Português: Ana Luísa Amaral
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segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral


             O sujeito poético aborda o tema da ausência das mulheres na História oficial e imaginária de Portugal e da Inglaterra, como fica bem evidente nos versos seguintes: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião”. Esta referência consecutiva aos reis Artur e Sebastião não é casual, dado que o mito construído em torno do soberano português se assemelha imenso ao do monarca de Camelot, na figura do rei que iria regressar para resgatar a pátria.

            Ao longo do poema, o «eu» enumera reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –, seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima – a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem, serviria para construir as naus das Descobertas.

            Por outro lado, o sujeito poético parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História, Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda, enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de Avis e da perda da independência nacional.

            A ausência da mulher assume particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).

            As rainhas deveriam ser, entre as mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos, daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de receber”.

            Voltando ao poema, a única figura feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante, neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que, através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido. Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas, graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de mandar, foi mais que homem”.

            É frequente, quando as mulheres que lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará, eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido, durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46). Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.

            Perante isto, o sujeito poético parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo), constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio (Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito recentemente.

            Note-se, porém, que num outro poema, intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada no auge da sua beleza.

 

Bibliografia:

• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.

• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.

WILLMER, Rhea, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português.
 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Análise de "Que escada de Jacob?", de Ana Luísa Amaral

             O título do poema de Ana Luísa Amaral relaciona-se com a escada mencionada no livro do Génesis e que constitui o meio de que os anjos se servem para subir e descer do céu. De acordo com o texto bíblico, foi criada por Jacob nos seus sonhos, depois de se ter confrontado com o seu irmão Esaú.
            Relacionando o conteúdo do texto do Génesis com este poema, podemos afirmar que a escada sonhada por Jacob representaria a possibilidade de contactarmos com os anjos e os entes mortos queridos, sempre presentes na nossa memória saudosa, uma espécie de ponte entre a vida e a morte.
            Ora, tendo em conta a dedicatória que abre a composição, a ideia da morte e da ausência (neste caso, do pai do «eu») estão presentes no texto desde o seu início. Note-se, por outro lado, que a dedicatória está datada: 23 de dezembro de 2002, a antevéspera de Natal, a efeméride que celebra o nacimento de Cristo, cuja morte, por outro lado, está na base da fundação da religião católica, cujo princípio essencial será, provavelmente, o amor e a fraternidade.
            O verso inicial do poema alude à noite em que o ser humano pisou a Lua pela primeira vez, o culminar da corrida espacial que Estados Unidos e União Soviética travaram durante anos, que teve o seu marco inicial em 1957, com o lançamento do Sputnik 1. Outra data marcante é o dia 12 de abril de 1961, quando o cosmonauta russo Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ir para o espaço.
            Voltando ao poema, o verso 2 remete para outra realidade: a televisão ainda a preto e branco (portanto, nos primórdios do seu surgimento), através da qual o «eu» e o seu pai assistiram a esse momento extraordinário da história humana. Segue-se-lhe uma referência aos escafandros (elemento que ressurge no texto), que estabelecem uma analogia entre o vestuário dos astronautas que pisam a Lua e a roupa dos mergulhadores. Qual o sentido desta analogia? O Homem, quando mergulha nas profundezas do mar, necessita de fatos especiais para poder sobreviver debaixo de água; o mesmo acontece quando abandona a atmosfera terrestre e voa para o espaço.
            Na primeira estrofe ainda, o «eu» refere os vários momentos e aspetos que caracterizaram a imagem que os espectadores tiveram da chegada à Lua: a escada que desce do veículo que transportou os astronautas até à superfície, o pó que foi levantado quando aqueles pisaram o solo lunar, a ausência de gravidade. Além disso, o sujeito poético – feminino – localiza os acontecimentos no tempo (duas horas da manhã) e afirma a presença do seu pai (“estavas comigo” – v. 7), assistindo ambos ao feito histórico.
            A segunda estrofe do poema coloca-nos num cenário preciso: o lar onde morava com a sua família, associado a e caracterizado por vários elementos: o lar em sim, a casa, a família, o passado, nomeadamente o da infância, a sala com televisão a preto e branco, o prato de sopa comido às quatro horas da manhã. E o «eu» recorda os vários objetos presentes na sala onde assistiu à chegada à Lua: a mesa ao fundo e o sofá grande. Ele [ela] tinha 11 anos e tudo ficou gravado na sua memória, que agora é recordado, à distância de muitos anos, com nostalgia. Apesar da sua tenra idade, nesse dia sentiu-se «grande», porque o pai assim a fez sentir. O crescimento do «eu» é, simultaneamente, testemunhado e fomentado pelo seu progenitor, como se fosse quase um deus que está sempre presente. Note-se que os dois versos finais desta estrofe associam todo este ambiente à ideia da condição humana. De facto, o ser humano, ao concretizar tal façanha, tinha-se libertado da sua prisão na Terra, onde tinha estado confinado até aí. Observe-se, no entanto, que a questão da condição humana não se esgota nesse passo, dado que a composição poética foca outras questões, como o nascimento, a vida e a morte. Mais: a questão do nascimento deixa de ser um acontecimento meramente fisiológico, de cariz eminentemente feminino e restrito à esfera privada (atente-se no facto de a poeta ter nascido na década de 50 do século passado), e é apresentado sob a forma de um símbolo da iniciativa e da esperança.
            A terceira estrofe situa-nos no dia de verão em que o sujeito poético realizou o seu exame, pelas três horas da tarde, vivido com angústia, desde logo porque estava consciente da sua «ignorância» em matéria de ciências: “eu sem saber o grau das equações, que incógnitas havia a resolver”. Mas lá estava, mais uma vez, o seu pai, sempre presente e próximo dela (“sentado atrás de mim, na carteira de trás”), também ele nervoso enquanto progenitor face à «prova» da filha, mas terno e carinhoso como era seu timbre. Essa presença afetuosa certamente constituía um porto de abrigo e um mar de tranquilidade e segurança que acalmava o «eu».
            Apesar da «ignorância», o sujeito poético superou o exame (“Passei”), o que deixou, naturalmente, o pai feliz (“E eu vejo ainda o teu sorriso”). Tinha 15 anos, ou seja, quatro se tinham passado desde a primeira estrofe, isto é, a chegada do Homem à Lua, em 1969. Esse foi mais um passo no seu crescimento; “a sentir-me grande”.
            A estrofe seguinte abre com a alusão a outro momento importante da vida do «eu», este marcado pela dor, uma dor tipicamente feminina (a do parto). Atente-se na expressividade do adjetivo “nova” a qualificar a “dor”. Ora, se esta é uma “nova” dor, tal significa que houve outras antes. Quais? A da primeira menstruação e a da iniciação sexual, por exemplo, todas elas femininas e essencialmente uterinas. Esse dia, em que o «eu» deu à luz, marcou também o nascimento da poeta e da mãe, o que emociona profundamente os eu pai (“e tu, a soluçar baixinho, retalhado entre amor/e alegria”), sempre presente nos momentos importantes da vida da filha. Pelas segunda e terceira vezes, surgem os escafandros, uma alusão, provavelmente, aos médicos e/ou enfermeiros, que “utilizam batas como escafandros” e que tentam sossegar o pai do sujeito poético. A imagem dos escafandros remeterá, certamente, para as batas do pessoal médico, constituindo um modo de despersonalizar essas pessoas, já que, envergando, de facto, um escafandro, o indivíduo não possui traços distintivos ou fisionomia visíveis. Foi, em suma, um dia longo, “tão longo em que o sol caminhou até ao fim”, mas esse fim do dia marcou, por contraste, o nascimento de um novo ser.
            A penúltima estrofe anuncia a morte do pai, “Na noite em que a lua te deixou”, marcada pela ausência do «eu», da filha, algo que a perturba e deixa ressentida: “eu não estava contigo”. O pai, que parecia omnipresente, porque sempre estivera presente em todos os momentos importantes da filha, passou a estar ausente, tal como ela está no momento da morte do pai, marcando-se, assim, um contraste entre presença e ausência. A mesma Lua que assiste a um nascimento, de uma “outra” condição humana, é associada agora a uma partida, a uma morte, o que enfatiza um outro lado da condição humana: a da fragilidade do Homem, da sua finitude e mortalidade. Segue-se nova menção aos escafandros “cinzentos”, bem como a referência à “noite dos fantasmas”. Neste passo, os escafandros, à semelhança do que sucedia antes, anunciarão provavelmente algo novo; o momento da morte do pai. Esta interpretação da figura do escafandro como o anunciador de algo novo pode fazer-se também relativamente aos outros passos do poema em que surge: da primeira vez associa-se à chegada do ser humano à Lua; da segunda, ao nascimento do(a) filho(a) da poeta.
            Por outro lado, com a morte do pai, o sujeito poético parece ganhar consciência da finitude do ser humano, de que todos iremos um dia morrer. Nesse momento de partida, ressalta a impotência do «eu» para o impedir, desde logo porque estava ausente, mas esse momento serviu igualmente como o despoletar da recordação dos eventos mais importantes vividos por pai e filha, “como s só depois da morte do pai, diante da solidão, e da memória, às vésperas do dia de Natal, fosse possível perceber a dimensão daquela figura no decorrer da sua própria vida. A ausência da figura paterna agora (ele, que estivera sempre presente na vida dela) une-se à ausência da filha (que tivera a companhia/presença dele nos eventos mais importantes da sua existência) no momento da sua morte.
            O dístico com que a composição encerra é constituído por duas interrogações: “A que sabia a sopa que comemos? / Que escada de Jacob?” A primeira interrogação parece sugerir que o pai sabia de algo que a menina de outrora – aquela que a comera na noite da chegada à Lua – desconhecia. A segunda questionará a existência da tal escada que liga a Terra ao Céu, através da qual o «eu» poderia/irá subir um dia e reencontrar o seu pai?

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Análise do poema "Visitações, ou poema que se diz manso"

Estrutura externa

. 5 estrofes: 2 monósticos, uma quadra, uma quintilha e um dístico.

. Métrica: irregular.


Tema: a arte poética e as figurações do poeta.


Análise

• O poema situa-nos num contexto familiar: o sujeito poético, feminino, estava a escrever um poema, quando a filha entrou de mansinho e o interrompeu.

• A entrada da filha, que é feita de mansinho, é comparada à chegada da madrugada (versos 1 a 3). As comparações sugerem que a entrada da filha é um acontecimento natural e espontâneo e destaca a mansidão, brandura e silêncio que caracterizam essa entrada.

• A entrada da filha veio interromper o ato de escrita do sujeito poético: “O poema invadia como ela, mas não / tão mansamente, não com esta exigência / tão mansinha.” (vv. 7-9). A comparação estabelece-se também entre o efeito dos poemas e o efeito da presença da filha.

• O «eu» poético constrói-se entre duas figurações: a de poeta e a de mãe ou mãe e poeta. Com o surgimento da filha em cena, no momento em que escreve, em que cria, assume o papel de mãe. Este papel maternal pode também relacionar-se com o ato da criação poética: o «eu», enquanto poeta, é mãe do poema que escreve.

• Assim sendo, a figura da filha pode entender-se num duplo sentido: representa para a mãe o que a inspiração representa para o «eu», ou constitui a fonte de inspiração necessária ao surgimento do poema.

• A comparação da filha a um “ladrão furtivo” e a metáfora final do «crime» sugerem a sua aproximação silenciosa e furtiva e o roubo da atenção da mãe.


Título

O título do poema sugere a articulação existente entre as situações descritas no texto – decorrentes da visitação da filha – e o surgimento, ainda que seja uma visitação mental e artística do poema, e ambos – filha e poema – são apresentados como «mansos», como dóceis. Dito de outra forma, a visitação da filha pode equivaler à visitação da inspiração para a criação poética.
Por outro lado, a personificação presente em “que se diz manso” associa a mansidão, a docilidade da jovem ao poema, que o seria também por influência dela.

Análise do poema "Testamento", de Ana Luísa Amaral

Análise

• O sujeito poético inicia o poema com a referência a uma realidade: vai fazer uma viagem de avião.

• Os três versos seguintes sintetizam a “vida desorientada” do «eu»: “o medo das alturas”, “tomar calmantes” e “ter sonhos confusos”.

• O testamento ocupa o resto do poema e consiste, ni fundo, num tratado de (des)educação da filha.

• O verso 5 refere uma realidade plausível: a sua morte (“Se eu morrer” – v. 5). Essa possibilidade leva o sujeito poético a exprimir um desejo: que a filha não se esqueça de si.

• Os desejos do sujeito poético não se esgotam aí, pois deseja igualmente:
a) que alguém lhe cante, mesmo com voz desafinada: o canto (talvez para a embalar, recordando-nos o cenário de uma mãe a embalar um filho antes de adormecer) simboliza a alegria;
b) que lhe ofereçam fantasia (sinédoque), imaginação, quiçá através de uma história de encantar que alguém lhe leia;
c) que lhe deem amor, mesmo após a sua morte;
d) que lhe deem “ver dentro das coisas”, ver a sua essência, a sua autenticidade;
e) que lhe deem sonhos, mas sonhos diferentes dos habituais (“sonhar com sóis azuis”),

• Este é o conjunto de desejos que o «eu» lírico exprime relativamente à sua filha, caso ela morra durante a viagem de avião e, por isso, não esteja presente para os cumprir. Serão esses princípios/valores que a filha deverá aprender e valorizar na vida: a alegria, o otimismo, a fantasia, o amor e o sonho.

• As referências às “contas de somar”, “descascar batatas”, ao “horário certo” e à “cama bem feita” representam aspetos materiais e atividades rotineiras do quotidiano, que o sujeito poético desvaloriza e que deseja que não constituam os princípios e valores que nortearão a vida da filha.

• Na quarta estrofe, o «eu» poético afirma desejar que preparem a filha para a visa se morrer na viagem e se transformar em “átomo livre lá no céu”, despegada do seu corpo (um espírito em liberdade) – eufemismos. Esta preparação para a vida consiste em dar à filha amor e fantasia e fazê-la sonhar, e não prepará-la para as tarefas do quotidiano (atente-se no valor, neste contexto, assumido pelo presente do conjuntivo).

• O sujeito deseja, afinal, que a filha se recorde dela e do seu “contentamento deslumbrado” (alegria) por ver “na sua casa as contas de somar erradas/e as batatas no saco esquecidas e íntegras” (vv. 26-28). Ou seja, o que traz alegria, felicidade e deslumbramento ao «eu» (“mais tarde”, “lá no céu”, isto é, após a sua morte) é a valorização do amor, do sonho e da fantasia, que equivale, por oposição, à desvalorização do quotidiano banal, material e rotineiro: as contas de somar erradas e as batatas esquecidas e íntegras (não tocadas, não descascadas).

• No fundo, a partir da última estrofe, nomeadamente dos versos 21 a 23, pode inferir-se que o sujeito poético deseja igualmente que os ensinamentos que deseja transmitir à filha serão semelhantes aos que esta proporcionará, por sua vez, à sua própria filha.


Representação do contemporâneo: a viagem de avião.


Figurações do poeta

As figurações do poeta dizem respeito à visão feminista e liberal que a poeta tem da educação, pois no poema exprime o desejo de emancipação da mulher relativamente ao papel tradicional que ela desempenha na sociedade/na vida doméstica.
De facto, Ana Luísa Amaral revela, na sua obra, uma grande preocupação com as questões de género e com as opressões daí derivadas, bem como a reivindicação de um espaço fora da esfera doméstica para o elemento feminino. Por isso, nesta composição poética, o «eu» deseja para a sua filha uma vida em que o amor, a fantasia e o sonho assumam um papel mais importante do que as rotineiras tarefas quotidianas/domésticas.
É, no fundo, a defesa da emancipação feminina e do direito à igualdade.


Título

Um testamento é um documento através do qual um indivíduo manifesta a sua vontade e dispõe, no todo ou em parte, os seus bens para depois da morte.


Análise formal
▪ Estrofes: uma quadra, uma sextilha, duas quintilhas e uma oitava.
▪ Rima:
- acentuação: grave ou feminina;
- versos brancos ou soltos.
▪ Métrica: irregular.


Características contemporâneas:
- estrutura formal;
- linguagem sintética, precisa e racional;
- alusão ao «avião».


Intertextualidade:
▪ Estâncias 89 e 90 do canto IX de Os Lusíadas.
Os Maias:
- influência da família na educação;
- relação entre Carlos e Afonso;
- desenvolvimento da inteligência por meio do conhecimento experimental de amor, virtude e honra.

Análise do poema "Soneto científico a fingir", de Ana Luísa Amaral


Contextualização do poema

Este poema pertence ao quarto livro de Ana Luísa Amaral, intitulado E Muitos os Caminhos, e nele a poeta associa-se à tradição poética, ao mesmo tempo que se lhe opõe, subvertendo-a, modificando-a, o que quer dizer renovando-a.


Título

• A poeta chamou «soneto» ao poema, no entanto, formalmente, foge a essa definição, dado que é constituído por 5 quadras, não sendo, além disso, nenhuma delas um terceto.

• O título remete-nos, pois, em simultâneo, para a tradição clássica (foi uma tipologia textual cultivada por Petrarca, Camões, etc.), para a herança modernista de Fernando Pessoa e a sua teoria do fingimento poético (em “Autopsicografia”, por exemplo, enquanto o título desta composição clarifica desde logo que se trata de um soneto “a fingir”) e para a modernidade/contemporaneidade, para um diálogo com todas estas possibilidades.


Análise

• Na primeira estrofe, o sujeito poético remete para outras formas poéticas: as composições de mote e glosa (Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, as redondilhas de Camões), neste caso, em torno do amor.

• O primeiro verso anuncia que o tema do poema é o amor, no entanto, no título, anuncia que é um soneto «científico». Estamos, pois, a falar de ciência, mas de quê? Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para execução de uma arte? Ou a ciência que, frequentemente, é contraposta ao amor e que o explica como reação química?

• A poesia / a arte tem uma função estética: pretende deleitar os sentidos e as pessoas que a apreciam. Por outro lado, “Se for antigo, seja. / Mas é belo / e como a arte: nem útil nem moral.” (vv. 3-4-). Ou seja, na poesia/arte “não há moralidade, não há certo nem errado, há uma manifestação livre das emoções de quem a produz, sem preconceitos ou limitações de qualquer ordem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Além disso, “a arte não tem um valor utilitário, surge de um momento de inspiração e transporta consigo valores estéticos, como a beleza, o equilíbrio e a harmonia que poderão ou não exercer influência sobre aqueles que acedem à sua mensagem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Ao contrário dos poetas modernistas, o «eu» explora os temas e as formas clássicas, como já vimos, em oposição aos versos e linhas “devastados” desses modernistas, o que constitui uma forma de subversão: ao retomar essas formas e temas clássicos, entra em confronto com um dos traços modernistas: a regra de não ter regra (“Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe.” (vv. 5-8).

• O sujeito poético propõe-se tratar o tema do amor num soneto. Questionando a antiguidade da forma, contra-argumenta com o mundo: “também o mundo é e ainda existe” (v. 8). No entanto, não vê qualquer vantagem na rima, o que poderá ser visto como «limite» (v. 10), como determinante para a construção do soneto, mostrando a sua indiferença (“deixa ser” – v. 10).

• Contudo, apesar de, teoricamente, o poema ser uma forma clássica, há pontos comuns ao modernismo: a ausência de rima como forma fixa, dado que também este seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / (esta rimou, mas foi só por acaso.)” (vv. 9-12). O «eu» poético assume-se como uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna. O verso entre parêntesis, caracterizado pela linguagem coloquial, ilustra o afastamento da tradição literária, visto que não corresponde ao registo de língua exigido pelo soneto.

• De facto, após manifestar indiferença pela rima (v. 9), surgem os versos 10 e 11 a rimar. O sujeito poético sente a necessidade de referir a causa do facto, em discurso parentético, sublinhando, assim, a liberdade formal que defende.

• O recurso à terceira pessoa do plural e ao futuro do indicativo no verso 10 (“Dir-me-ão”) introduz uma espécie de contra-argumento do sujeito poético: ao justificar a sua tese (a subversão da tradição), entra numa espécie de diálogo com o leitor e antecipa, deste modo, uma resposta à reação que aqueles que não partilham da sua opinião poderão ter.

• Na quarta estrofe, o «eu» aproxima-se imenso de Pessoa e do fingimento poético. Ele transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, criando assim uma nova poética, cujas características são as seguintes: não é rígida na forma de seguir a tradição nem de romper com ela. O «eu» dialoga com as tradições, subvertendo as regras precisamente por não as seguir rigorosamente. Exemplo disso é este texto: ele (ela) escreve um soneto, mas um soneto “coxo” (v. 17) e com linguagem coloquial.

• A ideia do fingimento está bem evidente nos versos 15 e 16, quando o sujeito lírico afirma que os seus versos são mentira, bem como o que mostra. O fingimento é a base da sua criação poética, aliado à rejeição da obediência às regras formais.

• O sujeito poético, socorrendo-se do fingimento poético pessoano, afirma que não pode dobrar-se demasiado para falar de si e mostrar-se na “mentira que é o verso”. Em simultâneo, não sente necessidade de abandonar por completo as formas poéticas: adaptando-se às necessidades da expressão literária, o «eu» produz um soneto «coxo» plenamente consciente das limitações impostas por um soneto, mas não obedecendo a essas limitações.

• De facto, este soneto não segue o modelo do soneto clássico: não tem14 versos, tem 20; não é constituído por 2 quadras e 2 tercetos, mas por 5 quadras; não usa uma linguagem elevada, mas uma linguagem coloquial e até irónica: “se é soneto coxo”, “paciência” (vv. 17-18); é maioritariamente composto por versos brancos, com um desvio (a rima emparelhada em “ser” e “mulher” e cruzada em “paciência” e “ciência”); os versos são maioritariamente decassilábicos, mas alguns apresentam uma métrica diferente.

• O diálogo com a tradição reside precisamente aqui: o sujeito escreve um soneto, explora ainda o tema do amor (“dar mote ao amor”) e depois tem a sabedoria (“ciência”) de se desviar do tema. O «eu» conhece a técnica tem ciência e desvia-se da tradição a partir da tradição, criando a sua própria arte (última estrofe).

• A última estrofe justifica o título, concluindo a linha de pensamento, na indiferença em relação à estrutura do “soneto” e relativamente à construção do poema: afirmar a importância do tratamento do tema “amor” e promover o desvio poético é ciência. É isso que encontramos no poema e no título – um soneto (anunciado) científico (enunciando princípios de arte poética) a fingir (porque apenas é anunciado, mas não concretizado).


Arte poética

• A criação poética de Ana Luísa Amaral assenta, pois, no fingimento e na liberdade criativa, que passa pela rejeição das regras sociais. A criação poética estriba-se, portanto, na criatividade e espontaneidade e inspira-se em temas do quotidiano, como o amor, neste caso. A desobediências às regras formais justifica-se exatamente pelo facto de a obediência às mesmas poder comprometer a criatividade do poeta.

• Ao contrário dos modernistas, Ana Luísa Amaral não nega por completo a tradição literária, mas também não se limita às suas regras. A transgressão e a inovação estão presentes, exatamente na forma de adaptar os modelos à sua expressão, subvertendo-os frequentemente.

Bibliografia:

WILLMER, Rhea Sílvia, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português

Análise do poema "Metamorfoses", de Ana Luísa Amaral

Tema

O tema do poema enquadra-se no âmbito da criação poética despertada pelo quotidiano e pelos seus acontecimentos comuns. No caso deste poema, são as tarefas domésticas.


Análise

No poema, estão representados dois espaços, um exterior (“uma despensa”) e outro interior (o “sótão mental”) ao sujeito poético.

A composição coloca-nos face à imagem de uma mulher atual, dita moderna, que, envolta nas tarefas domésticas, como, por exemplo, a organização de uma despensa, se ocupa também da criação artística, o que faz com que acabe por atribuir sentido metafórico aos aspetos desse quotidiano doméstico.

O sujeito poético abre o poema com um pedido ou um desejo: “Faça-se luz / neste mundo profano”. Essa vontade constitui, no fundo, um apelo à criatividade, a que a sua inspiração surja. Esta ideia é continuada na terceira estrofe: “Que a luz penetre / no meu sótão / mental”.

O seu gabinete de trabalho é uma despensa, qualificado como «mundo profano». Este conjunto metafórico remete o «eu» poético para a condição da mulher urbana, dita moderna, que vive dividida entre a obrigação de se dedicar às tarefas domésticas, entre “presunto e arroz /, (…) e detergentes”, e o impulso «mental» para a escrita. Por outro lado, poder-se-á considerar que o quotidiano doméstico funciona como uma fonte de inspiração para a poesia.

Assim sendo, não pode haver qualquer estranheza no facto de o campo lexical predominante do poema ser algo estranho à poesia: «presunto», «detergentes», «arroz», «despensa». Este vocabulário relembra-nos de imediato “Num bairro moderno”, de Cesário Verde, nomeadamente o momento em que o «eu» recompôs um corpo poético feminino a partir dos vegetais e frutos existentes na giga da vendedeira. Por outro lado, tal pode sugerir igualmente que o quotidiano não é propriamente a fonte de inspiração «perfeita», no entanto, é possível, através da imaginação do processo de criação poética, transformar esses produtos em poesia. Assim se compreende que, no final do poema, se transforme o presunto numa carruagem encantada, características dos contos tradicionais.

O sujeito poético vai organizando a despensa, enquanto o momento de escrever poesia não chega, daí que, nesse período de tempo, tenha de aguardar que se faça luz, isto é, que a inspiração chegue, para que o poema vá surgindo nas folhas de papel que se assemelham aos produtos de consumo.

A segunda estrofe assenta na oposição entre «As outras» e o «eu». Aquelas estão circunscritas a «sótãos», espaços físicos superiores, universos mais elevados, marcados pelo exercício da escrita, enquanto o sujeito poético está confinado a uma simples despensa, onde se move entre «presunto», «arroz», «livros» e «detergentes», compelido a cumprir as tarefas domésticas, procurando conciliar o (esse) mundano com a criação artística (por isso, está sempre acompanhada pelos «livros»).

Assim, o sujeito poético apela à inspiração, que se faça luz e que “a luz penetre / no meu sótão / mental” (isto é, que ela se materialize), de modo que o seu desejo de escrever, de abandonar a despensa (as tarefas domésticas) e atingir o sótão, se concretize e desta forma se opere a transição do espaço exterior para o interior (“transformem o presunto / em carruagem!”).

A figuração poética é construída a partir da tensão entre a realidade do «eu» e a ficção desse mesmo «eu», num permanente “estar entre”. No caso deste poema, o «eu» poético é uma mulher que se divide entre as tarefas do quotidiano, exemplificadas pela organização de uma despensa, e a escritora-poeta que se dedica à escrita. A ligação entre as duas representações acentua-se pelo facto de esse quotidiano ser aquilo que fornece inspiração ao «eu» para escrever, para criar.

De facto, o «eu» poético, dividido entre duas representações distintas, vive nesse constante «estar entre»: de um lado, o quotidiano, feito de elementos concretos e objetivos; do outro, o mundo do sonho, da imaginação, da criatividade, do abstrato, isto é, da criação poética. Ao contrário do que se poderia talvez esperar, estes dois mundos não se opõem, antes se harmonizam, complementam e coexistem: na despensa, há um “sótão mental” e folhas de papel (mentais) que permitem transformar o “presunto / em carruagem”, ou seja, os aspetos domésticos do quotidiano em poesia – a metáfora da carruagem (ao gosto dos contos de fadas) representa a força vital da poesia de Ana Luísa Amaral.

Em suma, o «eu» poético apela à inspiração, pedindo que se faça luz, que essa luz penetre no seu sótão mental, para que o seu desejo de escrever se vá materializando e seja possível, nas «folhas» que embala «docemente», a epifania da escrita, o tão ambicionado sublimar do “presunto / em carruagem”.


Características da poesia de Ana Luísa Amaral

▪ Na poesia de Ana Luísa Amaral, fazem-se sentir com frequência os ecos do quotidiano feminino, especialmente os espaços da sua vivência quotidiana, como a cozinha, a sua casa, a despensa, as tarefas domésticas e quotidianos, os elementos mais recorrentes na sua poesia, os quais acabam por constituir matéria poética.


Estrutura forma
Estrofes: quatro estrofes, duas quintilhas e duas quadras.
Métrica: é irregular.
Rima: versos brancos ou soltos.

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