terça-feira, 25 de julho de 2023
Análise de "Visitações, ou o poema que se diz manso"
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral
Ao longo do poema, o «eu» enumera
reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de
evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa
Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por
ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana
(fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder
mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –,
seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e
inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima
– a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico
plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem,
serviria para construir as naus das Descobertas.
Por outro lado, o sujeito poético
parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína
dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História,
Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda,
enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma
mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de
Avis e da perda da independência nacional.
A ausência da mulher assume
particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas
unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de
Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que
equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas
suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à
luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à
conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de
seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo
em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de
pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).
As rainhas deveriam ser, entre as
mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar
a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o
Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a
sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa
de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a
D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos,
daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de
receber”.
Voltando ao poema, a única figura
feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante,
neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono
unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por
linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o
poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos
Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as
mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que,
através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido.
Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas,
graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir
da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de
mandar, foi mais que homem”.
É frequente, quando as mulheres que
lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a
homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse
poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher
(apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará,
eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido,
durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma
posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no
conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as
desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46).
Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba
por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em
termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema
por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.
Perante isto, o sujeito poético
parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado
feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas
próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar
de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder
durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela
maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado
de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja
Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande
relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo),
constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo
de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo
lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio
(Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua
mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos
de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais
com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de
Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o
modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo
virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do
sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que
só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito
recentemente.
Note-se, porém, que num outro poema,
intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um
retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher
velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é
mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana
de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela
está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo
extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz
Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada
no auge da sua beleza.
Bibliografia:
• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as
Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.
• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens:
tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.