Português: 28/01/21

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Vida de Antero de Quental


Análise de "Antes de nós nos mesmos arvoredos"

 ● Tema: o destino humano.

 
 
1.ª estrofe

 
O plural «nós» representa todos os seres humanos.

 
Os arvoredos configuram um elemento intemporal: antes de o ser humano existir, eles já existiam. E antes dessa existência, o vento passava e criava ruído nas folhas, ruído esse que é personificado na fala das mesmas folhas.

 
A Natureza, representada pelos arvoredos, assiste impassível à passagem dos homens, havendo como que uma permanência que se opõe à transitoriedade da vida humana. Aquela é permanente, enquanto o ser humano é transitório (verso 1).

 
Em suma, o sujeito poético esclarece que, antes de o ser humano existir, a Natureza comportava-se da mesma forma que se comporta no presente: os arvoredos são os mesmos, o vento passou neles e as falhas falavam do mesmo modo que hoje. As leis da Natureza e do Universo são sempre constantes.

 
 
2.ª estrofe
 
O sujeito poético afirma que o Homem passa pelo mundo e se agita em vão. Ele tem consciência da passagem do tempo, bem como da inutilidade (v. 5) do seu esforço, enquanto os elementos naturais permanecem passivos e sem esta consciência.

 
A ação do ser humano não deixa qualquer marca no mundo e é tão insignificante como o ruído das folhas e da passagem do vento. Ou seja, as marcas deixadas pelo Homem e a sua agitação são tão insignificantes e inúteis como o barulho das folhas das árvores e da passagem do vento. Note-se que este representa a instabilidade e a inconstância (ora sopra, ora não sopra; ora sopra da esquerda, ora sopra da direita, etc.).

 
Nas duas primeiras estrofes:

- a Natureza e o «nós» fazem parte da mesma realidade perene e estão sujeitos às mesmas condições, neste caso, à passagem do tempo e do vento (vv. 1 a 4);

- neste caso, há uma relação de semelhança entre o Homem e a Natureza (vv. 6 a 8);

- no entanto, há uma diferença: a passagem do tempo faz parte do ciclo habitual da Natureza, que dela não tem consciência; já para o Homem, porque é consciente da passagem do tempo, é motivo de agitação e perturbação – ou seja, ele é caracterizado pela constatação da finitude e da transitoriedade, bem como pela consciência do tempo (“Passamos” – v. 5) e da inutilidade do esforço humano (“agitamo-nos debalde” – v. 5).

 
 
3.ª estrofe
 
O sujeito poético exorta à fruição calma do momento («carpe diem») e à serenidade epicurista do contacto com a Natureza (“Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar nosso esforço à Natureza” – vv. 9-10).

 
Por outro lado, exprime o desejo único de identificação e comunhão com a Natureza (“E não querer mais vida / Que a das árvores verdes.” – vv. 11-12).

 
Além disso, aconselha a aceitação voluntária (“abandono assíduo” – v. 9) do tempo de vida que nos é concedido e a aceitação passiva da ordem das coisas, das leis que regem o Universo (“Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar nosso esforço à Natureza”); ou seja, sugere que abandonemos definitivamente (“assíduo” = constante, que não acaba) o que nos agita / perturba e que passemos a apreciar a Natureza, a desfrutar calmamente o que ela tem para nos oferecer.

 
O sujeito poético aspira à indiferença (próxima da da Natureza) face à perturbação causada pela ameaça do Destino, não querendo “mais vida / Que a das árvores verdes” (vv. 11-12), alheio à agitação do mundo, e à tranquilidade (ataraxia).

 
 
4.ª estrofe
 
O sujeito lírico defende uma atitude de abnegação face ao fatalismo da vida: “Inutilmente parecemos grandes”.

 
A ideia de grandeza que o Homem tem de si é inútil. O advérbio «inutilmente» sugere que, apesar dos seus feitos e da imagem que tem de si mesmo, ele estará sempre sujeito às leis do Destino.

 
Além disso, nada na Natureza está submetido ao ser humano, mesmo que este assim pense: “(…) nada pelo mundo fora / Nos saúda a grandeza / Nem sem querer nos serve.”.

 
 
5.ª estrofe
 
Na quinta estrofe, é usada a primeira pessoa do singular, enquanto nas quatro anteriores fora usada a primeira do plural. A que se deve esta mudança?

 
Em primeiro lugar, nas primeiras quatro estrofes, o sujeito poético apresenta uma reflexão filosófica sobre o tempo e os efeitos da sua passagem, sobre um Destino comum a todos os seres humanos. Assim sendo, o recurso à primeira pessoa do plural justifica-se, pois as conclusões e as recomendações que o sujeito poético rira e faz são globais e aplicam-se a todos os seres humanos, incluindo o sujeito poético (“nós”, “Passamos”, “agitamo-nos”, etc.).

 
Em segundo lugar, na última estrofe, o sujeito poético volta.se para si mesmo, dando o seu exemplo pessoal e refletindo sobre a fugacidade da vida, a passagem inexorável do Tempo e a pequenez dos atos humanos (vv. 17-18), reforçando a ideia de que o Homem é débil perante forças maiores (vv. 19-20).

 
Esta estrofe é toda ela uma interrogação retórica, através da qual o sujeito lírico reflete sobre o valor da vida humana perante o poder do Tempo.

 
Assim, tal como as pegadas deixadas (pelo sujeito poético) na areia são facilmente apagadas pelas ondas (“Se aqui, à beira-mar, o meu indício / Na areia o mar com ondas três o apaga” – vv. 19-20), a existência humana será sempre apagada pela passagem do Tempo (“Que fará na alta praia / em que o mar é o Tempo?” – vv. 19-20). Por outro lado, quer as pegadas quer a existência humana se revelam transitórias e sujeitas ao poder de forças que lhes são superiores.

 
Desta forma, a interrogação retórica estabelece um contraste entre a pequenez do Homem e a força grandiosa e inexorável que é o Tempo.

 
A presença do número 3 é bastante expressiva:

- associa-se ao destino do Homem e ao mito das três parcas, as irmãs que determinam o destino dos deuses e dos seres humanos: Cloto segura e tece o fio da vida – é a deusa dos partos e nascimentos; Láquesis fia (a vida do Homem na Terra); Átropos corta o fio da vida (momento que equivale à morte);

- relaciona-se também às nereidas, deusas filhas do Oceano, que personificavam as ondas e que fiavam, teciam e cantavam;

- liga-se, igualmente, às três fases da vida do Homem: nascimento, vida e morte.

 
Em suma, na última estrofe, o sujeito poético reflete sobre:

- a brevidade da vida;

- a passagem do Tempo;

- a consciência da morte;

- o contraste entre a fragilidade do ser humano e a grandiosidade do Tempo.

 
Resumindo: ao longo do poema, o sujeito lírico propõe uma visão pagã da existência e defende a comunhão do Homem com a Natureza, ao constatar a brevidade e a efemeridade da vida humana. A única atitude a adotar no sentido de tudo isto encarar de forma tranquila, sem perturbação, passa pela renúncia à ação, ao esforço, pelo reconhecimento da sua inutilidade. Por outro lado, o ser humano é inserido num mundo uno, situando-se ao mesmo nível que os elementos da Natureza, aparecendo como parcela finita do infinito que é o Ser – Deus ter-se-ia materializado nos diferentes objetos criados e não apenas no ser humano.

 
 
Recursos expressivos
 
Nomes:

- “ruído” e “vento” sintetizam a ideia central do poema: o Homem não constrói o seu destino, antes cumpre um que lhe é imposto;

- “ruído” representa a palavra humana, por oposição à do Fado / Destino;

- “vento”: por um lado, associa-se ao Homem, remetendo para a efemeridade que caracteriza a sua vida; por outro, remete para o sopro divino, com significado oposto;

- “areia”: representa o mundo da aparência, que é uma cópia do mundo da Essência;

- “[alta] praia”: representa o mundo da Essência. Estes elementos (areia e praia) remetem para a conceção platónica da existência humana, através da oposição entre a “areia” que o sujeito poético vê e a “alta praia”.

 
Verbos nos modos imperativo e conjuntivo (com valor de imperativo): traduzem a assunção de uma atitude filosófica como forma de obter a tranquilidade e o bem-estar.

 
Advérbios de modo:

- “debalde”: traduz a inutilidade do desejo humano, pois o Destino é inexorável e nada escapa à sua lei;

- “inutilmente”: traduz a oposição entre a imagem que o Homem criou de si mesmo e a função real que ele desempenha no Todo universal, pois terá sempre de se submeter a uma vontade que lhe é superior, daí a inutilidade do seu esforço.

 

Análise de "Mestre, são plácidas"

 Assunto
 
            O sujeito poético dirige-se ao seu Mestre, Alberto Caeiro, expondo-lhe a aprendizagem que fez, e produz uma série de conselhos destinados a um «nós», no qual ele se inclui, bem como um conjunto de máximas, que contêm ensinamentos de vida e configuram uma proposta de uma filosofia de vida.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – O sujeito poético constata a fugacidade do tempo e sugere como deve ser vivido.
 
2.ª parte (estr. 2 a 4) – O sujeito lírico aconselha o seu interlocutor a conformar-se com a sua condição de ser humano.
 
3.ª parte (estr. 5 e 6) – O sujeito poético justifica o conselho dado: a vida é breve e a morte chegará, inevitavelmente.
 
4.ª parte (estr. 7 e 8) – O sujeito poético apresenta a solução para o(s) problema(s) em debate: uma atitude imperturbável para encarar o sofrimento e a morte.
 
 
Análise do poema
 
▪ O poema é antecedido de uma dedicatória a Alberto Caeiro, que o sujeito poético assume como seu «mestre», no primeiro verso do texto.
 
▪ O sujeito poético, através de uma apóstrofe, dirige-se ao seu Mestre (Alberto Caeiro), ao qual apresenta o resultado de uma reflexão que levou a uma aprendizagem, isto é, ao qual dá conta do que aprendeu. Assim sendo, Alberto Caeiro será o destinatário do discurso do sujeito poético, sendo o propósito desse discurso explicar como se deve viver.
 
▪ O sujeito poético terá descoberto a solução para os problemas que atormentam ambos: o tempo que vai passando até à morte (“Todas as horas que nós perdemos”) será vivido de forma plácida, calma, não angustiada se (oração subordinada adverbial condicional) vivermos a vida de forma moderada, se a encararmos de forma leve.
 
▪ A comparação dos versos 5 e 6 sugere exatamente essa defesa do prazer moderado, de viver a passagem do tempo de forma não angustiada: as flores postas numa jarra simbolizam a beleza da Natureza, beleza essa, no entanto, que é efémera, pois irá murchar (ou seja, morrer). Assim, as flores remetem para a efemeridade da vida, a qual torna inútil qualquer ação. Por outro lado, as jarras são recipientes que podem ser preenchidos ou não; neste poema, configuram uma metáfora para as horas. “Preencher as horas de coisas belas como as flores é um ato estético que contrabalança a sua perda” (GARCEZ, Maria Helena Nery).
 
▪ Na segunda sextilha, o sujeito poético defende que devemos manter uma atitude de indiferença perante as paixões e os sentimentos intensos: “Não há tristezas / Nem alegrias / Na nossa vida”. Pelo contrário, sustenta a abdicação e o manter-se afastado das perturbações do quotidiano. . Se soubermos não viver a vida, mas apenas assistir à mesma, não teremos alegrias nem tristezas.
 
▪ De seguida, defende a sabedoria do sábio incauto, despreocupado, ou seja, que não devemos viver a vida. Note-se como valoriza, neste passo, o ato de pensar e o saber. A forma verbal «decorrê-la» (v. 13) significa deixar que a vida passe, não a vivendo intensamente, com preocupações e ilusões e sem estar consciente de que a morte é uma realidade certa. É uma atitude cerebral, calculada, pensada, adquirida através de um processo mental de autodisciplina.
 
▪ Pelo contrário, a vida deve ser vivida de forma tranquila e plácida, “Tendo as crianças / Por nossas mestras”. As crianças, símbolo da sabedoria e da inocência, da existência tranquila, ensinam-nos a inocência e a simplicidade. Elas vivem sem preocupações, sem consciência da passagem do tempo e da certeza da morte.
 
▪ Além disso, a vida deve ser vivida contemplando a Natureza e bebendo a sabedoria que advém dessa atitude: “E os olhos cheios / de Natureza” (vv. 17-18). É a defesa do bucolismo, que relembra a poesia de Caeiro.
 
▪ Em suma, na segunda e terceira sextilhas, o sujeito poético sugere que a melhor forma de evitar o sofrimento e as preocupações da vida passa por abdicar de uma existência intensa e optar por uma atitude imperturbável face às adversidades.
 
▪ Na quarta estrofe, evocando o bucolismo da Natureza, sugere que nos devemos deixar levar pela vida, que deve ser vivida de forma despreocupada, sem esforço ou agitação, «Conforme calha» (v. 21), usufruindo dela enquanto dura, fruindo de forma tranquila o presente (vv. 22-23) e agindo de modo a que se prolongue (“estar vivendo” – est. 4: o gerúndio remete para uma ação em curso). Daí a utilização das expressões «à beira-rio» e «à beira-estrada», que apontam para a ideia de nos mantermos à margem da vida, não mergulhando nela de cabeça, nem seguindo na estrada com metas ou objetivos.
 
▪ A quinta estrofe centra-se no Tempo:

• habitualmente, na poesia, o Tempo constitui uma metáfora do saber, do amadurecimento, da experiência;

• neste texto, o Tempo tem uma conotação negativa: passa, destrói, produz o envelhecimento;

• o tempo passa e a vida é breve, por isso há que desvalorizar a sua passagem, dado que é esta que nos atormenta;

• por isso ainda, há que aceitar a efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte;

• deste modo, o sujeito poético aceita a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte de forma voluntária, porque não vale a pena combater o inevitável.

 
▪ A aceitação das circunstâncias que o rodeiam por parte do Homem, sem preocupações, é a melhor forma de as enfrentar. Assim sendo, devemos deixar-nos ir, caminhando para a morte, como se tal nos fosse indiferente. Maliciosos, de modo calculista, devemos aceitar o Destino, como se fosse voluntário, como se fôssemos nós a conduzi-lo.
 
▪ Na estrofe seguinte, o sujeito poético afirma a inutilidade de qualquer esforço: «Não vale a pena / Fazer um gesto.» (vv. 31-32).
 
▪ Que justificação existe para essa afirmação? É impossível escapar à ação cruel do Tempo, que tudo destrói: “Não se resiste / Ao deus atroz / Que os próprios filhos / Devora sempre.” Ou seja, não vale a pena resistirmos à passagem do tempo e à morte; nada podemos fazer para a evitar.
 
▪ O deus atroz é Cronos (ou Saturno para os romanos), a divindade que simboliza o tempo (é daquele termo que derivam palavras atuais que remetem para o tempo, como, por exemplo, «cronómetro», «cronometragem», etc.) e que devorou cinco dos seus seis filhos mal eles nasceram (tinha-lhe sido profetizado que um deles o derrubaria do trono). O sexto, Zeus (ou Júpiter entre os romanos) escapou (graças à ação da mãe, que deu a comer ao esposo uma pedra) e, de facto, acabou por destronar o pai. Assinale-se a presença, nestes versos, da perífrase e do disfemismo.
 
▪ Nas últimas duas sextilhas, o sujeito poético apresenta a solução: “Colhamos flores. / Molhemos leves / As nossas mãos / Nos rios calmos” (vv. 37 a 40). Aproximando-se de Caeiro e do seu sensacionismo, Ricardo Reis sugere que devemos viver o momento presente, de forma moderada e calma, na esteira do carpe diem de Horácio.
 
▪ Os «rios calmos» simbolizam a passagem do tempo (em direção à morte), um movimento constante, aqui associado à ideia da serenidade. Dito de outra forma, há que aceitar tranquila e imperturbavelmente que as coisas são assim. É a aproximação do ideal da ataraxia.
 
▪ As imagens dos versos 43 e 44 sugere que devemos seguir o ritmo e o curso da Natureza e das suas leis. As referências aos «girassóis», às «flores» e aos «rios» apresentam a Natureza como a realidade com que o «nós» se identifica e simbolizam a transitoriedade da vida.
 
▪ Se assim fizermos, encararemos o momento da morte de forma tranquila e viveremos a vida sem sensação de culpa: “Da vida iremos / Tranquilos, tendo / Nem o remorso / De ter vivido.” (note-se o recurso habitual ao eufemismo).
 

Características clássicas do poema

▪ o uso da ode;

▪ o bucolismo: “À beira-rio”, “Colhamos flores”;

▪ a “aurea mediocritas”: “Molhemos leves / As nossas mãos / Nos rios calmos”;

▪ o paganismo: a referência aos deuses greco-latinos;

▪ a aceitação do Tempo e do Destino;

▪ a consciência da vida e da inevitabilidade da morte;

▪ a vivência moderada do momento: “Para aprendermos / Calma também”;

▪ o uso dos modos imperativo e conjuntivo com valor exortativo.

 
 
Dupla mensagem
 
            Nesta ode, há uma dupla mensagem: uma dirige-se ao «Mestre», transmitindo-lhe a aprendizagem de uma determinada filosofia de vida; a outra é destinada ao leitor, que deve aprender uma lição, que consiste num misto de estoicismo e de epicurismo: “a elegância e o prazer sereno que a Natureza nos oferece é a forma de aceitarmos, com disciplina estoica, a certeza da morte.” (Carlos Reis, p. 87).
 
 
Relação entre o «nós» e o Tempo
 
            A questão do Tempo no poema relaciona-se com a figura mitológica de Cronos, a divindade que devorava os filhos com receio de que estes o apeassem do trono.
            Deste modo, o Tempo é uma espécie de pai e, simultaneamente, o devorador/aniquilador do «nós».
            A consciência da inevitabilidade deste facto, ou seja, da passagem do tempo e da morte, exige que o «nós» aprenda a aceitar esse facto, de modo a conformar-se às leis do Tempo.
 
 
Filosofia de vida
 
            O sujeito poético defende uma vida sem envolvimento emocional com o presente e sem expectativas de futuro, de modo a chegar à morte sem preocupações e com o mínimo de sofrimento (“Não a viver”, “tendo / Nem o remorso / De ter vivido”):
            Por outro lado, o sujeito poético aspira a “decorrer” a vida, ou seja, a aceitar voluntariamente o seu destino, aprendendo a viver em conformidade com as leis da Natureza, com calma e lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas, recusando emoções intensas (“tristezas” e “alegrias”), na busca da indiferença à dor, ao sofrimento, em suma, a qualquer sentimento ou emoção intensos.
            Em conclusão, devemos aproveitar a vida enquanto dura, abdicando de sentimentos ou emoções que criem uma ligação mais profunda com o mundo.
 
 
Semelhanças com a poesia de Alberto Caeiro

▪ Palavras que se inscrevem no campo lexical de Natureza (“flores”, “girassóis”, “rio”, “Sol”).

▪ A «aurea mediocritas».

▪ A referência às crianças como modelo de existência tranquila a seguir.

▪ A atitude de contemplação da Natureza.

▪ A atitude panteísta de identificação com os elementos da Natureza.

 

Análise de "Retrato", de Cecília Meireles

                 Este poema de Cecília Meireles é constituído por três quadras de versos maioritariamente brancos ou soltos e nele é traçado o autorretrato do sujeito poético, daí o uso da primeira pessoa do singular.

                De facto, o título do texto remete exatamente para o traçar do próprio retrato, tanto físico (as feições do rosto e do corpo) como psicológico (do qual ressalta a angústia existencial interior, motivada pela consciência da passagem do tempo).

                O sujeito poético começa por constatar a mudança operada no seu rosto, graças à passagem do tempo: “Eu não tinha este rosto de hoje” – v. 1. No segundo verso, são enumeradas três características desse rosto: “calmo”, “triste” e “magro”. Destes traços ressalta a tristeza do «eu», originada talvez pela própria mudança e pela consciência tardia da transitoriedade da vida. O tom negativo do retrato é acentuado nos dois versos seguintes (anafóricos), que acrescentam mais duas características: os olhos vazios e o lábio amargo. Os olhos azuis parecem sugerir o vazio existencial que marca o presente do «eu», enquanto o lábio (note-se o uso do singular) evidencia a sua amargura e, por extensão, sugere a ausência do sorriso, motivados pela perda da beleza (do próprio «eu» e da vida).

                Deste modo, a primeira quadra destaca a preocupação, a tristeza, a amargura e a melancolia do sujeito poético por causa da passagem do tempo e do envelhecimento, bem evidentes nas mudanças que constata terem-se operado. Note-se, ainda, o facto de os elementos corporais servirem não tanto para a descrição de traços físicos, mas sim psicológicos. A única característica física que é associada ao rosto é a magreza e, ainda assim, serve como «justificação» para a sua tristeza.

                No verso inicial da terceira estrofe, o sujeito poético prossegue o seu autorretrato descrevendo as mãos, que representam, frequentemente, a força e o trabalho. No caso do poema, é destacada a sua fraqueza / fragilidade (“sem força” – v. 5) e, logo de seguida, são descritas como “Tão paradas e frias e mortas” (polissíndeto e tripla adjetivação), enfatizando a sua degradação e frieza. O terceiro verso foca-se no coração, que perdeu o seu vigor e os sentimentos, pois o «eu» observa-o e constata que está escondido: “Eu não tinha este coração / Que nem se mostra.”

                Na terceira quadra, o sujeito lírico revela que não se apercebeu da ocorrência da mudança ao longo dos anos: “Eu não dei por essa mudança”. Que mudança foi essa? “Tão simples, tão certa, tão fácil.”. A tripla adjetivação, a anáfora e a reiteração do advérbio «tão» reforçam o caráter da transitoriedade, que ocorreu tanto física quanto interiormente. A mudança ocorreu de forma rápida e cruel.

                Nos derradeiros dois versos, está presente uma metáfora e uma interrogação em forma de discurso direto, anunciado pelos dois pontos e pelo travessão: o espelho representa um tempo passado, onde as feições eram outras e marcavam uma outra idade, e a face é o reflexo da passagem do tempo e da velhice, em suma, do decurso da vida. O último verso sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a essência do «eu» lírico se perdeu?

                Em suma, Cecília Meireles questiona, neste texto, a mudança na vida do ser humano decorrente da passagem do tempo no sentido do envelhecimento. Os anos passam, o aspeto físico das pessoas altera-se, as doenças surgem, as limitações físicas acentuam-se e tudo isso se reflete na parte psicológica.

                A velhice torna-se visível na degeneração do corpo, no sentido da vida para a morte: a mão que perde a força, se torna fria e morta.

 
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