O assunto do soneto é simples: o sujeito poético, certo dia, viu a mulher amada a chorar, por isso ele mesmo subitamente começou também a verter lágrimas. Logo após esta descrição, que ocupa as duas quadras, no primeiro terceto, interpreta o pranto da mulher como uma manifestação de benevolência para com ele próprio, todavia não tem a coragem de acreditar nisso, visto que, se se provasse ser verdade, correria o risco de enlouquecer. No segundo terceto, o poeta, dissociando-se do sujeito lírico, chama a atenção do leitor (“Olhai”) para o poder sobrenatural de Amor, dado que é capaz de gerar lágrimas a partir de lágrimas. No primeiro caso, o choro é apenas sinal de compaixão, enquanto, no segundo, é sinónimo de uma felicidade tanto imortal quanto ilusória.
quinta-feira, 17 de julho de 2025
Análise do poema "Amor, que o gesto humano n’alma escreve", de Camões
sexta-feira, 2 de maio de 2025
"Amor, co'a esperança já perdida", análise do poema de Camões
Este soneto, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, e versos decassilábicos sáficos (vv. 8 e 10) e heroicos (os restantes), aborda o tópico navigium amoris, herdado dos poetas gregos e latinos, ou seja, o amor – personificado enquanto divindade – é como um mar tempestuoso, o mar das paixões amorosas, em que se debate o barco que simboliza o amante.
O «eu» poético dirige uma apóstrofe ao Amor personificado, comunicando-lhe ter visitado o seu templo depois de ter perdido a esperança por ter ficado sem o seu amor. Segundo Faria e Sousa, Camões cantou as esperanças de duas formas: “la primera por las finezas de sus amores que dulcemente cantava; la segunda la de sus cantos celebrando la Patria y los Heroes della”. Neste soneto, o poeta recorre à renuntiatio amoris como motivo principal, construída sobre a metáfora do naufrágio amoroso. A primeira quadra versa precisamente sobre a representação do motivo do ex-voto,isto é, o sofrimento amoroso é comparado a uma tempestade da qual o marinheiro foi salvo e, por isso, leva as suas oferendas ao templo como agradecimento à divindade que o salvou. A fonte de inspiração de Camões foi a ode 5 do livro I de Horácio. Por outro lado, além deste soneto, ele aborda o mesmo tópico noutros poemas, como, por exemplo, “Como quando do mar tempestuoso”. Camões, neste soneto, apresenta a oferta do ex-voto não no formato de roupas, mas sim a própria vida. Por outro lado, se Horácio e Garcilaso, nos seus poemas, agradecem por ainda estarem vivos e livres desse amor, o poeta português doa a sua “alma, vida e esperança”, lamentando o facto de ainda estar vivo, e queixando-se da privação desse amor.
Apesar do texto fixado por Costa Pimpão apresentar o termo «soberano» no segundo verso, as fontes manuscritas trazem «sagrado», divergência que é entendida por alguns estudiosos como uma correção imposta pela censura, desde logo porque não é o único caso em que aquela modificou o texto de um poema camoniano. De facto, a censura foi uma prática tradicional da Igreja, que, na luta contra a heresia, proibia a publicação de termos pouco ortodoxos, como, por exemplo, tratar como «sagrado» o templo do Amor. Sendo exclusivamente reservado ao uso religioso, esta palavra pertence à lista de vocábulos que foram objeto de censura.
O «eu» poético – aquele que ama – deposita a alma, a vida e a esperança mo templo do Amor, em vez das oferendas comumente dadas aos deuses pelos náufragos como forma de agradecimento. Regra geral, os náufragos seguiam até ao templo dos deuses para agradecer o facto de ainda estarem vivos, porém Camões atua de forma inversa, isto é, coloca o sujeito poético a deslocar-se ao templo para protestar o facto de ainda estar vivo e questiona o desejo de vingança do próprio Amor, que é percebido como entidade hostil, chegando mesmo a afirmar que a maior vingança seria deixá-lo vivo a chorar do que tirar-lhe a vida: “nelas podes tomar de mim vingança; / e se inda não estás de mim vingado, / contenta-te com as lágrimas que choro.” (vv. 12-14).
O sujeito lírico põe a sua vida em vez das oferendas habitualmente feitas, porque já se considerava morto para as pretensões do mundo, em particular as amorosas, ou porque desejava morrer. O nome «vestidos» (v. 4) alude ao facto de o náufrago, depois de escapar ao perigo, pendurar as vestes e outros despojos do naufrágio, como ex-voto, na parede do tempo do deus invocado durante a tempestade em alto mar. Os «vestidos» eram os principais testemunhos de um naufrágio, que eram colocados no templo. Esta passagem do soneto forma uma imagética associada ao tópico do naufrágio amoroso.
A imagem do templo do Amor, presente na primeira quadra, pode assumir três formas diferentes. A mais simples é o templo como igreja, que encontramos, por exemplo, em Malatesta Malatesi. Noutra, templo é usado como metáfora do corpo, nomeadamente da pessoa amada, como sucede com Pietro Bembo ou Bernardo Capello, que assinala as semelhanças entre o templo do Amor e o rosto da mulher amada: as portas são os lábios; o teto é o cabelo louro, que cobre paredes de mármore brancas e vermelhas, isto é, a face; o grande tesouro são as próprias tranças de ouro. Por vezes, o templo refere-se ao coração do amante, dado que guarda o culto e a memória da imagem amada.
Nos dois versos iniciais da segunda quadra, o «eu» poético questiona Amor, perguntando-lhe que mais poderá querer dele, depois de ter destruído toda a glória que alcançara, isto é, o privilégio de ter vivido um amor sublime. O facto de poder desfrutar, ou não, deste amor está no poder da divindade. No momento em que decide retirá-lo, é considerado pelo que ama como um tirano. Os dois versos seguintes, por meio da metáfora e do oximoro, apresentam a recusa do sujeito lírico em “tornar a entrar onde não há saída”, ou seja, num caminho sem saída.
O verso 9 apresenta uma enumeração de três nomes: «alma», «vida» e «esperança», dois dos quais se encontram no primeiro («esperança») e no quarto («vida») da primeira quadra. Esses três nomes designam os «despojos», os restos ou fragmentos do passado. Na prática, os versos 9 e 10 patenteiam o jogo dialético, bem característico de Camões, entre o bem passado (“de meu bem passado”) e o mal presente. Esse bem durou “enquanto quis aquela que eu adoro.” (v. 11), ou seja, enquanto lhe correspondeu amorosamente?
O segundo terceto constitui o clímax do soneto. O sujeito poético, depois de ter oferecido a sua alma, vida e esperança, acaba oferecendo as suas próprias lágrimas – o seu sofrimento, a sua mágoa, a sua dor –, que são para ele mais dolorosas do que a própria morte. Atente-se no recurso ao poliptoto (figura de estilo que faz a alteração flexional de uma parte do corpo da palavra) de “mim vingança” / “de mim vingado”. Note-se que o Amor é representado, nesta composição poética, como uma entidade mítica caracterizada como omnipresente e possuidora de uma natureza vingativa (“destruída / me tens a glória toda que alcancei.” – vv. 5-6; “podes tomar de mim vingança” – v. 12; “não estás de mim vingado” – v. 13). Por outro lado, o texto desenvolve-se num crescendo: nas duas quadras, os verbos encontram-se maioritariamente no passado (pretérito perfeito: «visitei», «passei», «pus»), enquanto os tercetos começam e terminam com os verbos no presente («Vês» e «choro»), o que significa que o futuro está excluído, pois o sujeito poético não consegue libertar-se dessa prisão do Amor, prefere a morte e, portanto, não é capaz de se projetar num futuro.
Ainda relativamente ao segundo terceto, nomeadamente o verso 12, focado no tema da vingança não é caso único na obra camoniana, onde aquele que ama, tendo perdido a esperança, afirma preferir morrer a viver no seu tormento de amor. É o que sucede, por exemplo, no soneto “Se algu’hora em vós a piedade”, no qual Camões declara o seguinte: “tomarão tristes lágrimas vingança / nos olhos de quem fostes mantimento. // E assim darei vida a meu tormento; / que, enfim, cá me achará minha lembrança / sepultado no vosso esquecimento.” Note-se que Camões, além de usar nomes como «vingança», culmina o soneto com o termo «sepultado», indiciando novamente que a morte é a única fonte de liberdade.
sábado, 29 de março de 2025
Análise da cantiga "Bem sabedes, senhor rei", de Gil Peres Conde
Esta cantiga de refrão em cobras singulares, composta por Gil Peres Conde, é constituída por três sétimas de rima cruzada e interpolada (ABABCAC) de versos em redondilha maior. Ela faz parte de um conjunto de oito cantigas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, sendo muitas delas dirigidas diretamente ao rei e que têm evidentes ligações entre si e que, no seu conjunto, formam uma sequência biográfica.
Na Idade Média, o poder estava centrado, respetivamente, na Igreja, nos reis e na nobreza. Comandada pelo Papa e pelos seus representantes (cardeais, arcebispos e bispos espalhados pela Europa), a Igreja tentava manipular os reinos a seu favor através da censura, regulações e excomunhões. Os reis e nobres, por sua vez, exerciam o poder local arregimentado pelas relações de vassalagem entre suserano e vassalo. Neste contexto, surgiram os chamados escárnios e chufas, ou seja, críticas direcionadas a uma pessoa ou a grupos de pessoas, seja de forma velada, como nas cantigas de escárnio, seja de forma aberta, como nas cantigas de maldizer.
Gil Peres Conde é natural de Portugal, tendo estado ativo nas cortes de Afonso X e de Sancho IV de Castela na década de central e finais do século XIII. O trovador tornou-se célebre por ser um dos mais, senão o mais mordaz, nas suas críticas sobre o rei de Castela, que o exilou entre cerca de 1269 e 1286, talvez o ano da sua morte. Quase de certeza, pertencia à alta nobreza, no entanto perdeu o estatuto de «ricomem», ou rico-homem, quando foi exilado em Castela, devido à sua discordância relativamente à deposição de D. Sancho II, tornando-se um mero infanção (antigo título de nobreza inferior ao de rico-homem; escudeiro fidalgo). Gozava, contudo, de algum prestígio, ratificado pelas mercês recebidas do rei, o que mostra uma certa proximidade ao monarca, ainda que crítica. A discordância entre o trovador e o rei é intensificada por dois motivos principais: o poeta ter raízes portuguesas e servir um rei castelhano; e o trovador não receber do rei de Castela os soldos e doações devidas pelos serviços de guerra. As seis composições de Gil Peres Conde presentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional documentam o tema e exemplificam essa tensão entre suserano e vassalo.
O trovador dirige-se ao rei por meio de uma apóstrofe (“senhor rei”) – provavelmente tratar-se-á de D. Afonso de Castela, que ele servia desde 1249 e que buscou exílio nesse reino, saindo de Portugal depois de Afonso III regressar de Bolonha, com o aval do belicoso Papa Inocêncio IV, para depor seu irmão, então monarca de Portugal, correspondendo ao facto histórico de muitos partidários de D. Sancho II terem sido forçados a refugiar-se noutros reinos depois da sua derrota – para mostrar o seu descontentamento em relação à ingratidão do rei. Qual a razão desse descontentamento? O trovador sempre foi leal ao rei (“que sempre vos guardei”) e sempre o serviu “quer a pé quer de cavalo”, porém jamais foi recompensado por isso (“sen voss’haver e sem dõa”). Porém, ele admite, de imediato, uma falha: não esteve com o monarca em boa hora (“mais atanto vos errei: / nom fui vosco em hora bõa”). Ou seja, no refrão, continuando a dirigir-se ao rei diretamente, conclui, de forma irónica, que se tinha colocado ao seu serviço numa hora menos feliz.
No início da segunda cobla, o «eu» enumera os locais em que serviu o soberano: em Campou (provavelmente Aguilar de Campoo, localidade situada a norte de Carrión de los Condes, entre a Meseta e o mar Cantábrico), em Olmedo (cidade do sul da província de Valladolid), em Badalhou (Badajoz, cidade da Extremadura espanhola, próxima da fronteira portuguesa de Elvas) e Toledo (cidade e província de Castela – La Mancha, na margem direita do Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das primeiras cidades medievais da Península Ibérica, na qual o rei a quem se dirige foi coroado – “e outrossi em Toledo, / quand[o] i filhaste corõa”). A referência à coroação do monarca em Toledo, cidade onde D. Sandro IV foi coroado, na opinião de Graça Videira Lopes, implica que é a este soberano que o trovador se dirige nesta cantiga (já que o seu pai, Afonso X, foi coroado em Sevilha).
Na terceira e última estrofe, o «eu» poético afirma que sempre protegeu muito bem o rei em todos os lugares onde andou: “Fostes mui ben aguardado / de mim sempre u vós andastes”. Note-se que a forma verbal «aguardar» é ambígua, pois pode significar «guardar» (proteger, no caso do rei) e «aguardar» (esperar). Quer isto dizer que o trovador guarda (o rei) e aguarda (o pagamento). Além disso, reforça a ideia da sua lealdade ao declarar que nunca recusou servir o rei e que este, por sua vez, nunca recusou os seus serviços. Vocábulos como «sempre», «mui», «nunca», «tanto» enfatizam a servidão leal do sujeito poético. E termina com um “mea culpa”, servil, como se estivesse pedindo uma recompensa pelos serviços prestados, mas não merecesse o favor (ironia), já que “non fui vosco em hora bõa”.
Nesta cantiga, o trovador relata os serviços prestados ao rei, enfatiza a sua lealdade, a sua servidão, mas finalizando sempre com o reconhecimento da sua culpa, da sua falha. Este estratagema permite que a crítica ao rei seja subtil: ao mesmo tempo que não ameaça a face do monarca, reconhecendo a sua falha, exprime a sua crítica à ingratidão real. Por outro lado, a presente composição poética mostra que a crítica ao poder real se fazia de modo implícito, provavelmente só compreendida pelos recetores da época, graças ao contexto situacional.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Análise da cantiga "A donzela de Biscaia", de Rui Pais de Ribela
Esta cantiga de cariz satírico, da autoria de Rui Pais de Ribela, é constituída por três coblas, formadas por um dístico seguido de refrão, com rima emparelhada e versos heptassílabos alternando com pentassílabos (no refrão).
A composição poética, de escárnio, visa uma jovem mulher, uma donzela, natural de Biscaia, um senhorio asturiano, cuja capital era Bilbao, da qual o trovador se queixa por se recusar a encontrar-se consigo: “ainda mi a preito saia / de noit’ou luar”, isto é, nunca saía ao encontro dele de noite, ao luar. Apesar disso, embora desprezado pela donzela, o trovador tenta encontrar estratégias para a possuir, recorrendo a jogos de linguagem.
Assim, no segundo terceto, volta a enfatizar a ideia de que ela o rejeita ou despreza, o que é recente, como se pode observar pela presença do advérbio de lugar «agora», por isso afirma esperar que nunca o procure, ou seja, a mulher pode acabar por se lhe render ou necessitar dele de alguma forma.
A terceira estrofe abre com uma anáfora com o verso inicial da anterior que reafirma o seu sentimento de amesquinhamento pelo facto de a donzela o rejeitar constantemente, no entanto mantém a expectativa de a encontrar, de noite, ao luar. Note-se que essa expectativa, por parte do trovador, de se encontrar com a mulher é expressa no refrão, especificamente da segunda e da terceira coblas.
As referências à noite e ao luar importam para a cantiga um tom malicioso, pois o encontro desejado entre ambos teria lugar nessa altura do dia, propícia a encontros amorosos mais íntimos e recatados, afastados dos olhares alheios. Ou seja, o «eu» poético desdenha da “donzela de Biscaia” por não o querer e confessa o seu desejo de a encontrar de noite ou ao luar.
domingo, 23 de março de 2025
Análise da cantiga "A Dona Maria há soidade"
Desta cantiga de maldizer, de Lopo Lias, apenas nos chegou uma estrofe, constituída por uma rubrica e uma sextilha. De acordo com a referida epígrafe, a composição poética debruça-se sobre uma mulher casada adúltera, pois “havia preço” com um homem chamado Franco.
Os dois versos iniciais, exatamente iguais entre si, facto que evidencia a dificuldade de arrumação dos que sobreviveram, que é meramente conjetural, identificam, nomeando-a, o alvo da sátira: Dona Maria, que está cheia de saudade porque perdeu um jogral. A mulher elogiava-o (“dizendo del bem”), porém ele não correspondeu (“e el nom achou / que nenhu preito del fosse mover”), mantendo-se indiferente aos avanços dela. Deste modo, D. Maria nada obteve do jogral – “nem bem nem mal” –, o que acentua essa noção da indiferença masculina e, por outro lado, a deixa profundamente triste.
segunda-feira, 17 de março de 2025
Análise da cantiga "Vosso pai na rua", de João de Gaia
Esta cantiga de seguir contém duas rubricas, uma anterior e outra posterior. Antes de mais, convém esclarecer o que é uma cantiga de seguir: é uma cantiga que «segue», isto é, que toma como base, uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.
A rubrica anterior faz referência a uma cantiga de vilão, ou seja, um poema que satiriza um vilão, uma personagem de baixa condição social (“Diz ua cantiga de vilão”), concretamente a uma passagem da mesma, que faz referência a um “corpo probo” (corpo honrado e virtuoso) que dança aos pés de uma torre. Tratar-se-á de mero momento narrativo ou de uma crítica à tentativa de a figura que dança (um vilão?) se comportar de maneira nobre ou refinada, ao dançar, algo que pode ser encarado como ridículo.
A segunda frase da citação da cantiga de vilão apostrofa um cavaleiro, procurando, através do apelo ao visualismo, chamar a sua atenção para o «cós», isto é, o corpo que dança. Terminada a citação, segue-se um nome que fica incompleto (“E Joam de…”), provavelmente o da figura satirizada pela cantiga de escárnio e maldizer de João de Gaia.
A rubrica posterior que acompanha o poema em análise fornece o contexto sobre a sua composição e o seu alvo, ou seja, esclarece a quem se destina a sátira e as circunstâncias que envolvem o vilão que é o foco da crítica.
Assim, a rubrica começa por explicar que a cantiga “seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos”, ou seja, o trovador utilizou (seguiu) a música e, como é referido na rubrica, o refrão de uma cantiga de vilão (citada de forma mais completa na rubrica que antecede a composição).
De seguida, clarifica o contexto em que João de Gaia o fez: tratava-se de ridicularizar um ex-vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis, a pedido do seu protetor, o bispo de Lisboa: “E feze-a a um vilão que foi alfaiate do bispo Dom Domingos jardo de Lixbôa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant’el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de San Nicolau e chamaram-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.”
Domingos Anes Jardo foi o bispo de Lisboa entre 1289 e 1293, ano da sua morte. Antes de assumir o bispado da capital do reino, D. Domingos foi bispo de Évora, e provavelmente perceptor de D. Dinis, de quem se tornou, posteriormente, chanceler-mor. Além disso, fundou um hospital para os pobres em Lisboa, na freguesia de S. Bartolomeu, em 1284, e terá desempenhado também um papel importante na fundação da universidade portuguesa. Era natural de Jardo, lugar nos arredores de Lisboa, entre as atuais freguesias de Agualva e Cacém.
O vilão, por sua vez, inicialmente chamava-se Vicente Domingues; depois o bispo alterou-o para Joam Fernandes e, por último, após D. Dinis o ter ordenado cavaleiro, para Joam Fernandes de Sam Nicolao. Em rigor, nada se sabe sobre esta figura burguesa lisboeta, alfaiate do bispo D. Domingos Jardo, e feito cavaleiro por D. Dinis. Um indivíduo de nome João Fernandes, escudeiro, fazia parte da casa do rei, enquanto infante, mas, tendo em conta as informações da rubrica acerca da mudança de nome (de Vicente Domingues para João Fernandes, não deverá tratar-se da mesma personagem.
A cantiga de João de Gaia, feita em «honra» do antigo alfaiate, é extremamente irónica: como mandavam as regras deste tipo de cantiga de seguir, o refrão deveria assumir outro sentido em contacto com estrofes diferentes. Assim, as expressões «em cós» e «cavaleiro», que na cantiga original aludiriam a uma qualquer cena de sedução feminina, passam a aludir, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado (cavaleiro).
O verso inicial da cantiga de João de Gaia (“Vosso pai na rua”) alude à família do visado, claramente um vilão (filho de um homem “da rua”). O segundo verso (“ant’a porta sua”) remete para o facto de os alfaiates trabalharem, regra geral, na soleira das suas casas. O refrão (“Vede-lo cós, ai cavaleiro!”), como já foi referido, alude, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado pela sátira (cavaleiro).
quarta-feira, 5 de março de 2025
Análise da cantiga "Airas Moniz, o zevrom", de Lopo Lias
Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sétimas (um terceto seguido do refrão em forma de quadra) pertence ao ciclo de 12 composições poéticas que Lopo Lias dedicou aos quatro infanções de Lemos, a primeira das quais se intitula “Da esteira vermelha cantarei”.
O poema identifica o alvo da sátira de forma “descoberta”, isto é, nomeando-o: “Airas Moniz”. Não obstante, trata-se de uma figura de difícil identificação, já que não se sabe nada dele e o nome era bastante comum na época. Uma hipótese levantada passa por considerar que se trata do trovador Airas Moniz de Asma, aparentemente contemporâneo de D. Lopo Lias, porém trata-se, de facto, de mera conjetura. Ainda no verso 11, o sujeito poético apelida-o de «zevrom» (de «zevro», cavalo selvagem), portanto caracteriza-o como um indivíduo bruto e selvagem. De facto, «zevrão» é o aumentativo disfémico cde «zevro», onagro, cavalo selvagem, conhecido pela sua grande velocidade. Em sentido figurado, significa “homem grosseiro, bruto, impetuoso, asselvajado”, tudo qualificativos que se aplicam na perfeição ao alvo do texto. Por outro lado, o indivíduo monta a cavalo e usa uma almofada (“selegom”) a servir de sela, e o trovador parece aconselhá-lo a abandonar esse “selegom” e a voltar a usar a albarda reles, ou seja, aconselha-o a passar de cavalo para burro. Dessa forma, ficará mais confortável.
De seguida, aconselha também a que estique a correia que envolve o peito do animal (“Tolhede-lh’o peitoral” – v. 8) e aperte a correia que envolve as ancas do bicho, para segurar o aparelho. Por outro lado, Airas Moniz poderá praticar o bafordo, isto é, exercitar as suas armas, e o “tavlado”, ou seja, quebrar um alvo de madeira, a finalidade do jogo do “tavlado” ou “tavolado”.
A cantiga, em suma, satiriza os adereços usados pelo infanção, nomeadamente a sua sela decrépita, sinal de pobreza ou avareza, bem como do seu caráter selvagem.