Português: Adília Lopes
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terça-feira, 8 de abril de 2025

Análise do poema "Eu quero", de Adília Lopes

Eu quero
um par de luvas
de que cor não sei
para desvestir as mãos
não pense que é para esconder as mãos
que quero desvestir as mãos
não tenho medo das impressões digitais
é para desvestir as mãos
é isso mesmo só isso
não vale a pena abrir os dedos das luvas
dedo a dedo
com a espátula de madeira
não vale apena deitar pó
de talco dentro dos dedos
essas luvas servem
para desvestir as mãos?
deixe-me ver a sua mão
I
como tem a mão
como é que fez isso?
podia responder-lhe assim
Me gusta ver la sangre!
 
    Este poema pertence à obra Dama de Espadas, publicada em 1988, quando a autora contava 28 anos.

    Nele, deparamos com um «eu» poético bastante sofrido que desenvolve o seu pensamento de forma paradoxal. O sujeito entra numa luvaria à procura de um par de luvas não para as usar, mas para mostrar a sua identidade mais essencial e que melhor  distingue, aquele que as impressões digitais representam e tornam singular. De facto, ele declara, sem pejo, que quer o par de luvas (os pormenores, como a cor, não interessam) para «desvestir» as mãos, não para as esconder.
    
    As mãos estão em ferida, e as luvas (cujos dedos não vale a pena sequer a pena abrir nem polvilhar com pó de talco, visto que não serão calçadas) servem efetivamente “para desvestir as mãos”, ou seja, deverão mostrar as mãos feridas e as respetivas impressões digitais, aquilo que é autêntico, que representa a identidade do «eu».

    O vendedor estranha as mãos magoadas do sujeito lírico: “I / como tem a mão / como é que fez isso?” A palavra inicial é extremamente ambígua de ler, pois tanto pode remeter para a interjeição «ih!», traduzindo o espanto do vendedor, como equivaler ao pronome pessoal inglês de primeira pessoa, que simultaneamente fosse um «ai!» interjetivo da língua portuguesa. De facto, a maiúscula pode sugerir que o «I» remete para  pronome inglês, misturando-o com um grito.

    Por outro lado, justificando o recurso a luvas que desvestem as mãos, o sujeito poético afirma o seu gosto masoquista por ver o próprio sangue. Por último, atente-se no facto de o talco ser usado apenas para abrir as luvas de pelica, o que sugere que o uso das luvas corresponde à adoção de uma espécie de segunda pele, na qual se inscrevem as mais autênticas impressões digitais.

Rosa Maria Martelo, in “A luva e a mão (uma história de salvação)”

terça-feira, 1 de abril de 2025

"Lúcia no Saldanha em Pulgas", de Adília Lopes: análise e interpretação do poema

1. Transcrição do poema

1
De um amante
uma vez
faço mil amantes
 
2
Porque o meu amante
tão pobre, Juan Yepes
foi o pão o peixe a água
das minhas bodas de Caná
 
3
Ó mulher inspirada
que desperdiças o caríssimo
unguento de Bethânia,
ensinas-me a gerir
a escassez de recursos
 
4
Os amantes não se contam, Don Juan
ó contabilista dos contabilistas
 
5
Sangue que foi vinho que foi água
onde nadam mil peixes
que foram um peixe só
alimentado por pão partido em pequeninos
o amor não se conta, ó escritoras de escritos
 
6
Não contem comigo para usar
o jargão da Marie Claire
e a jaqueta de Courrèges
 
7
O mártir pede o pano da Verónica emprestado
autorretrato dos autorretratos alta-costura
e assim misturo Cristo com isto
 
8
De que me serve que esse homem
tenha sofrido se eu sofro agora?
 
9
Marta & Maria acopladas fundam
uma firma no firmamento
 
10
Eu louvo o meu tempo de santos
Computadores, ó 70! X 7!
(o meu martírio branco consiste em louvar
o que não interessa nem ao Menino Jesus)

2. Análise e interpretação do poema

 
    Este poema pertence ao livro Clube da Poetisa Morta, datado de 1997. O título do texto (tal como a nona estrofe) alude ao tema musical “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, o qual se crê fazer referência à sigla LSD e aos efeitos alucinogénios do ácido lisérgico e que faz parte do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
    Na composição poética, Adília Lopes, aparentemente, estabelece um diálogo inspirado entre experiências pessoais e acontecimentos bíblicos. O Saldanha refere-se à Praça Duque de Saldanha, em Lisboa, usada sobretudo como ponto de passagem, intercâmbio ou encontro. Por seu turno, a expressão “estar em pulgas” indica expectativa, mas também pode ser lida em sentido literal (há pulgas na praça).
    A primeira estrofe parece apontar para a multiplicação do amor ou dos amantes, o que pode querer dizer que o sentimento amoroso, uma vez experimentado, pode expandir-se e desdobrar-se em múltiplas experiências.
    Por sua vez, a segunda estrofe alude ao episódio bíblico da multiplicação dos alimentos, concretamente a dos pães e dos peixes. O amante do «eu» poético era pobre, Juan Yepes. Trata-se de Juan Yepes Álvarez (1542-1591), nome de nascimento, que depois ficou conhecido como San Juan de la Cruz, um religioso e poeta místico do Renascimento espanhol e um dos grandes nomes da literatura mística cristã, conhecido pela sua poesia espiritual e pela ideia do amor divino. Juan Yepes foi ainda reformador da Ordem dos Carmelitas e cofundador da Ordem das Carmelitas Descalças de Santa Teresa de Jesus. Desde 1952, tornou-se o patrono dos poetas em língua espanhola. Os nomes comuns «pão», «peixe» e «água» remetem para o episódio bíblico da multiplicação dos pães e dos peixes e da transformação da água em vinho nas Bodas de Caná. De facto, trata-se do primeiro milagre de Jesus: de acordo com o Evangelho de S. João, ele estava, juntamente com Maria, sua mãe, presente num casamento quando o vinho acabou. A Virgem, mal se apercebeu da situação, informou o filho, que ordena aos servos que encham seis talhas com água e, ao servi-la, os convidados percebem que a água foi transformada no melhor vinho da festa. Deste modo, no contexto do poema, a menção às Bodas de Caná parece indiciar um amor que se multiplica ou que possui um fundo milagroso. Por outro lado, o amor do «eu» pelo amante não era material, mas espiritual e essencial como os elementos básicos da vida. Note-se, ainda, que o vinho, na tradição cristã, representa a alegria, a comunhão, tendo acabado por se tornar um símbolo eucarístico.
    A terceira estrofe remete novamente para a Bíblia, especificamente a receção de Jesus por Maria e Marta. Ela abre com uma apóstrofe dirigida a uma “mulher inspirada”, chamada Maria, que ungiu Jesus Cristo. Perante as críticas dirigidas a esse comportamento perdulário dessa figura feminina, que poderia ter vendido o perfume e dado o dinheiro aos pobres, Jesus recorda que esta será a preparação para o dia do seu sepultamento. Ainda de acordo com o texto bíblico, a mulher derramou o dito unguento muito caro nos pés de Jesus, enxaguando-os depois com os seus cabelos. O adjetivo «inspirada», presente no verso inicial da estrofe, pode ser entendido como um elogio à ação da mulher por ter agido movida por um impulso nobre, ou, em alternativa, como uma ironia, sugerindo que a inspiração pode ser mal interpretada ou desperdiçada. Por sua vez, a forma verbal «desperdiças» traduz a crítica presente na Bíblia e feita pelos discípulos, nomeadamente Judas Iscariotes, que questionaram a razão de o perfume não ter sido vendido para ajudar os pobres. Os dois versos finais parecem possuir uma contradição irónica, dado que a mulher referenciada desperdiçou um recurso valioso (o unguento), mas o «eu» declara que a ensina a lidar com a escassez de recursos, num jogo claro entre generosidade e escassez.
    Na quarta estrofe, o sujeito lírico defende a singularidade da experiência num registo imprecativo, dirigido a Don Juan, tratado, de forma irónica, como o “contabilista dos contabilistas”, referindo-se aos inúmeros amores que a tradição lhe aponta. D. Juan é uma personagem mítica do teatro espanhole, por extensão, da literatura universal, que constitui o protótipo do libertino impenitente. Da autoria discutida, atribui-se tradicionalmente a sua criação a Tirso de Molina, na sua obra El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra, de 1630. D. Juan personificaria uma lenda sevilhana que inspirou vários autores, como, por exemplo, Molière, Lorenzo da Ponte, Lord Byron, etc. No fundo, não passa de um libertino que crê na justiça divina, mas acredita igualmente que poderá arrepender-se e ser perdoado antes de comparecer perante Deus.
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera os símbolos já referidos: na Última Ceia, o vinho foi transformado em sangue de Cristo (símbolo da redenção); nas bodas de Caná, a água foi transformada em vinho (símbolo da alegria e da celebração, água essa em que, metaforicamente, “nadam mil peixes / que foram um peixe só”, metáfora essa que reivindica um amante que vale por muitos. Há aqui a ideia da continuidade nos processos de transformação: algo muda ao longo do tempo, mas mantém conexões com as suas «versões» anteriores. No caso do poema, estamos perante algo que se transforma em qualquer coisa maior, mais significativa, quase uma ascensão simbólica: o que hoje é sangue (símbolo da vida) já foi antes vinho (alegria, celebração, comunhão) e, previamente, água (a matéria-prima básica, a origem de tudo). A progressão sugerida por Adília Lopes parece apontar para o percurso da vida e da espiritualidade: primeiro, há a origem e a simplicidade (a água, elemento primário associado à pureza, ao batismo); depois, dá-se a transformação e a celebração (o vinho; no fim, chega a consagração e o sacrifício (o sangue, o sacrifício máximo, a redenção, como no sacrifício de Cristo). Ou seja, o amor tem início como água (algo puro, básico, essencial), transforma-se, de seguida, em vinho (algo mais intenso, que dá prazer, é embriagante, como a paixão), para se tornar, no final, sangue (um estado extremo, talvez de sacrifício, dor e/ou entrega total). O amor não se mede, não se quantifica, mas cresce e intensifica-se com o tempo, ainda que implique também sofrimento ou sacrifício. Por sua vez, a imagem do pão partido remete tanto para o milagre da multiplicação dos pães quanto para a Eucaristia, na qual Cristo se oferece em pedaços – a hóstia – aos fiéis. No verso final, o «eu» dirige-se às “escritoras de escritos”, parecendo criticá-las por procurarem definir o amor, alertando-as que o mesmo não pode ser medido, calculado ou explicado por meio de palavras, lembrando o célebre soneto de Camões (“Amor é um fogo que arde sem se ver”), no qual o poeta procura definir o amor, para concluir que, afinal, é indefinível e contraditório.
    A sexta estrofe contém referências ao mundo contemporâneo da moda. “Marie Claire” é uma revista feminina de caráter mensal, iniciada em França em 1937, que posteriormente começou a ser publicada também noutros países, nos respetivos idiomas. O seu lema era “Mais do que uma cara bonita”. Por seu turno, André Courrèges foi um estilista francês nascido em 1923, reconhecido sobretudo pelos seus desenhos ultramodernos. Courrèges associou à indumentária feminina uma maior simplicidade, com traços que permitiam uma maior liberdade e comodidade. Os seus desenhos caracterizavam-se por formas geométricas, baseando-se em quadrados, trapézios e triângulos. Em 1965, lançou uma campanha chamada “Era espacial”, a qual revolucionou o mundo da moda, sendo considerado um visionário, criador de um universo radical, pessoal e polimorfo no universo da moda. O verso inicial contém uma negação categórica (“Não contem comigo”), deixando claro que não faz parte de um determinado grupo ou estilo, numa espécie de posicionamento pessoal contra algo que parece imposto ou esperado. Neste caso, trata-se da negação do «jargão» da referida revista de moda, beleza e comportamento feminino. Poderemos estar, neste passo, perante uma crítica ao discurso comercial e superficial, a recusa de modas, bem como a rejeição de um tipo de imagem e empoderamento feminino, ligado ao consumismo e à estética, numa visão superficial da mulher. Por outro lado, o «jargão» indicia uma maneira de falar comum a uma atividade ou grupo específico, comumente usada em grupos profissionais ou socioculturais. Quanto à «jaqueta», pode simbolizar o consumismo e a moda como imposição que o «eu» poético recusa enquanto algo que representa um padrão estético pré-definido. Além disso, o mundo da moda, nomeadamente de grifes famosas, frequentemente dita como as mulheres se devem apresentar socialmente, algo que o sujeito lírico recusa seguir. Deste modo, Adília Lopes estaria a colocar-se fora do discurso da moda e das revistas femininas, por não se encaixar nesse universo de futilidade e convenções sociais.
    A sétima estrofe mistura referências religiosas, arte e moda, com ironia e em tom provocatório. O verso inicial faz alusão à lenda do véu de Verónica, um dos episódios inscritos na Via Sacra. Assim, de acordo com a tradição cristã, Verónica enxugou o suor e o sangue do rosto de Cristo quando ia a caminho do Calvário, tendo o seu rosto ficado impresso no pano (esta cena não consta da Bíblia). Note-se que o complexo verbal «pede emprestado» quebra o tom sagrado da referência bíblica. Por outro lado, quem é o «mártir»? Um narcisista? O autorretrato dos autorretratos constituirá uma denúncia da obsessão pela autoimagem, do culto da imagem? O conceito do autorretrato surge associado à moda, ao luxo e ao consumismo. A alta costura remete para a sofisticação, mas, no caso do poema, parece apontar para uma certa artificialidade. O último verso reconhece claramente a associação irreverente entre o sagrado (Cristo) e o profano, o mundano («isto»). Cristo é o símbolo da espiritualidade, do sacrifício, do sofrimento em prol da humanidade, enquanto o pronome demonstrativo invariável «isto» parece apontar para o que foi citado antes: a moda (o próprio poema?). De acordo com uma interpretação livre, a estrofe parece questionar o modo como a dor e a imagem são manipuladas na sociedade atual. Deste modo, a figura do mártir moderno que pede o pano de Verónica emprestado pode indiciar a imagem de alguém obcecado pela exibição do sofrimento ou da busca de validação através dele.
    A oitava estrofe reproduz os versos finais do poema “Cristo na cruz”, inscrito na derradeira obra poética de Jorge Luís Borges, intitulada Os conjurados. São perguntas sem resposta de um Borges cego, perto do final da sua vida. O sofrimento de Jesus (ou do mártir) não tem qualquer valor real para o «eu» poético, que sofre no presente. De acordo com o cristianismo, a paixão de Cristo é vista como redentora, como um sacrifício que dá sentido à dor do ser humano. No entanto, o sujeito poético rejeita essa ideia: o sofrimento de Cristo no passado não alivia a dor no presente, ou seja, o sofrimento não possui um sentido transcendente. O sofrimento do «outro» (de Cristo ou de qualquer outro mártir) pertence ao passado, mas “eu sofro agora” – o que importa, para quem sofre, é o momento presente. O sofrimento não é transferível, não é algo que pode ser substituído ou compensado por uma dor anterior. Deste modo, o «eu» poético rejeita a ideia de consolo religioso, de que o refúgio na religião traz conforto, alivia a dor.
    Tendo em conta que o poema contém diversas referências a Cristo e ao pano de Verónica, descrito como “autorretrato dos autorretratos alta costura”, Marta e Maria podem ser identificadas como as duas irmãs de Lázaro. Deste modo, os nomes «firma» e «firmamento» remetem também para a origem bíblica das duas figuras. Por outro lado, esta estrofe exemplifica o gosto de Adília Lopes pelas dualidades. De acordo com a professora Rosa Maria Martelo, a poetisa reúne as identidades diferenciadas da diligente Marta e da contemplativa Maria; a dualidade Marta e Maria é equivalente à dupla que reúne Adília e Maria José, que, também graças à máquina de coser, fundaram juntas uma firma no firmamento (in poema “Op-Art”) – no caso, entre as estrelas da escrita contemporânea. Note-se que o verbo «ligar» significa, neste caso, ligar, combinar, unir tessituras, pedaços de discurso, fazer roupas novas com vestidos velhos.
    A estrofe final – uma quadra – mistura elementos religiosos («santos») com elementos modernos, do domínio da tecnologia («computadores»), indiciando um contraste entre o domínio do espiritual e o do profano. O sujeito poético afirma louvar o tempo atual, o da tecnologia, da modernidade, representado(a) pelos computadores, o que parece constituir uma crítica irónica sobre o que é venerado hoje em dia. O segundo verso contém uma referência bíblica, nomeadamente ao Evangelho de S. Mateus (18, 21-19, 1), onde Jesus responde a uma pergunta feita pelo apóstolo Pedro (“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes tenho de o perdoar? Até sete vezes?”. Jesus responde-lhe: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.”). Ora, esta resposta sublinha a necessidade de perdoar verdadeiramente.
    O dístico derradeiro surge entre parênteses e traduz o sarcasmo do «eu» lírico, ao demonstrar que se sente martirizado por dar valor a coisas que ele próprio considera sem valor. O que louva (ou escreve ou pensa) não tem qualquer importância nem para o Menino Jesus. Trata-se de uma expressão idiomática que aponta para algo desinteressante, maçador, banal. O que o sujeito poético louva não tem interesse, é fútil ou irrelevante.

domingo, 28 de março de 2021

"Autobiografia sumária de Adília Lopes", de Adília Lopes

 
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
 

            Apesar de o título do poema apontar para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto autobiográfico?

            É certo que o elemento «auto-» está presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos «meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia, mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.

            Uma leitura metafórica do poema permitiria entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas» como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente, sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer poético.

            Porém, o poema pode ser lido também de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam de brincar com estas.

            O uso do determinante possessivo tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).

            Numa crónica publicada na revista “Visão”, Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois. Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”

            A partir da leitura desta crónica, Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que “[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.

            Assim sendo, esta composição poética é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e pela solidão humana que pode sugerir).

            Além disso, os gatos ligam-se afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória: “O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”

            O poema, pela relação que estabelece entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”) que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente garantida.

            O uso do presente do indicativo na apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja, a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que compreende o relato de acontecimentos passados.

 

Análise de "Se fores boa menina", de Adília Lopes

 
Se fores boa menina
dou-te um periquito azul
eu fui boa menina
e sem querer abri a gaiola
se tivesses sido boa menina
o periquito azul não tinha fugido
mas eu fui boa menina.
 

            A composição poética constrói-se, em parte, a partir da anáfora dos versos 1 a 5 (“Se” / “se”) e da repetição da expressão “boa menina”, que traduzem o contraste entre o ponto de vista do mundo adulto e o do mundo infantil e a incompatibilidade que existe entre ambos.

            Por outro lado, o poema configura uma espécie de diálogo entre o sujeito poético – um adulto – e uma criança, sendo que os versos 1, 2, 5 e 6 contêm as “falas” do primeiro e os 3, 4 e 7, as do segundo.

            A figura adulta oferece uma recompensa a uma criança (e dar em seguida), se ela se comportar bem (“Se fores boa menina”) e agir de acordo com o padrão estabelecido pelas pessoas adultas. De seguida, o sujeito poético dá conta de que a menina recebeu o seu presente: um periquito azul. No entanto, ela deixa-o escapar, pois esqueceu-se da porta da gaiola.

            A partir deste «episódio», mostra o contraste existente entre os pontos de vista adulto e infantil, evidenciando as lógicas diferenciadas que caracterizam os dois mundos. Se, à primeira vista, o adulto exerce o seu papel de educador, já que parece estar preocupado com a formação e educação da menina, alertando-a para as atitudes que adotar e evitar para se tornar uma “boa menina”.

            Por outro lado, podemos ler a fala inicial do adulto como uma forma de chantagem: ele só dará o presente se a menina obedecer às suas ordens/seguir os seus conselhos e se comportar de determinado modo, ideia sugerida pelo uso do conectivo condicional «se» e pela variação de tempos verbais, nomeadamente no modo conjuntivo, no futuro (“se fores”) e pretérito imperfeito (“se tivesse”). O modo conjuntivo sugere a dúvida que o sujeito poético tinha relativamente à conduta da menina, isto porque, antes mesmo de ter dado o pássaro, o adulto já desconfiava dela, visto que, segundo ele, se a menina tivesse sido boa menina, a ave não teria fugido. Assim sendo, a recompensa dada pode ser interpretada como uma espécie de manobra por parte do adulto, já que as suas suposições relativamente à criança se confirmaram: ela não fora mesmo “boa menina”.

            Por oposição, a fala da criança traduz a sua certeza, visto que está convicta de que foi boa menina, ideia traduzida pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito do modo indicativo (“eu fui”). A mudança do modo conjuntivo, presente nas falas do adulto, para o indicativo, característico das da criança, traduz o contraste de pontos de vista e o seu inconformismo. De facto, para ela, o facto de ter deixado, por descuido, a porta da gaiola aberta, não justifica o julgamento do adulto, isto é, não compreende a razão por que não pode ser considerada uma “boa menina”. O ato de abrir, sem querer, a porta da gaiola, não pode servir como único determinante da sua conduta.

            Há, aqui, uma espécie de conflito quanto ao comportamento ético: o esperado pelo adulto e a conduta efetiva dela. As regras impostas pelos adultos devem ser seguidas e cumpridas, o que faz com que o presente que a criança tinha recebido deveria ter sido preservada com todo o cuidado, o que faz com que o pássaro que se encontrava preso numa gaiola é, de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos adultos – e, no fundo, da sociedade em geral, que dita as regras –, um indício de mau comportamento, já que as normas do bom comportamento não foram observadas.

            Todo o poema é percorrido pela ironia, presente, desde logo, na expressão “boa menina”. Para o adulto, a sua conduta configura o oposto: ela é uma “má menina”. Porém, ele não usa o antónimo “má”, o que pode configurar uma forma de maldade por parte daquele, dado que a ideia que a criança tem de “boa menina” se distancia da que está presente na mente do seu interlocutor. Por outro lado, a repetição faz ressaltar as noções de bondade e maldade. Em última análise, o poema questiona quem pode ser realmente mau: o adulto, por causa da forma como recriminou a menina, ou esta por não ter cumprido adequadamente o seu dever?

 

sábado, 27 de março de 2021

Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes

 
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
contaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
 
            Este poema, constituído por 8 versos, constrói-se a partir da repetição de duas estruturas: “minha Musa” (vv. 1, 2 e 7) e “língua” (vv. 4 e 5), e tem como tema a relação do sujeito poético com a sua Musa.

            A Musa avisa o «eu», antes mesmo de desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa, castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça” que faz ao sujeito poético.

            Apesar de reconhecer a crueldade da sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo. Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da linguagem.

            Sucede que, neste poema, a Musa inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua. A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das formas verbais nas primeira e segunda pessoas.

            A nível estilístico, a repetição irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua” é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua” no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.

            Este acarretará, naturalmente, consequências. Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada, não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo, este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.

 

"Eu sou a luva", de Adília Lopes

 
Eu sou a luva
e a mão
Adília e eu
quero coincidir
comigo mesma
 

            Neste poema, o sujeito poético apresenta-se com diversos «eus».

            A composição poética abre com duas metáforas: a da luva e a da mão, que sugerem a ligação entre duas pessoas, equiparando-se no que diz respeito ao modo de pensar e de agir. No entanto, neste poema parece sugerir a existência de conflitos e divisões.

            A ausência de pontuação – nomeadamente de vírgulas – permite-nos fazer diferentes leituras do texto. Assim, o sujeito poético apresenta-se, no início, marcado por dois nomes: a luva e a mão. Poderá isto significar que há dois «eus»: a Adília e o eu, que o sujeito poético procura fazer coincidir, formando um único ser. Deste modo, estaremos perante a união do sujeito poético (eu) com Adília. Convém, neste contexto, ter presente o facto de Adília Lopes constituir o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Deste modo, quando afirma que o «eu» do poema quer coincidir consigo “mesma”, este «eu» parece não ser já Maria José, visto que é com Adília (a figura que assina os textos) que o «eu» se quer unir, formando um único ser. Esta ideia parece ser confirmada por entrevistas dadas pela própria poeta, que afirma que “Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”. No entanto, logo de seguida acrescenta: “E muitos outros nomes que eu não sei”.

            Esta nota permite fazer outra leitura do poema. Se separarmos as conjunções coordenativas copulativas «e» presentes nos versos 2 e 3, deparamos com uma pulverização de «eus», visto que, além de Adília Lopes e Maria José, podem existir “muitos outros nomes”. Assim sendo, o «eu» que encontramos no início do poema não seria nem Adília Lopes (embora no terceiro verso apareça uma Adília, convém notar que o sobrenome Lopes não está presente, o que poderá indiciar a existência de outra figura, de outro nome, diferente da poeta que assina os seus textos como Adília Lopes) nem Maria José, mas um «eu» que não sabemos quem é. A leitura do segundo verso, deste modo, estender-se-ia até à segunda conjunção «e», presente no verso 3. Este dado permite afirmar que a mão é, agora, Adília. A ocorrência do segundo «eu». No final desse terceiro verso, poderá remeter tanto para o «eu» do primeiro verso como para outro, distanciando-se do primeiro. É este segundo «eu» que quer coincidir consigo mesmo. Assim sendo, se, de acordo com a primeira leitura, estaremos perante o par Adília Lopes / Maria José, de acordo com a segunda, seremos confrontados com várias «faces», podendo ser ora Adília Lopes, ora Maria José, ou ainda muitos outros nomes.

 

“Arte poética”, de Adília Lopes

 
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
            Esta composição poética tem como tema o ato de escrita, definido a partir de uma comparação estabelecida entre o poeta e um pescador que pretende “apanhar um peixe / com as mãos”.
            Segundo o sujeito poético, o poeta necessita de ter atenção e cuidado com as palavras, tal como o pescador necessita de muita atenção para pescar o peixe.
            A metáfora do peixe traduz o trabalho necessário durante o ato de escrita, visto que as palavras, “agindo como peixes”, são escorregadias e fugidias. O instrumento do pescador é a cana, enquanto o do poeta são as palavras, pelo que é necessário que o sujeito esteja sempre atento a elas. Para que a palavra não escape das suas mãos, é preciso ter cuidado em cada movimento, a cada verso. Tal como o pescar à mão é complexo, pois o peixe “debate-se / tenta escapar-se / escapa-se”, o poeta necessita também de persistir e lutar com as palavras para elaborar o poema.
            A ideia de luta é traduzida também pela estrutura formal do poema. De facto, a composição é constituída por uma única estrofe, constituída por 23 versos alternados, contribuindo, assim, para a construção da imagem de um peixe que, no instante em que parece estar preso entre as mãos do pescador, logo de seguida parecer escapar. Esta imagem é, pois, sugerida pela alternância de versos curtos (a maioria dos ímpares) e longos (os pares), bem como à concentração de versos mais pequenos, constituídos, no máximo, por três palavras, ocupando uma posição central no poema (versos 7 a 13).
            Deste modo, o sujeito poético sugere que o poema é o resultado de um trabalho árduo, que demanda esforço físico (“eu persisto / luto corpo a corpo / com o peixe”) e paciência. Esta luta constitui uma espécie de questão de vida ou morte.
            Assim, para o poeta, que luta com as palavras, existe apenas uma saída: a morte ou a salvação – “ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois”. No fundo, o que está em causa neste poema é o ato de escrita poética, temática abordada por diferentes escritores, sendo o mais célebre Fernando Pessoa e o seu “Autopsicografia”. Durante esse ato, o sujeito poético/poeta necessita de estar atento e concentrado e ser persistente, já que as palavras são escorregadias, como a imagem do peixe sugere, o que implica a tal atenção, precaução e persistência.
            Por outro lado, estas imagens vêm realçar a importância do trabalho com as mãos no ato de criação poética/artística, que exige uma determinada agilidade manual. Com efeito, o poeta necessita de selecionar adequadamente as palavras, as quais constituem a sua matéria-prima, que se materializam e tornam concretas quando são postas no papel. Tudo isto evidencia o “jogo perigoso” em que o poeta se vê envolvido durante o ato de criação poética, bem visível na imagem sôfrega de alguém a tentar apanhar um peixe com as mãos, o qual teima em escorregar e tentar escapar-lhe.
  

sábado, 13 de junho de 2020

Análise do poema "Palavras caras", de Adília Lopes

Em minha casa, detestávamos pessoas bem-
-falantes, palavras caras. De uma vez, apareceu a
prima Maria Lucília a dizer já não sei porquê:
       – Fiquei muito confrangida.
Passámos a chamar-lhe “a confrangida”.
Sempre que aparecia alguém na televisão a
declamar poesia ou a falar de poesia, desligáva-
mos a televisão.

O sujeito poético e a sua família (“Em minha casa”, “detestávamos”) têm aversão profunda a pessoas bem-falantes e ao emprego a despropósito de “palavras caras”. As pessoas bem-falantes são aquelas que fazem uso de palavras, de uma linguagem “cara” de forma inapropriada, na tentativa de se superiorizarem intelectualmente aos outros.
De seguida, apresenta, como exemplo do que acabou de dizer, o caso da sua prima Maria Lucília, que personifica a pretensa eloquência, com o verso em discurso direto em que usa uma palavra “cara”: “– Fiquei muito confrangida.”. Note-se que o nome da prima – Maria Lucília – é, também ele, exemplificativo dessa pretensão, dado o seu caráter composto. Por causa disso, o sujeito poético e a sua família deram-lhe uma alcunha, pela qual a passaram a tratar: “a confrangida”.
Nos últimos versos, refere o facto de ele e a família desligarem a televisão sempre que aparecia alguém a declamar ou a falar de poesia nela. Parece haver aqui uma associação entre as tais pessoas bem-falantes e aquelas que declamam ou falam de poesia na televisão. Note-se como a linguagem confirma a aversão do sujeito poético. De facto, nos três versos finais, a linguagem é bastante simples e caracterizada pela repetição do vocabulário, o que se opõe à das pessoas bem-falantes (de que a prima é um exemplo), do seu pretensiosismo e pomposidade, que muitas pessoas pretendem também atribuir à poesia.
As palavras usadas pelos bem-falantes constituem frequentemente uma forma de fugir à verdade; de forma semelhante, a eloquência em exagero é inimiga da boa poesia. Declamar ou falar de poesia de modo pretensioso, numa atitude de superioridade intelectual e de sobranceria é o contrário daquilo que o sujeito poético defende. Observe-se, por último, o tom sarcástico que domina todo a composição poética.

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