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sexta-feira, 12 de março de 2021

Análise de "D. Dinis"

 D. Dinis e o pinhal de Leiria
 
            Tradicionalmente, o rei D. Dinis (1261-1325), o sexto de Portugal, foi cognominado de o Lavrador, pois fomentou o desenvolvimento da agricultura (distribuiu terras, promoveu a agricultura, mandou plantar o pinhal de Leiria, embora atualmente se pense que a iniciativa terásido obra de Afonso III ou até de D. Sancho II).
            Independentemente de quem tenha sido, na verdade, o monarca que o mandou plantar, D. Dinis teve um papel fundamental no reforço da área do pinhal, do qual foram extraídos a madeira e o pez (alcatrão de origem vegetal) necessários, respetivamente, à construção e calafetagem das naus dos Descobrimentos.
 
 
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – O sonho visionário de D. Dinis.
 
▪ Nos dois primeiros versos é apontada a dupla faceta de D. Dinis: o poeta – o trovador (que compôs cantigas de amigo) e o lavrador, o responsável pela plantação do pinhal de Leiria, cuja madeira foi fundamental para a construção das naus dos Descobrimentos (“O plantador de naus a haver” – metáfora – v. 2). Ambas as atividades se referem a atos criadores.
 
▪ O cantar de amigo é escrito durante a noite. Por um lado, a noite é um tempo de silêncio, solidão e calma, ambiente propício à reflexão, à inspiração e à escrita. Por outro lado, a noite é o tempo da germinação, no qual se prepara o tempo futuro, ou seja, é um período de preparação para o dia que há de nascer. É por isso que D. Dinis é apresentado escrevendo de noite: o monarca representou (à luz da conceção providencialista da História presente em Mensagem) a preparação dos Descobrimentos e a origem da literatura portuguesa (que está associada ao Quinto Império, na sua vertente cultural). Além disso, a noite é o momento de fecundação do sonho, ao qual sucede o dia, o nascimento do império.
 
▪ A metáfora e a metonímia “O plantador de naus a haver” remetem para os pinheiros mandados plantar pelo rei, que são virtualmente as naus das Descobertas, pois foram eles que forneceram a madeira para construir as naus usadas nas Descobertas. Projeta-se em D. Dinis o sonho de navegações futuras, realizadas em naus construídas com a madeira dessas árvores, iniciando-se assim a criação de um mito em torno da figura do rei, que, involuntariamente, preparou o futuro.
 
▪ Com efeito, os três versos iniciais do poema apresentam-nos D. Dinis como um visionário, um homem de génio que tem a capacidade de antever o futuro.
 
▪ O oxímoro do verso 3 sugere que o som que D. Dinis ouve (que, na realidade, não existe) é uma prefiguração do futuro: é o som produzido por um pinhal que, futuramente, será extenso e de um mar que será dominado graças à madeira dele extraída. Ou seja, realça a atitude meditativa do rei, que, ao compor o seu cantar, profetiza já a epopeia das Descobertas.
 
▪ A comparação e a metáfora dos versos 4 e 5 sugerem que dos pinhais sairá a madeira para a construção das naus, que permitirão a construção de um império, isto é, que possibilitarão a expansão, que trará riqueza suficiente (trigo) para todos os portugueses. Estes recursos permitem-nos visionar uma imensa seara cujos frutos constituirão o alimento, o suporte de um movimento expansionista do qual emergirá um império. O trigo é o símbolo de alimento, de poder económico, pois as searas de trigo, de cor que lembra o ouro, são a promessa de riqueza para o país. Note-se a presença, no verso 4, do eco da cantiga de amigo “Ai flores, ai flores do verde pino”.
 
▪ Por outro lado, sugere que a génese, a origem do futuro teve início em terra. Tal como o trigo é a base do pão que alimenta os povos, também os pinheiros serão a base da construção dos barcos que alimentarão as Descobertas. O trigo «ondula» ao sabor do vento, as naus ao sabor das naus Estes recursos aproximam os pinhais semeados por D. Dinis de uma sementeira de trigo, que germinará e dará o pão que são as naus que contribuirão para a descoberta e construção do Império futuro.
 
▪ Tal como o trigo é o ingrediente principal do pão, também a madeira fornecida pelos pinhais constitui a matéria-prima que permitiu saciar a «fome de Império» dos portugueses.
 
▪ Por outro lado, a forma verbal «ondulam» associa o movimento dos pinhais e do trigo (impulsionados pelo vento) ao das ondas do mar, ou seja, sugere o movimento das ondas que, no futuro, serão atravessadas pelas naus portuguesas.
 
▪ A expressão “sem se poder ver” (v. 5 – metonímia) associa a D. Dinis um dos traços característicos do herói: é um ser excecional, singular, dado que consegue percecionar, antecipar o futuro – a aventura marítima e a construção de um império.
 
▪ O recurso ao presente do indicativo contribui para a mitificação do herói, mostrando que, no seu tempo, foi a sua ação que preparou involuntariamente o futuro dos Descobrimentos, tornando o seu contributo intemporal.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – A concretização do sonho.
 
▪ O sujeito poético associa o cantar de amigo que D. Dinis está a escrever a um regato, que, como um pequeno fio de água, corre para o mar. Esta metáfora significa que o rei, além de precursor dos Descobrimentos (enquanto responsável pela plantação do pinhal de Leiria), também é um precursor de toda a literatura portuguesa, visto que as cantigas de amigo que escreveu se contam entre as primeiras composições poéticas da língua e literatura portuguesas. O «oceano por achar» pode constituir uma referência à epopeia portuguesa, escrita por Camões, sobre os Descobrimentos: Os Lusíadas.
 
▪ Pode igualmente significar uma visão metafórica de Portugal (uma nação «jovem» – porque recém-formada – e «pura» – porque ainda não contaminada pela ganância e pelo materialismo trazidos pelos Descobrimentos) como um «arroio», ou seja, um pequeno curso de água (uma pequena nação) que corre, mal nasce, em direção ao oceano. O cantar é, em suma, jovem, inocente e puro, e procura, de forma persistente, determinada e contínua o «oceano por achar» (vv. 6-7).
 
▪ A personificação do verso 8 (“a fala dos pinhais, marulho obscuro”) sugere o caráter mítico de D. Dinis, uma espécie de intérprete de uma vontade superior, que anunciava aos ouvidos do rei um novo ciclo de conquistas. O som dos pinhais que D. Dinis imaginava ouvir era um prenúncio secreto (“obscuro”) do ruído da epopeia marítima dos portugueses.
 
▪ O mar a cumprir no futuro já pode ser adivinhado no rumor dos pinhais: “E a fala dos pinhais, marulho obscuro, / É o som presente desse mar futuro” (paradoxo e personificação – vv. 8-9). A fala dos pinhais manifesta o seu desejo de serem navios e de atingirem o mar, mas, nos últimos três versos, é a terra que anseia pelo mar. Trata-se da atração que o oceano sempre exerceu um povo que se distinguiu como uma nação de navegadores. Por outro lado, o último verso do poema traduz a ideia de união, isto é, a ideia de que o mar, após a sua conquista no futuro pelos portugueses, já não separará, antes ligará povos, culturas, civilizações.
 
▪ Os dois últimos versos da segunda estrofe indiciam os dois ciclos da História de Portugal: numa primeira fase, a expansão por terra, mais tarde o domínio do mar. D. Dinis mandou plantar o pinhal de Leiria para impedir que as terras à beira-mar fossem destruídas pela ação da areia do mar e do vento, no entanto, anos mais tarde, a madeira por ele produzida seria utilizada para construir as naus em que partiram os navegadores portugueses. A terra é, por isso, a voz presente que chama pelo futuro, o mar.

D. Dinis
 
 

Trovador
 
Plantador
 
 

Poeta: criador de poesia

 
Plantador do pinhal de Leiria: criador

 
 
 
Autor de cantigas de amigo (e de amor)

 
“é som presente desse mar futuro”

 
 
 
 
Prenúncio dos Descobrimentos: “o oceano por achar”

 
 
Integração do poema na estrutura de Mensagem
 
            “D. Dinis” faz parte de “Brasão”, a primeira parte de Mensagem, sendo o sexto poema da secção “Os Castelos”.
            D. Dinis foi o sexto rei de Portugal e antecede o ciclo das Descobertas. Trata-se do monarca de preparar o futuro, criando, no [seu] presente, condições para a construção do Império, que será cantado na segunda parte da obra.
 
 
Valor simbólico de D. Dinis
 
            D. Dinis é o herói apresentado como um instrumento de uma vontade transcendente que está ao serviço da missão que Portugal tem a cumprir: a construção de um império cultural, o Quinto Império.
            O rei foi um trovador, porque compôs poemas (cantigas de amigo e de amor), alguns dos quais tinham como cenário o mar.
            Foi o Lavrador, visto que desenvolveu a agricultura, dado que muitas terras tinham sido abandonadas e era necessário fomentar o setor, para alimentar a população.
            Foi ainda o plantador, isto porque mandou plantar o pinhal de Leiria, cuja madeira foi utilizada, posteriormente, para construir as naus das Descobertas.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível fónico, o poema é constituído por duas quintilhas. Os versos são irregulares quanto à métrica e ao ritmo. O segundo verso de cada estrofe possui 8 sílabas, enquanto os restantes são decassílabos.
            A rima é cruzada, emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABAAB; é consoante (“amigo”/”consigo”), pobre (“haver”/”ver”) e rica (“amigo”/”consigo”), grave (“amigo”/”consigo”) e aguda (“haver”/”ver”).
            O verso decassílabo, de ritmo largo, é próprio para a expressão de uma mensagem que traduz o meditar repousado de um poeta que é rei e vai ao leme de um povo que quer ser grande.
            No poema convivem os sons fechados e semifechados, que remetem para o sonho e para o impossível, e o som aberto [a], que remete para a expansão, para a realização do sonho.
            O poema é ainda rico em aliterações (“na noite”) e em assonâncias e onomatopeias, sugerindo o ruído do rio ou da água que corre: “E o rumor dos pinhais – marulho obscuro”.
 
            A nível morfossintático, são de destacar os seguintes recursos:
. Verbos:
- As formas verbais evocam o movimento, a flexibilidade sugerida na imagem da espiga de trigo ao vento, numa união entre o movimento e o sonho, como constatação de um destino que, numa primeira fase, é dado de uma forma indistinta.
- O “rumor dos pinhais”, o som, reaparece no último verso do poema, na expressão “a voz da terra”. A terra, por seu lado, é símbolo de fecundidade – é como se a ação de D. Dinis, cujas consequências se desconheciam ainda, se anunciasse no som indistinto.
- O mar funciona como o elemento fecundador do elemento feminino: a terra.
- Os verbos encontram-se no presente do indicativo, não apenas o presente histórico ou narrativo, mas sobretudo o presente de aspeto durativo. As formas verbais (“escreve”, “ouve”, “busca”) traduzem ações que perduram, que se prolongam no tempo.
   Por outro lado, fazem a interseção temporal passado/presente. De facto, o presente, no modo indicativo, aponta, ao nível mítico, para o futuro; ou seja, não só a época dos Descobrimentos surge como um tempo futuro em relação ao momento em que viveu D. Dinis, mas a própria dimensão do seu ato, que se projetará ainda num período que está para vir, que a expressão “mar futuro” anuncia. Para Pessoa, o ato criador do passado é a promessa de um futuro grandioso que se cumprirá sob a égide de Portugal.
 
. Nomes:
- O ato criador de D. Dinis é apresentado de forma analógica, constituindo-se em unidades duplas:
. cantar (de amigo) / arroio;
. plantador / Império;
. pinhais / trigo;
. terra / mar: remete para a ideia de união.
- O nome “noite”, no início do poema, encontra o seu duplo na totalidade do discurso, ou seja, o dia, cuja luz é o momento da própria fecundação, que dá origem ao nascimento do Império (quer no período dos Descobrimentos quer na era que, segundo Pessoa, constituirá o Quinto Império).
. Os adjetivos, sobretudo presentes na segunda estrofe, unem os princípios passividade/atividade, assim como dois momentos temporais distintos, que apontam para um tempo posterior às épocas referidas no poema.
 
            A nível semântico, deparamos com:
. Metáforas:
- “O plantador de naus a haver” (v. 2) – também metonímia, pois as naus são construídas com a madeira do pinhal, isto é, tomou-se o produto pela matéria de que é feito: sugerem a preparação longínqua da matéria-prima de que se fabricariam as naus para a epopeia marítima dos portugueses;
- “É o rumor dos pinhais...”: o rumor dos pinhais (ainda confuso como um marulhar) é já a semente de algo que frutificará, graças às possibilidades materiais (a madeira com que serão construídas as naus) e às capacidades psicológicas dos portugueses que sonharam sulcar os oceanos desconhecidos e conseguiram construir o nosso império ultramarino. A ação dinâmica do sonho da demanda do oceano reforça-se com a visão e audição do mar que nos chama para a nossa grande aventura épica e nos sagrará como heróis míticos. A nossa identidade nacional afirmou-se pela importância concedida ao sonho, à poesia e ao mar;
- “Arroio, esse cantar, jovem e puro, / Busca o oceano por achar...”:
. exprime a forma como os portugueses, começando quase do nada (“arroio”), foram engrossando o caudal das suas forças, até conquistarem o mar;
. por outro lado, a associação do canto a um rio, cuja água corre, simboliza que a ação de D. Dinis se perpetuará no tempo, ecoando no futuro.
            O poema referencia duas fases da nossa história: o ciclo da terra (“plantador de naus”, “pinhais”, “trigo”) e o ciclo do mar (“arroio”, “naus”, “mar”). A terra e o mar são dois pólos entre os quais se balouçou continuamente o povo português, sem nunca ter encontrado uma distância equilibrada entre esses dois pólos, de acordo com o ditado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
. Oxímoro: “... ouve um silêncio murmuro consigo” ® realça a atitude meditativa de D. Dinis que, como um mago rei-poeta, ao escrever o seu cantar de amigo, estava já a profetizar a epopeia marítima dos portugueses.
. Personificações:
- “É o rumor dos pinhais como um Trigo / De Império” (também comparação). porquê os pinhais, trigo de Império? O trigo (o pão) não é só a base da alimentação, é também o símbolo dos alimentos (ganhar o pão de cada dia é ganhar todos os alimentos). Por outro lado, não há império sem poder económico: o trigo é a promessa da riqueza de um país. Daí a ligação “pinhais” “Trigo de Império”. Os pinhais contribuíram para a expansão portuguesa e esta criará a riqueza do nosso império; a palavra trigo pode ter o sentido de abundância, ausência de fome, riqueza, sobrevivência, alargamento do território, construção do Império.
- “E a fala dos pinhais...”          e
- “É a voz da terra ansiando pelo mar”: os pinhais parecem falar e inspiram o próprio cantar do rei-poeta, porque anunciam qualquer coisa de grandioso, ainda envolvida em mistério.
. Conjunto de expressões que se congregam para dar a sugestão de um mistério do domínio futuro dos mares: “Na noite...”, “... silêncio murmuro...”, “... rumor dos pinhais...”, “... marulho obscuro...”.
 
            Este poema, como todos os de Mensagem, está imbuído de sensibilidade épica. A grandeza dos feitos de Portugal é inseparável da sua grandeza literária: o cantar nascido do marulhar dos pinheiros prenuncia a grandeza épica de Portugal. Não nos esqueçamos que Fernando Pessoa concebeu na Mensagem um super-Portugal de que ele seria o super-Poeta.


A organização da mensagem no plano espácio-temporal
 
            O sujeito poético imagina D. Dinis, “O plantador de naus a haver” (seria dos pinhais semeados por este rei que viria a madeira para os navios das descobertas), a compor uma cantiga de amigo, inspirado pelo rumor dos pinhais. O poeta recua no tempo até ao presente de D. Dinis (passado para o poeta) e escuta, com o rei, “a fala dos pinhais... o som presente desse mar futuro”. Assim, o poeta recorre ao presente, enquanto no poema “D. Sebastião” utiliza o passado. Neste caso, é Pessoa quem traz D. Sebastião para o seu tempo, isto porque este rei é uma figura lendária que está fora do seu tempo, porque é simultaneamente uma figura do passado, do presente e do futuro (sebastianismo).
            Por outro lado, notemos que a mensagem de "D. Dinis" está basicamente centrada no futuro, dado que, se a perspetiva temporal do poeta é a de D. Dinis e este rei preparava as glórias futuras da sua pátria, é óbvio que a mensagem se centra sobretudo no futuro: "O plantador de naus a haver...", "...É o som presente desse mar futuro...".
            No que diz respeito à questão espacial, há um conjunto de expressões que remetem claramente para a época anterior aos Descobrimentos: "O plantador de naus...", "... o rumor dos pinhais...", "É o som presente desse mar futuro...". Mas, por outro lado, surgem outras expressões que projetam Portugal através do mundo: "... como um Trigo / De Império...", "Busca o oceano por achar...", "... desse mar futuro...", "... ansiando pelo mar...".
            Se relacionarmos o espaço com o tempo, constatamos que ao futuro corresponde a projeção de Portugal através dos mares.
 
 
Conclusões
 
            1.ª) D. Dinis aparece caracterizado pelo cantar de amigo (o poeta) e como o plantador de naus (o lavrador). Assim, conciliam-se na sua personalidade poética o sonho providencialista de um império que se estenderá por longes terras e mares desconhecidos.
            O primeiro elemento caracterizador reporta-se ao rei trovador / poeta que compôs cantigas de amigo e de amor, na época trovadoresca. Ligado ao segundo, mostra como a poesia tem forte importância na construção do mundo. Como poeta, D. Dinis foi capaz de revelar estados psicológicos gerados pelo amor ausente, mas o seu poder criador consumou-se também no feito político de ter mandado plantar o pinhal de Leiria, lançando assim a semente das navegações e descobertas portuguesas. Portanto, de noite e no meio do seu próprio silêncio, o rei trovador percepcionou no rumor dos pinhais a nossa aventura oceânica.
 
            2.ª) De facto, Pessoa aponta D. Dinis não só como o rei trovador, mas também como o criador “genético” dos Descobrimentos. Se, por um lado, foi conhecido como o “Lavrador”, seu cognome, pela plantação do pinhal de Leiria, por outro lado, ele foi o grande responsável pela abundância de matéria-prima que proporcionou aos portugueses a expansão e a construção de um vastíssimo império, que se concretizou com o sonho do Infante D. Henrique.
 
            3.ª) São também evidentes no poema os elementos que evidenciam o destino mítico de Portugal:
. os pinhais plantados por D. Dinis;
. o rumor dos pinhais;
. esse cantar;
. o som presente;
. a voz da terra.
            Os pinhais plantados por D. Dinis, agitados pelo vento, prefiguram o marulho das ondas que as “naus a haver” hão de sulcar. O destino de Portugal cumpriu-se, porque este poeta / trovador pressentiu, a seu tempo, a nossa ânsia de perscrutar o desconhecido e distante, criando as condições favoráveis para o lançamento dessa aventura.
 
            4.ª) Em suma, D. Dinis é retratado como o rei capaz de antever futuros, justamente porque poeta visionário, em cujo cantar de amigo se fundam o rumor – a “fala dos pinhais” – e o mar futuro. Por isso ele é visto como “plantador de naus a haver”, as naus / cantar de amigo que desvendarão, no futuro que ele sonha, o “oceano por achar”. No poema, os pinhais plantados pelo rei-poeta-visionário são “um trigo de império” e “ondulam sem se poder ver” (porque futuros – só acessíveis aos sonhadores).
            Foi ele quem lançou a semente das navegações e dos Descobrimentos.
 
            5.ª) O poema insere-se na primeira parte de Mensagem, intitulada «Brasão», alusiva à constituição da nação. Remete, assim, para um tempo longínquo, que funciona como paradigma da construção do reino. Trata-se, porém, agora, de um reino espiritual, do Quinto Império, uma época de fraternidade universal, sem fronteiras definidas no espaço, sob a hegemonia dos portugueses.
 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Análise de "Ulisses"

    Análise do poema aqui: Ulisses.

Classificação de Mensagem

          A Mensagem não se presta a uma classificação unívoca; pelo contrário, é possível detectar na obra marcas de diferentes tipologias.

          Desde logo, é possível referenciá-la como uma obra lírica (sobretudo na terceira parte):
               » é um livro de poemas;
               » a forma é fragmentária (ao contrário, por exemplo, de Os Lusíadas);
               » o sujeito lírico evidencia uma atitude introspectiva;
               » o sujeito lírico exprime os seus sentimentos, sonhos, desejos, crenças
                  (relativamente ao presente, ou ao futuro da Pátria);
               » há uma postura de interiorização e de contemplação da alma humana;
               » o simbolismo;
               » a inquietação, a ânsia, o constante interrogar-se («'Screvo meu livro à beira-
                  mágoa»);
               » o presente de sofrimento e mágoa;
               » o tom menor;
               » a visão subjectiva do enunciador.

          Contudo, especialmente na segunda parte, a obra é também de carácter épico:
               » os poemas, juntos, formam um todo integrado;
               » os heróis portugueses do passado possuem um valor simbólico e mitológico;
               » há um apelo à glorificação lusíada no século XX e demais;
               » o heroísmo:
                    . os heróis (os marinheiros que percorreram os mares e se imortalizaram)
                      agem pelo instinto, sem terem a visão do sentido e alcance dos seus actos

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Título: Mensagem

     A explicação em torno do título dado por Pessoa à sua única obra em língua portuguesa publicada em vida não é consensual, daí que não seja de estranhar que existam diversas teorias acerca do tema.

. Título inicial: Portugal:
  • foi alterado, a conselho do seu amigo Cunha Dias;
  • razão: o nome da pátria estava muito associado a textos publicitários, que promoviam, por exemplo, marcas de sapatos e marcas de hotéis;
  • exemplo de um slogan da época: «Portugalize os seus pés».

. 1.ª explicação:
  • o título é constituído por 8 letras:
  • 8 é o número do equilíbrio cósmico que simboliza a palavra criadora;
  • 8 é o símbolo da ressurreição, da mudança e do anúncio de um novo tempo.

. 2.ª explicação:
  • mensagem = comunicação, missiva;
  • o vocábulo pressupõe a existência de um emissor e de um recetor, desde logo sugeridos na epígrafe da obra - «Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis Signum» («Bendito Deus Nosso Senhor que nos deu o Sinal»);
  • emissor da mensagem: Deus;
  • recetor: o Poeta, que, pelo seu génio, foi eleito por Deus, para dar conhecimento da mensagem à tribo de que será guia e profeta, transformando-se também, em emissor.

. 3.ª explicação:
  • o título Mensagem teria tido origem na afirmação feita por Anquises, personagem da Eneida, quando explica a Eneias, descido aos Infernos, o sistema do Universo - Mens agitat molem = a mente move a matéria;
  • Mensagem será, assim, um anagrama da afirmação mens + ag(itat mol) + em;
  • o objetivo da obra seria mover as «moles» (a matéria) humanas através da poesia;
  • simbologia da descida aos Infernos:
  • poder associado às ideias de decadência e subsequente renascimento, sendo esse o processo cíclico apontado como condição necessária ao ressurgimento da pátria num estado ideal;
  • aceitando a morte do passado, o poder fecundador do mito trará um futuro perfeito.

. 4.ª explicação:
  • o título poderá ainda estar ligado à expressão «ens gemma», isto é, ente em gema, ovo;
  • tal significaria Portugal em essência, gema;
  • associação à ideia de encantamento, de magia: para os alquimistas, o ovo filosófico é o embrião da vida espiritual, do qual eclodirá a sabedoria;
  • no ovo, concentram-se todas as possibilidades de criar, recriar, renovar e ressurgir. Ele é a prova e o recetáculo de todas as transmutações e metamorfoses.

. 5.ª explicação:
  • a palavra mensagem pode ser «recortada» e construir as expressões mea gens ou gens mea, isto é, «minha gente» ou «gente minha», remetendo para a raça de heróis nomeados ao longo da obra;
  • outra hipótese remete para mensa gemmarum, isto é, o altar ou mesa onde repousam as gemas portuguesas - Portugal é onde se procede ao sacrifício necessário à realização do sagrado;
  • Portugal seria, assim, o altar onde os sacrifícios em nome do divino foram realizados.

Enquadramento cultural de Mensagem

● Em ruptura com a tradição, os artistas optam por uma abordagem mais irónica e provocatória;

● Na Literatura, os protagonistas passam de heróis a seres vulgares;

● Enaltecido pelas correntes literárias anteriores, o indivíduo perde a sua identidade e unidade, criando «outros eus» (fragmentação do «eu»);

● Maior liberdade na linguagem, atribuindo sentidos metafóricos novos às palavras;

● Reinventam-se as formas, usam-se técnicas novas e experimentam-se caminhos desconhecidos;

● Movimentos:
          ► Modernismo: diversidade e pluralidade, caminho pessoal de questionação e reinvenção
               dos valores;
          ► Futurismo: movimento, velocidade, energia explosiva e máquinas como demonstração
               da força do indivíduo;
          ► Cubismo: fraccionamento da realidade;
          ► Abstraccionismo: recusa de representação do real;
          ► Surrealismo: apelo à imaginação, ao sonho e à loucura; escrita automática.

Circunstâncias de produção de Mensagem

● Influenciado pela poética saudosista e pelos ideais lusitanistas do poeta Teixeira de Pascoaes, que intuíra e profetizara uma futura civilização lusitana, Fernando Pessoa publica uma série de artigos na revista A Águia (em Abril de 1912), em que exprime o seu entusiasmo e o forte sentimento de patriotismo, o desejo de regeneração nacional e visiona um movimento poético (e um consequente movimento social e civilizacional) grandioso e exaltante.

● A Mensagem terá tido origem no projecto de um livro cujo título seria Gládio, do qual resultou apenas um poema com esse nome, integrado na obra, surgido em 1913.

● A ideia de um livro de poemas de inspiração nacional terá surgido, pela primeira vez, por volta de 1917-1918, na época em que governou Sidónio Pais.

● O intervalo de elaboração dos poemas vai de 21 de Julho de 1913 a 26 de Março de 1934.

● Em 1922, foi publicado um conjunto de poemas, sob o título de «Mar Português», que acabaria por constituir a segunda parte de Mensagem.

● O trabalho de produção dos poemas é acompanhado de um trabalho exaustivo de leitura, de investigação e de estudo de temática patriótica presente em vários textos da sua autoria.

● A estrutura definitiva da Mensagem é concebida entre Janeiro e Março de 1934, tendo alguns poemas sido reescritos.

● A obra é publicada (a única em língua portuguesa em vida do poeta), propositadamente, em 1 de Dezembro de 1934, um ano após Salazar ter assumido a chefia do governo do país, instaurando o Estado Novo. A data foi escolhida em razão da carga simbólica que encerra, dado tratar-se do dia da Restauração. De facto, Pessoa pretendia, com este gesto, dar nota das intenções patrióticas que o dominavam.

● A publicação da Mensagem suscitou algumas reservas no poeta, «acusado» de contribuir, com ela, para reforçar a ideologia fascista do Estado Novo.

● Registe-se, a título de curiosidade, que Fernando Pessoa colaborou com o regime salazarista entre 1933 e 1934, no entanto esta situação foi sol de pouca dura, visto que o poeta, que não suportava a ausência de liberdade e a opressão, se tornou opositor do regime.

● A obra foi proposta para o Prémio Antero de Quental, que se destinava a distinguir "poesia nacionalista", mas tal acabou por não acontecer por não possuir o número de páginas estipulado (100). António Ferro, amigo de Pessoa dos tempos da revista Orpheu e responsável pelo Secretariado de Propaganda Nacional, improvisou um prémio de segunda categoria para distinguir Mensagem.

● A obra integra-se na corrente modernista, transmitindo uma visão épico-lírica do destino português, nela se salientando um conjunto vasto de símbolos e de mitos, como, por exemplo, o Sebastianismo, o Quinto Império, as Idades, etc.

● De acordo com o próprio Pessoa (Páginas Íntimas), a obra é um livro «abundantemente embebido em simbolismo templário e rosacruciano», ao mesmo tempo marcado por tonalidades épicas e messiânicas.

● Na Mensagem, Pessoa assume-se como o cantor do fim do império português (Camões foi o cantor do seu início e auge). De facto, a Pátria, no tempo do poeta, encontrava-se num estado de decadência e desagregação, circunstância que faz despertar nela a ânsia de renovação e regeneração que procura plasmar na sua obra. Ele acreditava que, através dos seus textos, poderia despertar as consciências e fazê-las acreditar e desejar a grandeza de outrora. Por isso, as duas partes iniciais de Mensagem assinalam o passado histórico e grandioso de Portugal, enquanto a terceira descreve o presente decadente e anuncia a vinda do Encoberto, representado na figura mítica de D. Sebastião, o pilar do Quinto Império.

● O projecto de Fernando Pessoa relaciona-se, em parte, com o ideal da Renascença Portuguesa, antevendo o «ressurgimento assombroso de Portugal, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido, em que a alma portuguesa encerraria a alma recém-nascida da futura civilização europeia, que será uma civilização lusitana.»

● Pessoa preconizava para Portugal a construção de um novo império, já não de carácter material, como o fora o dos descobrimentos, mas de natureza espiritual, capaz de elevar os Portugueses ao lugar de destaque que outrora tinham ocupado a nível mundial. Seria, assim, um império da língua e da cultura portuguesas, um império do modo de ser português, do culto da liberdade e da solidariedade, da capacidade de adaptação às situações mais imprevistas.

● Em várias ocasiões, o poeta designou esse seu desígnio de «nova Índia», uma «Índia que não há» ("E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo que os sonhos são feitos. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal anterremedo, realizar-se-á..." - in A Nova Poesia Portuguesa) e que seria projectada / cantada por um Super-Poeta, um Super-Camões (provavelmente, o próprio Pessoa), que cantará a genialidade do seu povo e a espalhará por todo o mundo. No fundo, considera-se investido no cargo de anunciador do tal novo império (na sequência dos textos do Padre António Vieira), o Português.

● O conteúdo enaltecedor da maioria dos poemas contrasta com o contexto em que foram produzidos:
          » acompanham alguns dos factos principais da História de Portugal;
          » retratam as suas figuras centrais;
          » recuperam os seus símbolos, as suas lendas e o essencial da sua mitologia;
          » criam o destino de uma super-nação mítica que faltaria cumprir.

● Intencionalidade comunicativa da obra:
          » regenerar o orgulho português;
          » cantar o passado histórico glorioso de Portugal de uma forma emblemática e simbólica,
             transformando-a num mito, a partir do qual seja possível reinventar o futuro;
          » anunciar o renascer de uma pátria grandiosa, um novo império civilizacional, uma
             Super-Nação mítica.

Enquadramento histórico de Mensagem

● Início do século XX;

● Período de ressaca da questão do Mapa Cor-de-Rosa e do «Ultimatum» inglês, que provocou um sentimento de humilhação no povo português;

● Período de avanços tecnológicos e científicos, contrastando com as más condições de trabalho dos operários;

● I Guerra Mundial (1914-1918);

● Revolução russa (1917);

● Necessidade de repensar a sociedade e o próprio Homem:
          ► Nietzsche põe em causa os fundamentos de então e sugere uma reavaliação dos
               valores para viver a vida na sua plenitude;
          ► Freud demonstra a complexidade do Homem e o seu lado inconsciente;
          ► Einstein põe em causa grande parte do conhecimento científico.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Análise de "O Mostrengo"

. Assunto: Chegados ao Cabo das Tormentas, os portugueses encontram um monstro voador, o «mostrengo», que pretende atemorizá-los para que não prossigam a viagem. Porém, o marinheiro português (o «homem do leme»), embora de início o receie e hesite, enfrenta-o, neutralizando-o, pois está imbuído da vontade de um rei  e de um povo que não abdica da sua missão.


2. Título

1.º) A palavra «mostrengo» é derivada por sufixação («monstro + engo»). O sufixo «-engo», de origem germânica, tem um valor pejorativo. «Mostrengo» significa, assim, «ente fantástico, geralmente considerado perigoso e assustador, dotado de uma configuração fora do normal e desagradável» (in manual Entre Margens 12).

2.º) Por outro lado, «mostrengo» está relacionado com o verbo «mostrar». Neste sentido, «mostrengo» é aquele que mostra o que não é ainda conhecido.


3. Retrato do «mostrengo»:
. situa-se no desconhecido, na lonjura, no local que se julgava ser o fim («está no fim do mar / Na noite de breu…») – vv. 1-2), ligado a um tom de mistério, de enigma;
. é o senhor dos mares e dos seus segredos: «Nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tetos negros do fim do mundo» (vv. 6-7) ‑ o mar é apresentado fechado no sentido de espaço e sem fim no sentido da profundidade, indiciando mistério; por outro lado, representa o desconhecido («Nas minhas cavernas que não desvendo»; «fim do mundo»);
. tem um aspeto semelhante ao de um morcego:
‑ voa (v. 2) – notar a intenção de exprimir a voz do morcego e o seu nervosismo, por ver os seus domínios ameaçados, através da musicalidade de sons como /u/, /ô/, /ê/, /i/, /a/;
‑ chia;
‑ habita cavernas e tetos negros;
‑ roça nas velas da nau;
‑ vê as quilhas de alto (v. 11);
‑ é imundo e grosso ‑ tem um aspeto medonho, horrível (v. 13);
. é ameaçador e arrogante (as suas falas);
. defende os seus domínios perante a ousadia dos portugueses, que ousam invadir e desvendar esses domínios;
. tem atitudes intimidatórias, ameaçadoras, aterrorizadoras, de força e poder:
‑ os movimentos circulares que tece em roda da nau (vv. 3, 4, 12, 13, 25) parecem querer «asfixiar» os portugueses;
‑ roça nas velas;
‑ chia;
‑ etc.
. tem poder sobre o mar: «o que só eu posso» (v. 14);
. identifica-se com o mar tenebroso e desconhecido: «moro onde nunca ninguém me visse / E escorro os medos do mar sem fundo» (vv. 15-16) ‑ notar a expressividade do verbo «escorrer», sugerindo que o «mostrengo» simboliza o mar, bem como a aliteração em /m/ e o pretérito imperfeito do conjuntivo «visse», sugerindo o desejo do «mostrengo» em continuar desconhecido;
. sente-se desafiado;
. infunde medo e terror;
. manifesta revolta, indignação e desejo de vingança perante a ousadia dos portugueses («Quem é que ousou entrar…», «Escorro os medos do mar sem fundo…»);
. os argumentos de autoridade que evoca têm como objetivo infundir nos marinheiros o medo e levá-los a retroceder, a desistir da sua viagem;
. na 3.ª estrofe, apaga-se e já não fala, facto que denota o triunfo dos marinheiros. De facto, à medida que o poema vai avançando, o «mostrengo» perde força, acabando por se anular.


. Retrato do marinheiro:
. 1.ª resposta:                        - pelo tom aterrador das suas palavras;
‑ medroso / receoso        - pelas atitudes intimidatórias;
‑ intimidado                   - pelo ambiente sinistro que o rodeia;
‑ treme e fala em simultâneo;
‑ invoca a autoridade de que foi investido: «El-Rei D. João segundo!» (v. 9);
‑ é o agente, o representante do rei e, na pessoa do soberano, todo o povo português.
. 2.ª resposta:
‑ mostra um crescendo de coragem e valentia, pois se, na 1.ª estrofe, fala a tremer, nesta fala depois de tremer.
. 3.ª fala do marinheiro ‑ clímax da tensão dramática:
‑ as suas atitudes contraditórias [desprender (desistência) e prender as mãos ao leme, tremer e deixar de tremer] revelam ainda certa dúvida, insegurança, hesitação e receio;
‑ de facto, o marinheiro está dividido interiormente entre o terror e a coragem, acabando por vencer esta última;
‑ consciencializa-se de que ali não se representa a si mesmo («Aqui ao leme sou mais do que eu« ‑ v. 22), mas a vontade do rei e do seu povo, e enfrenta o «mostrengo», vencendo e prosseguindo a sua missão, uma atitude que revela coragem, convicção, força e determinação.
         Estas reações do marinheiro ao discurso do «mostrengo» mostram que há uma espécie de gradação ascendente nas suas atitudes que contrasta com as do monstro. De facto, se, da primeira vez que lhe respondeu, se mostrou medroso e timorato («disse, tremendo, isto é, falou e tremeu ao mesmo tempo, e apenas respondeu «El-rei D. João Segundo» ‑ vv. 8-9), da segunda vez, embora tenha dado a mesma resposta, já se nota uma evolução, pois os dois atos estão dissociados (tremeu, depois deixou de tremer e falou, o que revela um ganho de coragem); da terceira vez, o marinheiro ainda se sentiu tentado a erguer as mãos do leme, a desistir da sua missão, mas logo tomou consciência do que estava em causa ‑ o seu rei e o seu povo: «E disse ao fim de tremer três vezes» (v. 21). É o recuperar definitivo da coragem, o assumir das responsabilidades de que se encontra investido: o tremer deixou de interferir com a sua fala.


. Atmosfera tenebrosa e medonha:
. Ambiente:
‑ Sensações visuais, que carregam o ambiente de tons tenebrosos:
- «noite de breu»;
- tetos negros»;
- «trevas do fim do mundo»;
- «as quilhas que vejo»;
‑ Sensações auditivas, que acentuam a horribilidade do quadro:
- «voou três vezes a chiar»;
- «as quilhas que ouço»;
. Personagem: «mostrengo» e não «monstro»;
. Atitudes e os movimentos circulares, sitiantes e ameaçadores do «mostrengo»:
‑ «À roda da nau voou três vezes»;
‑ «Voou três vezes a chiar»;
‑ «onde me roço»;
‑ «Três vezes rodou imundo e grosso».
. Relação eu (o «mostrengo») / tu (o marinheiro), criadora de um clima de sem cerimónia e agressividade entre os interlocutores;
. Abundância de formas verbais que sugerem movimento: «ergue», «voou», «tremer», «rodou», «ata»;
. Localização espácio-temporal:
‑ «à roda da nau»;
‑ «no fim do mar»;
‑ «nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tetos negros do fim do mundo!»;
‑ «onde nunca ninguém me visse»;
‑ « mar sem fundo».


. Simbolismo das personagens:

. O mostrengo simboliza   ‑ o mar desconhecido
‑ os segredos ocultos
‑ o medo dos navegadores que enfrentam o desconhecido
‑ os perigos que tiveram de enfrentar

. O homem do leme
‑ simboliza a coragem e a ousadia do povo português;
‑ é o herói mítico, símbolo do seu povo e que, por isso, passa de herói individual a coletivo, com uma missão a cumprir.


. Tom dramático do poema
. Alternância discurso direto / discurso direto.
. Grande tensão entre as duas personagens ao longo do diálogo e ao longo de todo o texto:
- o mistério que rodeia o «mostrengo»;
- o mistério patenteado pelo número 3;
- expressões carregadas de mistério e terror;
- as formas verbais que traduzem movimentos súbitos, violentos.
. Ambiente de terror:
- a linguagem visualista;
- as atitudes do «mostrengo»;
- a localização espácio-temporal.
. Os recursos estilístico-poéticos:
- a função expressiva / emotiva;
- as exclamações e interrogações;
- a reiteração;
- as metáforas;
- o refrão.
. O contraste entre o «mostrengo» e o marinheiro: o crescendo de irascibilidade do monstro e o seu progressivo apagamento, o crescendo de coragem do marinheiro, que culmina na sua última fala, quando se compenetra de que representa o povo português e de que tem de prosseguir a sua empresa.
. O drama interior do marinheiro, dividido entre o terror e a coragem.


. Tom épico do poema
. Verso decassílabo.
. Harmonia imitativa.
. Aliterações.
. Sons fechados e nasais.
. O espírito cavaleiresco de exaltação patriótica já existe n’Os Lusíadas: o marinheiro representa todo um povo que deseja conquistar o mar e que não se deixa vergar pelo monstro, símbolo dos medos e perigos do mar.
. A luta desigual, heroica, entre o monstro aparentemente invencível que é o mar e a insistência, a coragem heroica dos portugueses. Estamos, portanto, no mundo dos heróis.


. Intertextualidade: o Mostrengo e o Adamastor

Mostrengo
Adamastor
SEMELHANÇAS
. Conteúdo épico semelhante: de um lado, a forma invencível do mar; do outro, a vontade férrea e a coragem de um marinheiro que representa a forma de um povo que quer o mar.
. Objetivo dos textos: tornar os Portugueses heróis, pela sua coragem, valentia e determinação.
. Simbologia: personificação dos perigos e do receio do mar desconhecido.
. Localização: ambos os textos se situam no centro das respetivas obras, funcionando como eixos estruturantes.
DIFERENÇAS
. Retrato: figura animalesca, semelhante a u morcego, voa.
. Retrato: figura terrena humana de enormes proporções e de aspeto medonho (Adamastor).
. Aterroriza sobretudo pelo aspeto repugnante.
. Aterroriza pelas proporções gigantescas e pela forma estranha.
. É vencido pela determinação e pela coragem do marinheiro.
. É vencido pelos males de amor.
. O texto é mais épico-dramático, pois centra a emoção sobretudo na pessoa do homem do leme, que evoluciona do medo para a coragem e ousadia.
. O caráter épico dilui-se no lirismo da segunda parte do episódio, em que o gigante conta a sua história de amor e se considera um herói frustrado.
. É um ser que provoca medo e repugnância.
. É uma personificação que provoca medo.
. O terror e a repugnância que suscita vão diminuindo à medida que cresce a força, a coragem e a determinação do homem do leme, cuja heroicidade, na última fala, obnubila o monstro.
. É o Adamastor que se declara um herói vencido pelo amor. A tensão dramática dilui-se bastante, visto que a tensão emocional é transposta do marinheiro para o gigante.
. Expressão caraterizadora: «imundo e grosso».
. Expressão caraterizadora: «horrendo e grosso».
. Maior verosimilhança: a colocação do homem do leme ao serviço de D. João II, pois foi neste reinado que se ultrapassou o Cabo das Tormentas.
. O interlocutor do gigante é Vasco da Gama, ao serviço do rei D. Manuel.
. Texto mais curto, logo mais denso e simbolista, sendo mais importante o que se sugere do que o que se afirma claramente.
. Texto mais extenso e menos denso.


. Conceitos de herói e heroísmo: quer este poema, quer o episódio do Adamastor revelam o espírito aventureiro, a intrepidez e a audácia do povo português.
         Por outro lado, o heroísmo do poema decorre da capacidade de o ser humano dominar e vencer o próprio medo, exemplificada pelo marinheiro.


. Recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico
. Estrofes: três estrofes de 9 versos, finalizadas por um refrão.
. Irregularidade:
‑ métrica:
. versos decassílabos;
. versos hexassílabos no refrão;
. outros versos de metro mais curto (6, 8, 9);
‑ rimática:
. esquema rimático: aabaacdcd;
. emparelhada e cruzada, sendo cada terceiro verso das três estrofes um verso branco;
. consoante («mar» / «voar»);
. rica («mar» / «voar») e pobre («chiar» / «entrar»);
. aguda («mar» / «voar») e grave («desvendo» / «tremendo»).
. Ritmo livre, adaptado à emoção patente no poema.
. Refrão: predominam os sons nasais e fechados (ão, un), conferindo ao poema um tom pesado e sombrio. Por outro lado, nele ressoa a força, a vontade férrea inerentes à figura do rei D. João II, e acentua a lealdade inabalável do marinheiro à vontade do rei.
. Harmonia imitativa (onomatopeia) produzida pela repetição dos sons /v/, /s/, /ch/, /r/, /z/ (aliterações), que sugerem o ruído do voo do «mostrengo».
. Aliteração em /m/ no verso 15.
. Ocorrência de outros sons nasais (em) e fechados (ê, ô), que emprestam ao poema o referido tom sombrio, de gravidade, de mau presságio.
. Transporte: vv. 1-2, 5-6, 24-25.

2. Nível morfossintático
. Abundância de formas verbais que sugerem movimentos incontroláveis, violentos, de terror e que emprestam ao poema grande dinamismo. Os tempos verbais predominantes são o pretérito perfeito, predominante na parte narrativa, e o presente do indicativo, usado quase exclusivamente no diálogo entre o «mostrengo» e o marinheiro, contribuindo para a grande força e vivacidade do poema, para o seu valor universal e para o tom épico que culmina na última fala do marinheiro.
. Juntamente com as formas verbais, a abundância de nomes traduz a sucessão incontrolável e dramática dos acontecimentos.
. Os adjetivos são quase inexistentes: «negros», «imundo» e «grosso» (traduzem a noção de mistério e terror).
. Tipos de frase:
‑ declarativo: narração e parte do discurso do «homem do leme»;
‑ interrogativo: discurso do «mostrengo»;
‑ exclamativo: discurso do marinheiro.
. Funções da linguagem: emotiva, fática e apelativa.
. Inversão, assumindo por vezes a violência do hipérbato:
«três vezes rodou imundo e grosso»;
«três vezes do leme as mãos ergueu»;
«E mais que o mostrengo que me a alma teme
  E roda nas trevas do fim do mundo,
  Manda a vontade, que me ata ao leme,
  De El-Rei D. João Segundo!».
. Alternância entre a subordinação e a coordenação (sindética ou assindética), sendo de salientar a frequência da conjunção coordenativa /e/ (polissíndeto).
. Anáfora: «de quem (…) / De quem…» (vv. 10-11); «Três vezes (…) / Três vezes (…) / Três vezes (…)» (vv. 13, 19 e 20).

3. Nível semântico
. Metáforas / imagens:
- «nas minhas cavernas que não desvendo»;
- «meus tetos negros do fim do mundo»: estas duas primeiras sugerem o mistério impenetrável de um local desconhecido e medonho;
- «E escorro os medos»: sugere a ideia de terror, proveniente de algo que constitui uma fonte perene de medo;
‑ «a vontade que me ata ao leme»: expressa a missão do marinheiro, ligada fatalmente à vontade do seu rei e do seu povo.
. Exclamações e interrogações: traduzem a emotividade, quer do «mostrengo» quer do marinheiro.
. A personificação de um ser desconhecido, o «mostrengo» voador, que chia, vê, ouve e fala ameaçadora e aterradoramente, e que corporiza todos os perigos da navegação em mares desconhecidos.
. Reiteração do número 3 e seus múltiplos, um número cabalístico relacionado com as ciências ocultas que remete para um triângulo sagrado, presente em muitas religiões, como a tríade da religião egípcia, a tríade romana, a tríade dos cristãos (Pai, Filho e Espírito Santo); em suma, assume as conotações de um triângulo ou ciclo que se fecha (= perfeição), contribuindo para conferir ao poema um sentido oculto e esotérico:
‑ três estrofes;
‑ cada estrofe tem 9 versos (3 X 3);
‑ o refrão tem 6 sílabas (2 X 3);
‑ o «mostrengo» e o marinheiro falam três vezes cada;
‑ o marinheiro tremeu três vezes, ergueu as mãos do leme três vezes e três vezes as reprendeu ao leme.
. Linguagem visualista para sugerir o ambiente de terror e mistério, fazendo-se apelo às sensações visuais e auditivas.
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