Português: 12/04/23

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Análise do capítulo XIX de Amor de Perdição


  Síntese dos capítulos anteriores
 
Capítulo XI
 
            Domingos Botelho toma conhecimento da prisão de Simão e determina que o filho seja tratado de acordo com a lei. O jovem aceita com indiferença esse tratamento e dá entrada na prisão. Mariana apresenta-se, para lhe dar apoio.
 
Capítulo XII
 
            O narrador transcreve parte de uma carta de uma irmã de Simão, recordando, 57 anos depois, a reação da família à prisão e à condenação à morte. Depois disso, relata-se o julgamento de Simão e os comentários que provoca. Mariana entra num estado próximo da loucura.

Capítulo XIII

 

            Após a prisão de Simão, Teresa é conduzida ao convento de Monchique e dá sinais de fraqueza e doença. As cartas trocadas entre os amantes evidenciam o desgosto de ambos pela separação e pela morte próxima de Teresa.

 

Capítulo XIV

 

            Tadeu de Albuquerque chega ao convento para levar Teresa para Viseu, mas a filha recusa. A madre apoia-a e Tadeu, não obstante as diligências que faz, não consegue o que deseja.

 

Capítulo XV

 

            Simão continua preso na Cadeia de Relação, no Porto, e passa ao papel os seus pensamentos e reflexões sobre o seu destino. João da Cruz visita-o e dá-lhe conta das melhoras de Mariana; depois leva uma carta do fidalgo para Teresa. Entretanto, Mariana ficará a cuidar de Simão.

 

Capítulo XVI

 

            Neste capítulo, narra-se a fuga de Manuel Botelho, irmão mais velho de Simão, com uma mulher casada. Trata-se de um incidente que não tem grande ligação com os amores de Teresa e Simão, mas que mostra o modo de ser de Domingos Botelho.

 

Capítulo XVII

 

            João da Cruz está em casa e dedica-se ao trabalho de ferrador. Entretanto, é visitado por um estranho que, após um breve diálogo, dispara sobre ele, matando-o, num ato de vingança. Mariana recebe a notícia na prisão, onde acompanha Simão, e ambos reagem com grande emoção.

 

Capítulo XVIII

 

            Mariana, agora sem pai, decide acompanhar Simão no degredo. As suas manifestações de dedicação ao fidalgo intensificam-se, ao ponto de anunciar que se suicidará, quando a sua companhia já não for necessária. Não há mais como esconder o seu amor por Simão.

 

 

Análise do capítulo

 

1. Reflexão sobre a verdade e a ficção

 

            Nesta parte final da novela, o sofrimento das personagens intensifica-se, e o narrador faz ouvir a sua voz com grande nitidez e aproxima-se do leitor.

            De acordo com o professor Carlos Reis (Educação Literária – Leituras Orientadas, Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco, Porto. Porto Editora,2016, p. 108), a “presença do narrador manifesta-se de três formas:

• Pelos comentários que tratam de temas como a verdade e a sua presença na ficção narrativa.

• Pela organização do tempo, orientada para o momento em que, no capítulo seguinte, Simão parte para o degredo.

• Pelas interpelações, quando, usando a segunda pessoa, o narrador se dirige à personagem (Simão) e ao leitor. Trata-se de um procedimento que cria uma certa intimidade com quem é interpelado e mostra um conhecimento amplo da condição humana, das suas motivações e das suas reações. Por exemplo: «Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere […] te haviam matado o melhor da alma”; “De além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes queixas te vinham espremer fel na chaga».”

            O narrador inicia o capítulo com uma reflexão sobre a presença da verdade e da ficção num romance. Assim, de acordo com a sua dissertação:

• A verdade é difícil de enquadrar na ação: ela é “o escolho de um romance”.

• Um romance que assenta na verdade “é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos”.

• A verdade que faz sofrer não deve ser apresentada aos leitores do romance e da novela (os “painéis do público”).

• O narrador declara ter perdido o juízo a estudar a verdade. Por isso, decide “pintá-la como ela é, feia e repugnante”.

• Assim, o narrador vai apresentar a verdade como ela é: “a verdade do coração humano”, ou seja, a história narrada é de sofrimento.

            De seguida, o narrador dirige-se ao leitor, concretamente ao “leitor inteligente”, questionando-o se “a desgraça arvora ou aquebranta o amor”, isto é, se os obstáculos ao amor o tornam mais intenso ou se, pelo contrário, acalmam o ânimo de quem ama. Esta interrogação retórica (“A desgraça afervora ou quebranta o amor?”) permite criar cumplicidade com o leitor, despertando-o para o que vai acontecer em seguida. Além da interrogação, outros recursos expressivos contribuem também para esta finalidade, como a exclamação (“A verdade do coração humano!”) e a enumeração (“A Índia, a humilhação, a miséria, a indigência.”).

            No entanto, o narrador não apresenta uma resposta para essa pergunta, antes afirma que “Factos e não teses é o que eu trago para aqui”. Que factos são esses? Após dezanove meses na prisão, Simão deseja ardentemente a liberdade: “[…] almejava um raio de sol, uma lufada de ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu…”. Por isso, em vez de aceitar a comutação da pena – dez anos de cárcere em Vila Real – prefere o degredo na Índia, porque “Ânsia de viver era a sua; não já era ânsia de amar” e porque “O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem remorsos, o espírito anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses de estagnação da vida?”

            De seguida, interpela diretamente Simão, usando a segunda pessoa, e mostra a sua cumplicidade, um conhecimento profundo dos seus sentimentos e motivações: “Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere, com o patíbulo ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da tua alma.” Além disso, na sua omnisciência, emociona-se e compadece-se com o sofrimento do fidalgo, tal como tinha sucedido na Introdução, e intensifica-o através de vários recursos expressivos, como as exclamações, as interrogações retóricas e o vocabulário associado à desgraça e ao sofrimento (“abismo”, “fel”, “escuridão”, “chaga”, etc.).

 

2. As cartas trocadas entre Simão e Teresa

 

            O discurso epistolar reveste-se, mais uma vez, de grande importância no contexto da novela.

            Na primeira carta, Teresa, muito doente e caminhando para a morte (“As ânsias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que criara novo, já lhe saía em golfadas com a tosse.”), pede a Simão que aceite os dez anos de prisão, mas o fidalgo perdeu toda a esperança.

            De facto, na missiva de resposta, Simão mostra que, tal como a amada, desistiu dos seus sonhos e perdeu a vontade de viver, optando pelo degredo. Neste momento das suas vidas, face à clausura que ambos vivem (ele na prisão, ela no convento), perderam toda a esperança de poder vir a ter um projeto amoroso: “Não esperes nada, mártir […] A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos ao encontro da morte…”. O fidalgo renuncia ao amor e opta pela liberdade, mesmo que no exílio: “Ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de amar”. Não foge, no entanto, ao seu destino trágico de “mártir de amor”.

            De seguida, como herói romântico que é, Simão demonstra o seu repúdio pela sua família e pela pátria, que representam uma sociedade estagnada, preconceituosa e corrompida pela honra e pelo dinheiro: “Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está aos meus olhos cobertos de forcas […] Em Portugal, nem a liberdade com a opulência; nem já agora a realização das esperanças que me dava o teu amor, Teresa!” Enquanto heróis românticos, o par amoroso opõe-se à sociedade, pelo que o amor de ambos simboliza, de alguma forma, o desejo de mudança da sociedade.

            Simão, em suma, desistiu de tudo – do amor e da própria vida: “Eu quero morrer, mas não aqui.” Graças à intervenção do seu pai, é-lhe dada a possibilidade de cumprir os dez anos de degredo a que fora condenado na prisão de Vila Real, todavia, mesmo após o pedido de Teresa para que aceitasse essa comutação da pena, o filho de Domingos Botelho recusa: “Não me peças que aceite dez anos de prisão.” O narrador já clarificara antes esta postura de Simão: “Os dez anos de ferros, em que lhe quiseram minorar a pena, eram-lhe mais horrorosos que o patíbulo.”

            Simão espera, pois, a morte e, num primeiro momento, aconselha Teresa a fazer o mesmo: “Caminhemos ao encontro da morte.” Depois pede-lhe que faça a vontade de seu pai (“Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. Se teu pai te chama, vai.”) ou que morra (“E, senão, morre…”), pois “a felicidade é a morte”.

            Teresa responde-lhe com uma breve carta, na qual se pronuncia no mesmo tom do seu amado: “Morrerei, Simão, morrerei.”; “[…] e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te.” De seguida, pede-lhe que viva para a chorar (“Se podes, vive; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares.”) e declara estar tranquila (“Estou tranquila…”) perante a aproximação da morte e a paz que esta lhe trará (“Vejo a aurora da paz…”). E despede-se de forma que confirma a sua crença na realização do amor num outro plano, o espiritual: “Adeus até ao Céu, Simão.”

            Estas missivas trocadas entre ambos confirmam que, para ambos, ao gosto romântico, perante a impossibilidade de realização do seu amor, a única opção é a morte.

 

3. Final do capítulo

 

            Depois de receber a última carta de Teresa, Simão cai num estado de profunda melancolia e angústia, aniquilado, em silêncio absoluto: “Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão Botelho não respondia às perguntas de Mariana.”

            O ritmo narrativo é extremamente rápido, como o demonstra a elipse (“Decorreram seis meses ainda.”), até que chegamos ao dia 10 de março de 1807, data em que Simão recebe a intimação para a viagem rumo ao degredo na Índia, o que o deixa ora num estado de letargia, ora de loucura. Esse estado de alma é traduzido através de um estilo e de uma linguagem que procuram traduzir as emoções das personagens. Ao longo de todo o capítulo, nomeadamente nas cartas, podemos encontrar lirismo nas palavras dos dois apaixonados, mas, à medida que se caminha para o desenlace, nomeadamente nesta última parte, o discurso das personagens é contaminado pela sensibilidade romântica, daí um certo exagero, dramatismo e emotividade extremos: “– Que trevas, meu Deus! – exclamava ele, e arrancava a mãos-cheias os cabelos . – Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar ou matai-me, que este sofrimento é insuportável!”

 

Gil Vicente, o primeiro dramaturgo português


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...