Português: 30/01/19

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Atores individuais e coletivos na 'Crónica de D. João I'

. Como afirma António José Saraiva (1965), a história que Fernão Lopes tinha de contar era bastante complexa, pela diversidade da natureza de cenas que deveria incluir. No entanto, o cronista narra os eventos históricos em causa com enorme mestria, alternando o fio da narrativa com instantâneos intensamente dramáticos, momentos em que, ao desenvolver situações através do confronto de personagens (como, por exemplo, no episódio do assassinato do conde Andeiro), mostra ter características de um verdadeiro dramaturgo.

. Fernão Lopes foi um dos mais fecundos e poderosos criadores de caracteres tanto individuais como coletivos, vindo, por este motivo, a influenciar poetas, romancistas e dramaturgos de épocas posteriores.

1. Atores individuais

. As personagens individuais criadas pelo cronista são variadas e complexas, sendo devassadas na sua intimidade por um olhar incisivo.

. Na Crónica de D. João I, três personagens se destacam pelo seu protagonismo: D. Leonor Teles, o Mestre de Avis e Nuno Álvares Pereira.

a) Leonor Teles é caracterizada de forma profundamente negativa, na medida em que é descrita como objeto de um ódio profundo por parte do povo, sendo, além disso, alvo das acusações do partido que queria a independência do trono português e suspeita de ter sido a responsável pela morte do marido, D. Fernando (cf. Cap. XI da Crónica). Apesar disto, Fernão Lopes não oculta a sua grandeza e força, que lhe permitem manipular figuras masculinas, como D. Fernando, D. João de Castro (filho ilegítimo de D. Pedro e de D. Inês de Castro) e o próprio Mestre de Avis, e enfrentar, mesmo após a derrota, o rei de Castela, recusando-se a ingressar num convento.

b) O Mestre de Avis é caracterizado como um homem vulgar, hesitante e vulnerável às fraquezas, como é possível verificar, por exemplo, pelas oscilações do seu comportamento aquando da conjura contra o conde Andeiro (depois de se mostrar indeciso, adere à conjura, fugindo em seguida para o Alentejo, de onde regressa quando se apercebe de que a conspiração será inevitavelmente descoberta). Apesar destes defeitos – que o tornam uma personagem profundamente realista –, D. João I mostra também ser capaz de atos espontâneos de solidariedade, o que o converte numa figura cativante.

c) Nuno Álvares Pereira é caracterizado como um herói hagiográfico, isto é, com traços de santidade, e, ao mesmo tempo, como um grande guerreiro.

2. Atores coletivos

. As personagens coletivas (como, por exemplo, a população de Lisboa) têm um papel ativo e decisivos, determinando o curso dos acontecimentos.

. Com efeito, sempre que é narrado um evento importantes, o cronista faz questão de expor o que pensava dele a opinião pública, como sucede aquando do cerco de Lisboa, momento em que a população da cidade oscila entre a esperança de que a frota castelhana fosse derrotada e o receio de que os castelhanos saíssem vitoriosos, exercendo uma vingança cruel sobre os sitiados.

. Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes, resumida através de um dito que sai de uma multidão – como sucede com as cantigas entoadas durante o cerco de Lisboa, que mostram a profunda determinação dos habitantes da cidade.

. A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos históricos (como sucede aquando da derrota dos castelhanos no cerco de Lisboa, cujo mérito é atribuído à população da cidade) torna Fernão Lopes um cronista único entre os seus congéneres medievais.


O melhor amigo do homem


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