado com as palavras, tal como o pescador necessita de muita atenção para pescar o peixe.
            A metáfora do peixe traduz o trabalho necessário durante o ato de escrita, visto que as palavras, “agindo como peixes”, são escorregadias e fugidias. O instrumento do pescador é a cana, enquanto o do poeta são as palavras, pelo que é necessário que o sujeito esteja sempre atento a elas. Para que a palavra não escape das suas mãos, é preciso ter cuidado em cada movimento, a cada verso. Tal como o pescar à mão é complexo, pois o peixe “debate-se / tenta escapar-se / escapa-se”, o poeta necessita também de persistir e lutar com as palavras para elaborar o poema.
            A ideia de luta é traduzida também pela estrutura formal do poema. De facto, a composição é constituída por uma única estrofe, constituída por 23 versos alternados, contribuindo, assim, para a construção da imagem de um peixe que, no instante em que parece estar preso entre as mãos do pescador, logo de seguida parecer escapar. Esta imagem é, pois, sugerida pela alternância de versos curtos (a maioria dos ímpares) e longos (os pares), bem como à concentração de versos mais pequenos, constituídos, no máximo, por três palavras, ocupando uma posição central no poema (versos 7 a 13).
            Deste modo, o sujeito poético sugere que o poema é o resultado de um trabalho árduo, que demanda esforço físico (“eu persisto / luto corpo a corpo / com o peixe”) e paciência. Esta luta constitui uma espécie de questão de vida ou morte.
            Assim, para o poeta, que luta com as palavras, existe apenas uma saída: a morte ou a salvação – “ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois”. No fundo, o que está em causa neste poema é o ato de escrita poética, temática abordada por diferentes escritores, sendo o mais célebre Fernando Pessoa e o seu “Autopsicografia”. Durante esse ato, o sujeito poético/poeta necessita de estar atento e concentrado e ser persistente, já que as palavras são escorregadias, como a imagem do peixe sugere, o que implica a tal atenção, precaução e persistência.
            Por outro lado, estas imagens vêm realçar a importância do trabalho com as mãos no ato de criação poética/artística, que exige uma determinada agilidade manual. Com efeito, o poeta necessita de selecionar adequadamente as palavras, as quais constituem a sua matéria-prima, que se materializam e tornam concretas quando são postas no papel. Tudo isto evidencia o “jogo perigoso” em que o poeta se vê envolvido durante o ato de criação poética, bem visível na imagem sôfrega de alguém a tentar apanhar um peixe com as mãos, o qual teima em escorregar e tentar escapar-lhe.
  

Por que razão um monomotor puxa para a esquerda? (parte II)

sexta-feira, 12 de março de 2021

Pressurização e máscaras de oxigénio

Análise de "D. Dinis"

 D. Dinis e o pinhal de Leiria
 
            Tradicionalmente, o rei D. Dinis (1261-1325), o sexto de Portugal, foi cognominado de o Lavrador, pois fomentou o desenvolvimento da agricultura (distribuiu terras, promoveu a agricultura, mandou plantar o pinhal de Leiria, embora atualmente se pense que a iniciativa terásido obra de Afonso III ou até de D. Sancho II).
            Independentemente de quem tenha sido, na verdade, o monarca que o mandou plantar, D. Dinis teve um papel fundamental no reforço da área do pinhal, do qual foram extraídos a madeira e o pez (alcatrão de origem vegetal) necessários, respetivamente, à construção e calafetagem das naus dos Descobrimentos.
 
 
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – O sonho visionário de D. Dinis.
 
▪ Nos dois primeiros versos é apontada a dupla faceta de D. Dinis: o poeta – o trovador (que compôs cantigas de amigo) e o lavrador, o responsável pela plantação do pinhal de Leiria, cuja madeira foi fundamental para a construção das naus dos Descobrimentos (“O plantador de naus a haver” – metáfora – v. 2). Ambas as atividades se referem a atos criadores.
 
▪ O cantar de amigo é escrito durante a noite. Por um lado, a noite é um tempo de silêncio, solidão e calma, ambiente propício à reflexão, à inspiração e à escrita. Por outro lado, a noite é o tempo da germinação, no qual se prepara o tempo futuro, ou seja, é um período de preparação para o dia que há de nascer. É por isso que D. Dinis é apresentado escrevendo de noite: o monarca representou (à luz da conceção providencialista da História presente em Mensagem) a preparação dos Descobrimentos e a origem da literatura portuguesa (que está associada ao Quinto Império, na sua vertente cultural). Além disso, a noite é o momento de fecundação do sonho, ao qual sucede o dia, o nascimento do império.
 
▪ A metáfora e a metonímia “O plantador de naus a haver” remetem para os pinheiros mandados plantar pelo rei, que são virtualmente as naus das Descobertas, pois foram eles que forneceram a madeira para construir as naus usadas nas Descobertas. Projeta-se em D. Dinis o sonho de navegações futuras, realizadas em naus construídas com a madeira dessas árvores, iniciando-se assim a criação de um mito em torno da figura do rei, que, involuntariamente, preparou o futuro.
 
▪ Com efeito, os três versos iniciais do poema apresentam-nos D. Dinis como um visionário, um homem de génio que tem a capacidade de antever o futuro.
 
▪ O oxímoro do verso 3 sugere que o som que D. Dinis ouve (que, na realidade, não existe) é uma prefiguração do futuro: é o som produzido por um pinhal que, futuramente, será extenso e de um mar que será dominado graças à madeira dele extraída. Ou seja, realça a atitude meditativa do rei, que, ao compor o seu cantar, profetiza já a epopeia das Descobertas.
 
▪ A comparação e a metáfora dos versos 4 e 5 sugerem que dos pinhais sairá a madeira para a construção das naus, que permitirão a construção de um império, isto é, que possibilitarão a expansão, que trará riqueza suficiente (trigo) para todos os portugueses. Estes recursos permitem-nos visionar uma imensa seara cujos frutos constituirão o alimento, o suporte de um movimento expansionista do qual emergirá um império. O trigo é o símbolo de alimento, de poder económico, pois as searas de trigo, de cor que lembra o ouro, são a promessa de riqueza para o país. Note-se a presença, no verso 4, do eco da cantiga de amigo “Ai flores, ai flores do verde pino”.
 
▪ Por outro lado, sugere que a génese, a origem do futuro teve início em terra. Tal como o trigo é a base do pão que alimenta os povos, também os pinheiros serão a base da construção dos barcos que alimentarão as Descobertas. O trigo «ondula» ao sabor do vento, as naus ao sabor das naus Estes recursos aproximam os pinhais semeados por D. Dinis de uma sementeira de trigo, que germinará e dará o pão que são as naus que contribuirão para a descoberta e construção do Império futuro.
 
▪ Tal como o trigo é o ingrediente principal do pão, também a madeira fornecida pelos pinhais constitui a matéria-prima que permitiu saciar a «fome de Império» dos portugueses.
 
▪ Por outro lado, a forma verbal «ondulam» associa o movimento dos pinhais e do trigo (impulsionados pelo vento) ao das ondas do mar, ou seja, sugere o movimento das ondas que, no futuro, serão atravessadas pelas naus portuguesas.
 
▪ A expressão “sem se poder ver” (v. 5 – metonímia) associa a D. Dinis um dos traços característicos do herói: é um ser excecional, singular, dado que consegue percecionar, antecipar o futuro – a aventura marítima e a construção de um império.
 
▪ O recurso ao presente do indicativo contribui para a mitificação do herói, mostrando que, no seu tempo, foi a sua ação que preparou involuntariamente o futuro dos Descobrimentos, tornando o seu contributo intemporal.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – A concretização do sonho.
 
▪ O sujeito poético associa o cantar de amigo que D. Dinis está a escrever a um regato, que, como um pequeno fio de água, corre para o mar. Esta metáfora significa que o rei, além de precursor dos Descobrimentos (enquanto responsável pela plantação do pinhal de Leiria), também é um precursor de toda a literatura portuguesa, visto que as cantigas de amigo que escreveu se contam entre as primeiras composições poéticas da língua e literatura portuguesas. O «oceano por achar» pode constituir uma referência à epopeia portuguesa, escrita por Camões, sobre os Descobrimentos: Os Lusíadas.
 
▪ Pode igualmente significar uma visão metafórica de Portugal (uma nação «jovem» – porque recém-formada – e «pura» – porque ainda não contaminada pela ganância e pelo materialismo trazidos pelos Descobrimentos) como um «arroio», ou seja, um pequeno curso de água (uma pequena nação) que corre, mal nasce, em direção ao oceano. O cantar é, em suma, jovem, inocente e puro, e procura, de forma persistente, determinada e contínua o «oceano por achar» (vv. 6-7).
 
▪ A personificação do verso 8 (“a fala dos pinhais, marulho obscuro”) sugere o caráter mítico de D. Dinis, uma espécie de intérprete de uma vontade superior, que anunciava aos ouvidos do rei um novo ciclo de conquistas. O som dos pinhais que D. Dinis imaginava ouvir era um prenúncio secreto (“obscuro”) do ruído da epopeia marítima dos portugueses.
 
▪ O mar a cumprir no futuro já pode ser adivinhado no rumor dos pinhais: “E a fala dos pinhais, marulho obscuro, / É o som presente desse mar futuro” (paradoxo e personificação – vv. 8-9). A fala dos pinhais manifesta o seu desejo de serem navios e de atingirem o mar, mas, nos últimos três versos, é a terra que anseia pelo mar. Trata-se da atração que o oceano sempre exerceu um povo que se distinguiu como uma nação de navegadores. Por outro lado, o último verso do poema traduz a ideia de união, isto é, a ideia de que o mar, após a sua conquista no futuro pelos portugueses, já não separará, antes ligará povos, culturas, civilizações.
 
▪ Os dois últimos versos da segunda estrofe indiciam os dois ciclos da História de Portugal: numa primeira fase, a expansão por terra, mais tarde o domínio do mar. D. Dinis mandou plantar o pinhal de Leiria para impedir que as terras à beira-mar fossem destruídas pela ação da areia do mar e do vento, no entanto, anos mais tarde, a madeira por ele produzida seria utilizada para construir as naus em que partiram os navegadores portugueses. A terra é, por isso, a voz presente que chama pelo futuro, o mar.

D. Dinis
 
 

Trovador
 
Plantador
 
 

Poeta: criador de poesia

 
Plantador do pinhal de Leiria: criador

 
 
 
Autor de cantigas de amigo (e de amor)

 
“é som presente desse mar futuro”

 
 
 
 
Prenúncio dos Descobrimentos: “o oceano por achar”

 
 
Integração do poema na estrutura de Mensagem
 
            “D. Dinis” faz parte de “Brasão”, a primeira parte de Mensagem, sendo o sexto poema da secção “Os Castelos”.
            D. Dinis foi o sexto rei de Portugal e antecede o ciclo das Descobertas. Trata-se do monarca de preparar o futuro, criando, no [seu] presente, condições para a construção do Império, que será cantado na segunda parte da obra.
 
 
Valor simbólico de D. Dinis
 
            D. Dinis é o herói apresentado como um instrumento de uma vontade transcendente que está ao serviço da missão que Portugal tem a cumprir: a construção de um império cultural, o Quinto Império.
            O rei foi um trovador, porque compôs poemas (cantigas de amigo e de amor), alguns dos quais tinham como cenário o mar.
            Foi o Lavrador, visto que desenvolveu a agricultura, dado que muitas terras tinham sido abandonadas e era necessário fomentar o setor, para alimentar a população.
            Foi ainda o plantador, isto porque mandou plantar o pinhal de Leiria, cuja madeira foi utilizada, posteriormente, para construir as naus das Descobertas.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível fónico, o poema é constituído por duas quintilhas. Os versos são irregulares quanto à métrica e ao ritmo. O segundo verso de cada estrofe possui 8 sílabas, enquanto os restantes são decassílabos.
            A rima é cruzada, emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABAAB; é consoante (“amigo”/”consigo”), pobre (“haver”/”ver”) e rica (“amigo”/”consigo”), grave (“amigo”/”consigo”) e aguda (“haver”/”ver”).
            O verso decassílabo, de ritmo largo, é próprio para a expressão de uma mensagem que traduz o meditar repousado de um poeta que é rei e vai ao leme de um povo que quer ser grande.
            No poema convivem os sons fechados e semifechados, que remetem para o sonho e para o impossível, e o som aberto [a], que remete para a expansão, para a realização do sonho.
            O poema é ainda rico em aliterações (“na noite”) e em assonâncias e onomatopeias, sugerindo o ruído do rio ou da água que corre: “E o rumor dos pinhais – marulho obscuro”.
 
            A nível morfossintático, são de destacar os seguintes recursos:
. Verbos:
- As formas verbais evocam o movimento, a flexibilidade sugerida na imagem da espiga de trigo ao vento, numa união entre o movimento e o sonho, como constatação de um destino que, numa primeira fase, é dado de uma forma indistinta.
- O “rumor dos pinhais”, o som, reaparece no último verso do poema, na expressão “a voz da terra”. A terra, por seu lado, é símbolo de fecundidade – é como se a ação de D. Dinis, cujas consequências se desconheciam ainda, se anunciasse no som indistinto.
- O mar funciona como o elemento fecundador do elemento feminino: a terra.
- Os verbos encontram-se no presente do indicativo, não apenas o presente histórico ou narrativo, mas sobretudo o presente de aspeto durativo. As formas verbais (“escreve”, “ouve”, “busca”) traduzem ações que perduram, que se prolongam no tempo.
   Por outro lado, fazem a interseção temporal passado/presente. De facto, o presente, no modo indicativo, aponta, ao nível mítico, para o futuro; ou seja, não só a época dos Descobrimentos surge como um tempo futuro em relação ao momento em que viveu D. Dinis, mas a própria dimensão do seu ato, que se projetará ainda num período que está para vir, que a expressão “mar futuro” anuncia. Para Pessoa, o ato criador do passado é a promessa de um futuro grandioso que se cumprirá sob a égide de Portugal.
 
. Nomes:
- O ato criador de D. Dinis é apresentado de forma analógica, constituindo-se em unidades duplas:
. cantar (de amigo) / arroio;
. plantador / Império;
. pinhais / trigo;
. terra / mar: remete para a ideia de união.
- O nome “noite”, no início do poema, encontra o seu duplo na totalidade do discurso, ou seja, o dia, cuja luz é o momento da própria fecundação, que dá origem ao nascimento do Império (quer no período dos Descobrimentos quer na era que, segundo Pessoa, constituirá o Quinto Império).
. Os adjetivos, sobretudo presentes na segunda estrofe, unem os princípios passividade/atividade, assim como dois momentos temporais distintos, que apontam para um tempo posterior às épocas referidas no poema.
 
            A nível semântico, deparamos com:
. Metáforas:
- “O plantador de naus a haver” (v. 2) – também metonímia, pois as naus são construídas com a madeira do pinhal, isto é, tomou-se o produto pela matéria de que é feito: sugerem a preparação longínqua da matéria-prima de que se fabricariam as naus para a epopeia marítima dos portugueses;
- “É o rumor dos pinhais...”: o rumor dos pinhais (ainda confuso como um marulhar) é já a semente de algo que frutificará, graças às possibilidades materiais (a madeira com que serão construídas as naus) e às capacidades psicológicas dos portugueses que sonharam sulcar os oceanos desconhecidos e conseguiram construir o nosso império ultramarino. A ação dinâmica do sonho da demanda do oceano reforça-se com a visão e audição do mar que nos chama para a nossa grande aventura épica e nos sagrará como heróis míticos. A nossa identidade nacional afirmou-se pela importância concedida ao sonho, à poesia e ao mar;
- “Arroio, esse cantar, jovem e puro, / Busca o oceano por achar...”:
. exprime a forma como os portugueses, começando quase do nada (“arroio”), foram engrossando o caudal das suas forças, até conquistarem o mar;
. por outro lado, a associação do canto a um rio, cuja água corre, simboliza que a ação de D. Dinis se perpetuará no tempo, ecoando no futuro.
            O poema referencia duas fases da nossa história: o ciclo da terra (“plantador de naus”, “pinhais”, “trigo”) e o ciclo do mar (“arroio”, “naus”, “mar”). A terra e o mar são dois pólos entre os quais se balouçou continuamente o povo português, sem nunca ter encontrado uma distância equilibrada entre esses dois pólos, de acordo com o ditado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
. Oxímoro: “... ouve um silêncio murmuro consigo” ® realça a atitude meditativa de D. Dinis que, como um mago rei-poeta, ao escrever o seu cantar de amigo, estava já a profetizar a epopeia marítima dos portugueses.
. Personificações:
- “É o rumor dos pinhais como um Trigo / De Império” (também comparação). porquê os pinhais, trigo de Império? O trigo (o pão) não é só a base da alimentação, é também o símbolo dos alimentos (ganhar o pão de cada dia é ganhar todos os alimentos). Por outro lado, não há império sem poder económico: o trigo é a promessa da riqueza de um país. Daí a ligação “pinhais” “Trigo de Império”. Os pinhais contribuíram para a expansão portuguesa e esta criará a riqueza do nosso império; a palavra trigo pode ter o sentido de abundância, ausência de fome, riqueza, sobrevivência, alargamento do território, construção do Império.
- “E a fala dos pinhais...”          e
- “É a voz da terra ansiando pelo mar”: os pinhais parecem falar e inspiram o próprio cantar do rei-poeta, porque anunciam qualquer coisa de grandioso, ainda envolvida em mistério.
. Conjunto de expressões que se congregam para dar a sugestão de um mistério do domínio futuro dos mares: “Na noite...”, “... silêncio murmuro...”, “... rumor dos pinhais...”, “... marulho obscuro...”.
 
            Este poema, como todos os de Mensagem, está imbuído de sensibilidade épica. A grandeza dos feitos de Portugal é inseparável da sua grandeza literária: o cantar nascido do marulhar dos pinheiros prenuncia a grandeza épica de Portugal. Não nos esqueçamos que Fernando Pessoa concebeu na Mensagem um super-Portugal de que ele seria o super-Poeta.


A organização da mensagem no plano espácio-temporal
 
            O sujeito poético imagina D. Dinis, “O plantador de naus a haver” (seria dos pinhais semeados por este rei que viria a madeira para os navios das descobertas), a compor uma cantiga de amigo, inspirado pelo rumor dos pinhais. O poeta recua no tempo até ao presente de D. Dinis (passado para o poeta) e escuta, com o rei, “a fala dos pinhais... o som presente desse mar futuro”. Assim, o poeta recorre ao presente, enquanto no poema “D. Sebastião” utiliza o passado. Neste caso, é Pessoa quem traz D. Sebastião para o seu tempo, isto porque este rei é uma figura lendária que está fora do seu tempo, porque é simultaneamente uma figura do passado, do presente e do futuro (sebastianismo).
            Por outro lado, notemos que a mensagem de "D. Dinis" está basicamente centrada no futuro, dado que, se a perspetiva temporal do poeta é a de D. Dinis e este rei preparava as glórias futuras da sua pátria, é óbvio que a mensagem se centra sobretudo no futuro: "O plantador de naus a haver...", "...É o som presente desse mar futuro...".
            No que diz respeito à questão espacial, há um conjunto de expressões que remetem claramente para a época anterior aos Descobrimentos: "O plantador de naus...", "... o rumor dos pinhais...", "É o som presente desse mar futuro...". Mas, por outro lado, surgem outras expressões que projetam Portugal através do mundo: "... como um Trigo / De Império...", "Busca o oceano por achar...", "... desse mar futuro...", "... ansiando pelo mar...".
            Se relacionarmos o espaço com o tempo, constatamos que ao futuro corresponde a projeção de Portugal através dos mares.
 
 
Conclusões
 
            1.ª) D. Dinis aparece caracterizado pelo cantar de amigo (o poeta) e como o plantador de naus (o lavrador). Assim, conciliam-se na sua personalidade poética o sonho providencialista de um império que se estenderá por longes terras e mares desconhecidos.
            O primeiro elemento caracterizador reporta-se ao rei trovador / poeta que compôs cantigas de amigo e de amor, na época trovadoresca. Ligado ao segundo, mostra como a poesia tem forte importância na construção do mundo. Como poeta, D. Dinis foi capaz de revelar estados psicológicos gerados pelo amor ausente, mas o seu poder criador consumou-se também no feito político de ter mandado plantar o pinhal de Leiria, lançando assim a semente das navegações e descobertas portuguesas. Portanto, de noite e no meio do seu próprio silêncio, o rei trovador percepcionou no rumor dos pinhais a nossa aventura oceânica.
 
            2.ª) De facto, Pessoa aponta D. Dinis não só como o rei trovador, mas também como o criador “genético” dos Descobrimentos. Se, por um lado, foi conhecido como o “Lavrador”, seu cognome, pela plantação do pinhal de Leiria, por outro lado, ele foi o grande responsável pela abundância de matéria-prima que proporcionou aos portugueses a expansão e a construção de um vastíssimo império, que se concretizou com o sonho do Infante D. Henrique.
 
            3.ª) São também evidentes no poema os elementos que evidenciam o destino mítico de Portugal:
. os pinhais plantados por D. Dinis;
. o rumor dos pinhais;
. esse cantar;
. o som presente;
. a voz da terra.
            Os pinhais plantados por D. Dinis, agitados pelo vento, prefiguram o marulho das ondas que as “naus a haver” hão de sulcar. O destino de Portugal cumpriu-se, porque este poeta / trovador pressentiu, a seu tempo, a nossa ânsia de perscrutar o desconhecido e distante, criando as condições favoráveis para o lançamento dessa aventura.
 
            4.ª) Em suma, D. Dinis é retratado como o rei capaz de antever futuros, justamente porque poeta visionário, em cujo cantar de amigo se fundam o rumor – a “fala dos pinhais” – e o mar futuro. Por isso ele é visto como “plantador de naus a haver”, as naus / cantar de amigo que desvendarão, no futuro que ele sonha, o “oceano por achar”. No poema, os pinhais plantados pelo rei-poeta-visionário são “um trigo de império” e “ondulam sem se poder ver” (porque futuros – só acessíveis aos sonhadores).
            Foi ele quem lançou a semente das navegações e dos Descobrimentos.
 
            5.ª) O poema insere-se na primeira parte de Mensagem, intitulada «Brasão», alusiva à constituição da nação. Remete, assim, para um tempo longínquo, que funciona como paradigma da construção do reino. Trata-se, porém, agora, de um reino espiritual, do Quinto Império, uma época de fraternidade universal, sem fronteiras definidas no espaço, sob a hegemonia dos portugueses.
 

quarta-feira, 10 de março de 2021

Estada ou estadia?

     Estada é uma palavra registada em português já desde o século XIII, com origem no verbo latino stare (supino statum), que tinha o significado de «estar de pé», «estar imóvel», «parar», «permanecer».

     A palavra estada significa «ação de estar», «demora em algum lugar», «parada», «detença», «permanência».

     Estes significados são referidos em dicionários atuais bem como em dicionários antigos, como, por exemplo, no Novo Diccionario da Lingua Portugueza, de Eduardo de Faria (1855), ou no Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, da Imprensa Nacional (1881), que também registam a expressão «dar a boa estada», com o significado de «cumprimentar quem está de estada ou residência», «visitar e cumprimentar uma pessoa à sua chegada».

     A palavra estada está documentada, por exemplo, em Os Maias (1888), de Eça de Queirós [«Havia três anos (desde a sua última estada em Paris) que ele não via Carlos.»], ou na obra A Selva (1930), de Ferreira de Castro [«A recordação da sua estada em Todos-os-Santos, com a constante ameaça daquele perigo, amarfanhava-o ainda, dolorosamente.»].

     Estadia é uma palavra com origem na palavra italiana stallia (primeiro dicionário acima referido), com o significado de «demora que o capitão de um navio fretado para o transporte de mercadorias é obrigado a fazer no porto aonde chegou, sem que por isso se lhe deva mais coisa alguma além do frete convencionado» ou «demora forçada do navio mercante no porto de destino».

     Trata-se de um termo que era usado em contratos comerciais entre quem fretava um navio e o respetivo capitão. Atualmente designa em geral «tempo que o capitão de um navio fretado é obrigado a permanecer no porto de chegada» e «prazo concedido para a descarga e a carga de mercadoria de navio fretado».

     A confusão no emprego das palavras estada e estadia é, pois, relativamente recente.'


Fonte: Ciberdúvidas, Maria Regina Rocha.
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