Português: 19/05/11

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Blimunda


          Blimunda Sete-Luas é filha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo, acusada de ser visionária e cristã-nova, num auto-de-fé, onde conhece Baltasar.
          Fisicamente, poucos dados nos são transmitidos sobre a personagem, sendo todo o realce dirigido para os olhos, descritos diversas vezes - de facto, ela possui uns olhos misteriosos, extraordinários, de cor indefinida ("... olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." - pág. 55), e para o corpo, alto e delgado. O cabelo é "... russo, injusta palavra, que a cor dele é a do mel..." (pág. 103).
          Tem 19 anos no momento em que conhece Baltasar e mantém intacta a sua virgindade, que entrega a Baltasar na sequência do seu encontro do auto-de-fé. Tem poderes mágicos: é vidente, pois possui a capacidade de, em jejum, "ver por dentro" das coisas e das pessoas (capacidade que só emprega em Baltasar no derradeiro momento da comunhão mística entre ambos); tem também o poder de recolher vontades, dois traços fundamentais e imprescindíveis na construção da passarola, que se tornará, igualmente, o seu projecto. Estes seus poderes são aplicados no mundo real, concreto, no entanto ela consegue ver para além das aparências, já que possui o dom da ecovisão, o dom de ver por dentro das pessoas e das coisas, afastando-se da materialidade e aproximando-se da espiritualidade adstrita à arte de Scarlatti e ao sonho de voar do padre Bartolomeu de Gusmão. O facto de o único ser que ela se recusa a ver ser Baltasar, o «seu homem», pode significar a dificuldade em «ver» quem se ama, talvez por medo do que possa encontrar.
          É, portanto, uma personagem marcada pela excepcionalidade, revelada pela sua ascendência (é filha de uma feiticeira), pelo valor simbólico do nome que lhe é atribuído ("Sete-Luas") e pelos seus dotes particulares de vidência ("ver por dentro").
          O seu único amor é Baltasar, com quem forma um só, por quem está disposta a realizar todos os sacrifícios e a quem dedica uma afeição verdadeira, espontânea e duradoura. Por outro lado, o amor dela por ele é também o símbolo da aceitação e renúncia, dado que nunca o olha por dentro, como vimos. Aos olhos de Scarlatti, Blimunda e Baltasar surgem, respectivamente, como Vénus e Vulcano (pág. 168). Com efeito, apaixonada pelo ex-soldado, mantém com ele uma relação de amor, de cumplicidade "que não é deste mundo", de igualdade de direitos e de companheirismo, a que não falta a atracção física revelada em jogos eróticos de prazer. Esta cumplicidade e partilha entre o casal traduzem a imagem de uma mulher desfasada  e adiantada relativamente à época em que vive, pois ela afirma-se independentemente do homem com quem vive e que para ela olha de igual para igual, fazendo-a partilhar os seus sonhos, medos e vida, em suma. O amor que vivem é um amor fora das normas do seu tempo, um amor não-cristianizado, mas nem por isso menos (a seu modo) sagrado, e miticamente exemplar. Foram talhados um para o outro, como lembra o ditado popular ("O casamento e a mortalha no céu se talha"), convivendo em harmónica união ("Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais..." - pág. 90), também sugerida pela simbologia do novo nome: o 7 simboliza o ciclo completo, uma dinâmica perfeita. Talvez por isso nunca tenham tido filhos. A união e a harmonia do casal são tais que este é perspectivado como se de uma personagem se tratasse: "... já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades...". Entre as lides do campo, os trabalhos no convento, a construção da passarola e a recolha de vontades, Baltasar dispõe sempre de tempo e espaço para, do lado direito da enxerga, amparar Blimunda com a mão que lhe resta.

          A relação entre ambos fica marcado, desde o início, por circunstâncias extraordinárias, desde o ritual de aceitação da colher até ao ritual de baptismo através do sangue virgem de Blimunda, passando pelo recurso ao silêncio enquanto forma primordial de comunicação: "não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.".  As palavras são frias e desnecessárias no meio dos gestos. Um homem, uma mulher, dois corpos, duas almas, duas vontades. Por outro lado, amparam-se mutuamente, pois ele acalma-a na sua maldição de ver por dentro as pessoas e ela ajuda-a na falta da sua mão.

          Como acima ficou dito, Blimunda, tal como Baltasar, colabora na construção da passarola, contribuindo com os seus poderes mágicos na recolha das duas mil vontades que a farão voar e com o seu poder de "ver por dentro", que lhe permite verificar os seus defeitos de construção e corrigi-los, evitando deficiências na construção. A recolha das vontades deixa Blimunda exausta e doente, "uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele", e será apenas a música do cravo de Scarlatti a salvá-la e restituí-la à vida.
          Por outro lado, o envelhecimento físico não deteriora a juventude interior da personagem e a relação que mantém com Baltasar, sobretudo porque, aos olhos deste, ela continua a mesma. O próprio cansaço e o esgotamento que a atinge a nível físico após a peregrinação por Lisboa em busca das vontades levam o narrador a associar às imagens dos sóis e das luas a perda de algum brilho e fulgor: "... cansados de tanta caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas..." (p. 181).
          Com o decorrer da intriga, Blimunda revela uma sabedoria e uma postura muito próprias, apresentando-se como um elemento mágico não explicado, tendo aprendido coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor "na barriga da mãe", onde permaneceu "de olhos abertos" (cap. XXIII, p. 331). Daí que tenha uma presença bastante forte, sólida e afirmativa no romance. As restantes personagens (o padre Bartolomeu, Baltasar, Scarlatti e Marta Maria) reconhecem o mistério que subjaz ao seu olhar e ao seu extraordinário poder perceptivo, inexplicável até para a própria personagem.

          Após o desaparecimento de Baltasar (ela própria tinha pressentido que não voltaria a estar com ele, daí que o tivesse conduzido para a barraca e o amasse com sofreguidão), secou as lágrimas e partiu à sua procura durante 9 anos. Esse percurso revela uma mulher corajosa, determinada, persistente, disposta a tudo para encontrar o seu amor. Durante essa demanda, acaba por matar um dominicano, sedento de um momento de prazer, com o espigão de Baltasar, que simbolicamente representa o marido em defesa da mulher: "Do outro lado do convento, num rebaixo (...) aonde tiver que ir, inferno ou paraíso." (cap. XXIV, pp. 344-346). Na sequência desse desaparecimento e durante a sua busca, os olhos de Blimunda adquirem novas características, além da indefinição da cor, pois neles se reflectem inquietações e preocupações: "... que segredos se escondiam no rosto impenetrável, nos olhos pardos, cujas pálpebras raramente batiam, e que a certas horas e certa luz pareciam lagos onde flutuavam sombras de nuvens, as sombras que dentro passavam, não as comuns do ar..." (p. 354). Na sua incansável procura, só à sétima vez que passou por Lisboa o encontrou a ser queimado num auto-de-fé, juntamente com António José da Silva, autor de comédias de bonifrates e conhecido por O Judeu.

Texto expositivo-argumentativo (2) - AI

O Simular da Vida de Fernando Pessoa



          Fernando Pessoa finge completamente a dor. O fingimento poético possibilita a construção da arte, pois fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que resultam dum processo criativo, que é vital para o ser humano.
          O fingimento artístico não impede a sinceridade, apenas implica o trabalho de representar, de exprimir intelectualmente as emoções ou comunicações, como podemos constatar no poema Autopsicografia.
          Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e racional. Como por exemplo, nos poemas Ela canta pobre ceifeira… ou Gato que brinca na rua, onde a felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência.
          Esta dialéctica possibilita criar diferentes linguagens e realidades e assim permite-lhe atingir a finalidade da arte.

Texto expositivo-argumentativo (2)

          Comente a opinião, a seguir transcrita, sobre a teoria do fingimento poético em Pessoa ortónimo, referindo-se a poemas relevantes para o tema em análise.

          Escreva um texto de oitenta a cento e vinte palavras.
          "É na poesia ortónima que o Pessoa 'restante', o que não cabe nos heterónimos laboriosamente inventados, se afirma e 'normaliza': é então que ele 'faz' de si e os seus poemas são 'chaves' para compreender o seu extraordinário universo literário."
António Mega Ferreira, Visão do Século

Baltasar

          Baltasar Mateus - uma personagem ficcional - é um ex-soldado recém-chegado da Guerra da Sucessão espanhola (1704 - 1712), natural de Mafra e com 26 anos. Apresenta uma deficiência física - é maneta, em virtude de ter perdido a mão esquerda na guerra, "estralhaçada por uma bala" -, que provocou a sua expulsão do exército, o que significa que, à semelhança do Bailote de Aparição ou do Antigo Soldado de Felizmente há Luar!, representa todos aqueles que são explorados até ao tutano enquanto são saudáveis e que, depois, são desprezados e abandonados quando já não têm utilidade prática. Essa expulsão leva-o a vaguear como pedinte em Évora com o intuito de fazer um gancho que lhe substitua a mão perdida até chegar a Lisboa, onde conhece Blimunda num auto-de-fé. Mais tarde, torna-se açougueiro na capital, porque o gancho que lhe substitui a mão esquerda lhe facilita o trabalho. Mais tarde torna-se um dos operários que trabalham na edificação do convento como servente ou boieiro ou a fazer carretos com os carros de mão.
          Conhece Blimunda e o padre Bartolomeu num auto-de-fé, iniciando aí uma relação que o levará a participar do sonho de voar e a colaborar activamente na construção da passarola. Todos estes factos contribuem para o agigantar da sua imagem ao longo do romance, chegando mesmo a alcançar uma esp´cei de divinização: "(...) Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo (...)"; "Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar." (cap. VI, pág. 68).
          No fundo, Baltasar é apresentado, inicialmente, como um marginal, lutando pela sobrevivência e não hesitando em matar, isto é, uma espécie de herói pícaro[1]:
  • foi soldado na Guerra de Sucessão espanhola, de onde foi expulso por ter ficado mutilado da mão esquerda;
  • sem salário, inicia uma vida aventureira e errante: pede esmola para conseguir ter um gancho de ferro, mata um homem que o quisera roubar e conhece João Elvas, rufia e igualmente antigo soldado.
          Por outro lado, encarna a crítica à inutilidade da guerra, já que se sacrificam homens em nome de interesses que lhes são alheios: "A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas (...) por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum..." (pág. 36).
          O envelhecimento físico que vai manifestando ao longo da obra, à medida que os anos passam, não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Blimunda, sobretudo porque aos seus olhos Baltasar continua o mesmo: "... tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo..." (p. 326) [2]
          No final da obra, Baltasar paga com a sua própria vida a perseguição do sonho da passarola ao ser queimado num auto-de-fé. Deste modo, é transformado no verdadeiro herói do romance, superando «a imagem do povo oprimido e espezinhado de que faz parte».

[1] A picaresca caracteriza-se por uma série de peripécias e aventuras vividas por uma personagem (o herói pícaro) de baixa condição social, que serve a vários amos, em toda a espécie de expedientes, esfomeado, errante, com um código de honra muito duvidoso que consiste em safar-se da forma mais airosa possível de toda a sorte de dificuldades, principalmente através da sua astúcia e habilidade pouco escrupulosas.

[2] O narrador faz aqui uma distinção entre duas perspectivas: a "nossa", objectiva, externa, que só vê aparências; a de Blimunda, subjectiva, interna, que "vê" mais longe e mais fundo, porque observa com os olhos do amor.

Padre Bartolomeu de Gusmão

          Bartolomeu de Gusmão nasceu em Santos, São Paulo, Brasil, em 1685. Desde cedo interessou-se pelo estudo da Física, tendo concebido uma máquina de elevação de água a cem metros de altura, no Seminário de Belém. Veio para Portugal, pela segunda vez, em 1708, onde cursou Cânones em Coimbra e desenvolveu os seus estudos de Física e Matemática. Em 1709, dirigiu uma petição a D. João V anunciando-lhe que tinha descoberto "um instrumento para se andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar". O rei concedeu-lhe privilégio para o referido instrumento através de um alvará de 19 de Abril desse ano. Na sequência desta permissão, o padre Bartolomeu de Gusmão desenvolveu diversas experiências com balões de ar aquecido, algumas delas na presença da figura real e da corte. Em 1713, deslocou-se para a Holanda para aprofundar os seus estudos e desenvolver as suas experiências. Regressado a Portugal, acabou por se converter ao judaísmo em 1724 e fugir para Espanha, procurando iludir a perseguição da Inquisição. Aí faleceu, na cidade de Toledo, nesse ano, durante a sua fuga.

          O Padre Bartolomeu de Gusmão é uma personagem parcialmente referencial, como o próprio nome, já que a designação de Lourenço não aparece nos livros de História, assim como não são factos históricos a construção da passarola (da qual só é conhecido um desenho) e a viagem de Lisboa até Mafra. Sendo, de facto, em parte, uma personagem referencial, apresenta, contudo, diversos traços da personagem histórica:
  • a relação com a corte e com as academias: "... e o outro reverendo (...) encarece as atenções com que a corte extensamente distingue o doutor Bartolomeu de Gusmão." (p. 175);
  • a construção da passarola: "Se o padre Bartolomeu de Gusmão, ou só Lourenço chegar a voar um dia." (p. 166);
  • o doutoramento em Cânones: "Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelido onomástico e forma escrita." (p. 159);
  • as viagens ao Brasil e à Holanda.
          Ele é, antes de mais, um sonhador: tem o sonho de voar, por isso toda a acção se centra na construção da passarola, projecto concretizado na quinta do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira. A concretização desse sonho depende da protecção e da amizade de D. João V, o que não consegue impedir a perseguição do Santo Ofício. Não obstante todas as dificuldades que lhe surgem, acaba por construir a passarola e voar, com a ajuda de Baltasar e Blimunda.
          Bartolomeu de Gusmão tem, no início do romance, 26 anos, a mesma idade de Baltasar.


(em actualização...)

D. Maria Ana Josefa

          D. Maria Ana, de origem austríaca (o narrador refere, no início do romance, que tinha vindo da Áustria há dois anos), tornou-se rainha de Portugal ao casar com D. João V.
          A rainha é apresentada como uma personagem muito religiosa, beata, submissa e medrosa. O enfoque inicial é dado à sua relação matrimonial, que a deixa extremamente insatisfeita, quer amorosa quer sexualmente, desempenhando sempre um papel passivo. O casal real não dorme junto, mantém relações sexuais duas vezes por semana apenas para tentar conceber um herdeiro e não comunica. Essa insatisfação leva-a a ter sonhos eróticos com o cunhado, o infante D. Francisco, facto que lhe acarreta novos problemas, pois vive atormentada pela consciência de estar / viver em pecado, já que considera os sonhos um «acto» vergonhoso e criminoso, um pecado que atenta contra a castidade. Consequentemente, procura superar os remorsos e o sentimento de culpa cumprindo penitência, rezando e peregrinando pelas igrejas, em missas e novenas intermináveis. Como afirma o narrador, D. Maria Ana é somente a «devota parideira que veio ao mundo só para isso».
          Vive num ambiente de repressão, constantemente vigiada pela família à distância, com poucas ocupações e temas de conversas com as aias - ambiente esse de que procura fugir através do sonho - e cheia de saudades de casa.
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