Português: 19/03/23

domingo, 19 de março de 2023

Análise da Introdução de Amor de Perdição


Função da Introdução
 
Camilo Castelo Branco prepara o leitor e sobretudo a leitora para a história que vai contar. A voz que encontramos na Introdução não é a do narrador que narra a ação dos capítulos da novela, mas a do autor que nos fornece informações acerca das origens da história e das suas personagens.
 
Assim sendo, a Introdução funciona como uma apresentação da obra, como uma espécie de prólogo (note-se que, na primeira edição, de 1862, este texto introdutório surgia como um prefácio), visto que nela é sintetizada em linhas gerais a história que vai ser narrada (“Amou, perdeu-se, e morreu amando”) e o narrador-autor se esforça por lhe conferir credibilidade, levando o leitor a aderir emocionalmente ao seu relato.
 
 
Motivo subjacente à escrita da obra
 
            A similitude das situações vividas por Camilo Castelo Branco e Simão Botelho, seu tio, permite ao escritor denunciar a injustiça de que foi vítima ao ser preso pela relação adúltera com Ana Plácido e, em simultâneo, reivindicar o seu direito ao amor. Assim sendo, implicitamente, Camilo defende-se a si próprio.


Estrutura da Introdução
 
1.ª parte (do início até “Foi para a Índia em 17 de março de 1897): Relato da descoberta e consulta de um documento oficial e transcrição do seu conteúdo.
 
2.ª parte (de “Não seria fiar demasiadamente…” até ao final): Comentários do narrador e antecipação do conteúdo da novela.
 
 
Transcrição do assentamento da Cadeia da Relação
 
A Introdução inicia-se com a transcrição do registo (o assentamento) da entrada de Simão Botelho na Cadeia da Relação do Porto, que encontrou nos “livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto”.
 

Que dados encontramos no registo de entrada?

Nome completo da personagem: Simão António Botelho.

Estado civil: solteiro.

Profissão/Ocupação: estudante na Universidade de Coimbra.

Naturalidade: Lisboa.

Idade: 18 anos.

Filiação:

. Pai: Domingos José Correia Botelho.

. Mãe: Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco.

 
Objetivo da transcrição do documento
 
 A transcrição de um documento autêntico, oficial, que alude a uma pessoa real, permite ancorar a narração que se vai seguir numa base histórica, ou seja, confere-lhe veracidade/credibilidade, torna-a verídica ou, pelo menos, verosímil, aos olhos do leitor. Dito de outra forma, quer fazer-nos crer que os acontecimentos relatados na obra correspondem à vida de Simão Botelho, tio de Camilo Castelo Branco. Quando Camilo denuncia a sua situação de preso na cadeia, onde descobre informação sobre o seu tio, procura criar no leitor a ideia de que o que vai narrar se baseia em factos reais, daí as referências à descoberta do assentamento que documenta a entrada ali de Simão Botelho e a sua partida para o degredo em 17 de março de 1807.
 
– A transcrição de documentos e/ou a inclusão de notas de rodapé informativas enquanto forma de dar credibilidade, de conferir veracidade ao que é narrado, ocorre noutras passagens da novela (bem como noutras obras do escritor). Por exemplo, encontramos notas de rodapé no Capítulo I (com informações sobre os irmãos de Domingos Botelho) e na Conclusão (nomeadamente a data da morte da irmã predileta de Simão).
 
– A transcrição serve ainda para apresentar, desde já, Simão.
 
Por outro lado, as datas inscritas no registo permitem situar, temporalmente, a ação da novela no início do século XIX. A este propósito, há que saber que, na realidade, Simão Botelho não partiu para o degredo com 18 anos nem morreu, em alto mar, a caminho do exílio, como apresentado da obra. De facto, chegou a viver na Índia (há notícias da sua presença em Goa em 1808, por exemplo), o que indicia que alguns dos factos da novela não correspondem à realidade, antes foram adulterados por questões ficcionais (cf. Amor de Perdição, edição didática de Luís Amaro de Oliveira). De igual forma, o motivo que o levou à prisão não foi o homicídio de Baltasar.
 
 
Objetivo do narrador-autor ao folhear os livros
 
            O narrador, ao folhear os livros no cartório da prisão, desejava conhecer melhor a história do seu tio Simão Botelho, de quem tinha ouvido contar muitas histórias, desde criança, e que tinha estado preso na mesma cadeia que ele mesmo.

 
Narrador-autor
 
Ponto de vista
 
            O narrador adotará uma posição subjetiva face aos acontecimentos narrados, visto que, desde o início, não esconde a sua empatia relativamente a Simão, pelo facto de, por amor, aos 18 anos, ter sido obrigado a abandonar a sua família e o seu país, e por ser seu tio paterno, seu parente.

Sentimentos – Discurso emotivo
 
Num discurso emotivo, o narrador reflete sobre a vida de Simão, distinguindo nela duas fases: a primeira corresponde à descoberta do amor (“O arrebol dourado e escarlate na manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor naquela idade!”); a segunda cinge-se à dor e à desilusão que o amor causou (“E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!”).
 
Ao ler o assentamento da Cadeia da Relação, o narrador-autor comove-se profundamente, manifestando, entre outros, os seguintes sentimentos: amargura pela situação vivida por Simão; respeito pela personagem, nomeadamente pelos seus ideais; ódio (= indignação, revolta) relativamente à hipocrisia e conservadorismo de uma sociedade que tudo sacrifica em nome da sua honra.
 
Causas do estado de alma
 
            Camilo escreveu a novela enquanto estava preso na Cadeia da Relação do Porto, por ter cometido adultério com Ana Plácido. Assim sendo, ter-se-á identificado com a situação vivida pelo tio, Simão Botelho, que também foi preso em decorrência de um caso de amor, pelo que a mágoa que sente perante uma situação injusta, o respeito por aqueles que lutam pelo amor e o desprezo por uma sociedade hipócrita e retrógrada são aplicáveis também à sua pessoa.
 
Vozes
 
            Por um lado, na Introdução está presente a voz do narrador-autor, que refere pessoas e acontecimentos reais com mentalidade e objetividade. Por outro, identifica-se o narrador heterodiegético, que será o responsável pela dimensão ficcional da novela e que, além de narrar, faz sentir a sua presença também através de comentários, reflexões e juízos avaliativos, assumindo uma posição subjetiva.
 
Identificação com Simão
 
            O narrador identifica-se com Simão Botelho, quando, por exemplo, afirma que sentiu um “doloroso sobressalto”, “amargura e respeito” e “ódio” ao ler o registo de assentamento. Além disso, prevê que possa vir a ter dissabores, causados pelos “frios julgadores do coração”, no momento em que desmascarar a “falsa virtude” dos inimigos do amor. Refere-se, assim, aos seus próprios inimigos, que o “julgaram” e prenderam pela relação com Ana Plácido.
            Por outro lado, como já sabemos, Camilo estava preso na Cadeia da Relação pelo já referido caso de adultério com Ana Plácido, uma senhora casada, vivendo uma situação semelhante à do seu tio, que aí estivera igualmente encarcerado por homicídio. Assim sendo, de semelhança entre os dois existe a questão do encarceramento e do motivo do mesmo: o amor.
 
Linguagem e estilo
 
            Após a transcrição do documento, o narrador-autor dirige-se ao leitor e faz uma série de comentários, nos quais predomina uma linguagem emocional:

Frases curtas: “Dezoito anos!”; “É triste!”.

Frases exclamativas: sexto e sétimo parágrafos.

Repetições: “Dezoito anos!” (três vezes).

Metáforas: “arrebol dourado e escarlate da manhã da vida”.

Enumerações: “nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo”.

Vocabulário associado à ideia de infelicidade: “dó”, “triste”, “choraria”, “doloroso”, “amargura”.

Interrogação retórica: “[…] por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!”.

Reticências: traduzem hesitações do narrador.

Pronome indefinido “tudo” (“[…] irmãs, mãe, vida, tudo…”): retoma todos os elementos enumerados (catáfora) e amplifica a ideia da perda, que, por ser absoluta/total, se torna ainda mais dramática.

            Esta linguagem reflete o envolvimento emotivo do narrador na narrativa.

 
Interpelação ao narratário:
 
O narrador-autor dirige-se diretamente ao “leitor” e à “leitora”, que constituem o narratário da obra, procurando despertar o seu interesse para a história que vai narrar.
 
O assentamento transcrito serve, além do já referido, para despertar a curiosidade e, principalmente, a piedade do leitor e apelar à sua simpatia para com Simão, acreditando que não ficaria indiferente à tragédia de Simão e de Teresa: “Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó”.
 
Deste modo, entre toda a informação apresentada na Introdução, o narrador-autor enfatiza os seguintes dados relativos para sensibilizar o leitor perante o destino de Simão: a sua juventude, a inocência do primeiro amor, a pena a que foi condenado (o degredo), a separação definitiva da família, a falta de liberdade. E fá-lo socorrendo-se de um discurso pautado pela subjetividade e pela emoção (atente-se na pontuação emotiva), o que pode indiciar o seu envolvimento na história, ao mesmo tempo que procura envolver também o leitor.
 
Por isso, dirige-se primeiro ao leitor, no sentido geral (“Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor…”), ao leitor do sexo masculino (“O leitor decerto se compungia…”) e, por último, à leitora (“e a leitora…”).
 
Apesar dessa referência ao leitor, o narratário que visa é a leitora. O narrador tem a noção de que o homem reagiria à história que irá contar de forma diferente da mulher, por isso prevê reações diferentes: “O leitor decerto se compungia”; “e a leitora […] choraria!”.
 
A leitora é caracterizada como uma figura bondosa e piedosa (“a criatura mais bem formada das branduras da piedade”) e solidária com os desafortunados (“amiga de todos os infelizes”) e que choraria, se comoveria, pois a história de amor entre Teresa e Simão contém todos os ingredientes necessários à comoção de quem a ler. Dado que, na sua ótica, as leitoras eram mais sensíveis, dirige-se sobretudo a elas, dando a entender que a história as comoverá muito.
 
Esta estratégia, por um lado, prepara os leitores para a narrativa que irão ler e, por outro, é uma forma de o narrador procurar captar a sua empatia com o protagonista. Afinal, trata-se de uma história triste: a história de um jovem – Simão Botelho – que perdeu tudo por amor: “honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida”.
 
E qual é a causa desta desgraça? O amor: “… tudo, por amor da primeira mulher…”. É a absolutização do amor: o sentimento amoroso é tudo e está acima de tudo.
 
 
“Amou, perdeu-se, e morreu amando”
 
            Esta frase resume a estrutura tripartida da história de amor de Simão:
 
Introdução: Simão “amou, isto é, apaixonou-se por Teresa, e foi correspondido.
 
Desenvolvimento: Simão cometeu um homicídio e “perdeu-se por amor”.
 
Conclusão: “e morreu amando” – deixou-se morrer pelo seu amor impossível por Teresa.
 
 
Linhas estruturantes da novela
 
            A Introdução antecipa algumas das linhas estruturantes da obra, como, por exemplo, as seguintes:

o amor-paixão: este é o tema da novela que vai ser narrada e que está sintetizado na frase “Amou, perdeu-se, e morreu amando”;

o herói romântico: Simão é o protagonista que perdeu tudo por amor, um herói romântico;

a sugestão biográfica: há semelhanças entre Simão e o narrador, cuja figura, por sua vez, se confunde com a do próprio autor (preso, tal como Simão, por amor e na cadeia da Relação do Porto);

o caráter memorialístico da obra: o narrador assume-se como alguém que relata as memórias de uma história cujo protagonista é verídico e seu parente;

a crónica da mudança social: Simão representa a mudança da sociedade, que assenta na noção de liberdade e no valor do indivíduo e que se opõe a uma sociedade antiga, assente na falsa virtude, como Camilo assinala no final da Introdução.

 
 
Crítica
 
            No final da Introdução, o narrador-autor afirma que a leitura do registo de entrada de Simão na prisão lhe despertou o ódio (“Ódio, sim…”), a indignação (“o doloroso sobressalto”) e a amargura (“e lidas com amargura”) perante a injustiça de que o protagonista da obra e Teresa tinham sido vítimas.

            Aqueles que se opuseram ao amor (entre ambos) são apelidados de “frios jugadores do coração”), dado que se mostraram insensíveis perante os projetos de felicidade de Simão e Teresa.

            No entanto, esta crítica não se restringe ao contexto da novela; de facto, estende-se e dirige-se sobretudo a todos aqueles que, possuidores de uma falsa virtude, se tornam bárbaros pela defesa da sua honra: “A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude dos homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.” Deste modo, o narrador assume-se como um narrador judicativo.

            É possível que esta crítica suscitada pelo amor de Simão e Teresa tenha sido espoletada pelo caso pessoal de Camilo Castelo Branco. Que semelhanças existem entre as duas situações? Simão foi julgado por causa do amor por Teresa (em virtude do qual assassinou Baltasar Coutinho) e preso na Cadeia da Relação do Porto; Camilo foi igualmente levado a julgamento por amor, isto é, por causa da relação amorosa que mantinha com Ana Plácido, uma mulher casada, e esteve preso no mesmo local. Por outro lado, o narrador chama a atenção para a injustiça que constitui a condenação do seu tio Simão, sugerindo, assim, a injustiça da sua própria condenação e da de Ana Plácido. Por último, apela à comiseração do leitor para a história que vai narrar e, indiretamente, para a sua própria história (“Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados de minha vida.”).

Frei Luís de Sousa - Ato III, Cenas I, IV e XI


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