Português: Alexandre O'Neill
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domingo, 25 de junho de 2023

Obras de Alexandre O'Neill


 Obras de Alexandre O’Neill
 
Poesia
 

1948 – A Ampola Miraculosa

1951 – Tempo de Fantasmas, Cadernos de Poesia, n.º 11

1958 – No Reino da Dinamarca

1960 – Abandono Vigiado

1962 – Poemas com Endereço

1965 – Feira Cabisbaixa

1969 – De Outubro na Ombreira

1972 – Entre a Cortina e a Vidraça

1979 – A Saca de Orelhas

1981 – As Horas Já de Números Vestidas (em Poesias Completas – 1951-1981)

1983 – Dezanove Poemas (em Poesias Completas – 1951-1983)

 
 
Antologias
 

1967 – No Reino da DinamarcaObra Poética (1951-1965), 2.ª edição

1974 – No Reino da Dinamarca (1951-1969), 3.ª edição

1981 – Poesias Completas (1951-1981)

1983 – Poesias Completas (1951-1983)

1986 – O Princípio de Utopia

2000 – Poesias Completas

2005 – Poemas Dispersos

 
 
Prosa
 

1970 – As Andorinhas não têm Restaurante

1980 – Uma Coisa em Forma de Assim

 
 
Filmes (enquanto guionista)
 

1962 – Dom Roberto

1963 – Pássaros de Asas Cortadas

1967 – Sete Balas para Selma

1969 – Águas Vivas

1970 – A Grande Roda

1975 – Schweik na II Guerra Mundial (TV)

1976 – Cantigamente (3 episódios da série)

1978 – Nós por cá Todos Bem

1979 – Ninguém (TV)

1979 – Lisboa (TV)

terça-feira, 9 de maio de 2023

«”Albertina” ou “O inseto-insulto” ou “O quotidiano recebido como mosca”», de Alexandre O'Neill


             Este poema é constituído por oito estrofes: uma oitava, três tercetos, duas quadras e dois monósticos, com rima emparelhada e cruzada e métrica irregular.

            O seu tema é a arte poética, dando-nos conta de um sujeito poético que é poeta e discorre sobre o processo de criação poética, a inspiração para escrever. Se observarmos o título, bastante extenso para o que é usual em textos poéticos, observamos que se relaciona inequivocamente com o tema da composição: a criação poética e a inspiração.

            O sujeito poético abre o poema apresentando-nos o poeta – de forma humorística – sozinho (atente-se na reiteração da ideia) e à espera. De quê? O «eu» espera por “um minuto que seja de beleza” (v. 7), isto é, aguarda inspiração (para escrever). Essa espera está associada a uma certa expectativa, como é visível pela sua postura: “em abstração” (atente-se na alusão ao nariz e ao ato de dele tirar algo), com os cotovelos apoiados no tampo da mesa, com a cabeça voltada para baixo. A metáfora do verso 6 (“Onde o poeta é todo cotovelos”) intensifica a expectativa em que o «eu» poético está imerso e a demora em encontrar inspiração, um motivo para escrever, demora essa destacada pela referência ao nome “minutos” (repetido duas vezes). O último verso da primeira estrofe, uma metáfora (“o poeta é aos novelos”), iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», que exprime uma ideia de contraste com o que foi afirmado anteriormente, anuncia a insegurança e a indefinição que o caracterizam. Essa noção é desenvolvida na segunda estrofe, novamente anunciada pela mesma conjunção: o sujeito lírico sente-se inseguro e incapaz de dominar a «musa» (v. 10) que tantas vezes o inspirou de forma avassaladora: “aquela / Que tantas vezes arrastou pelos cabelos…” (metáfora). Recordemos que a musa era a divindade que, de acordo com a mitologia, presidia às artes e às letras, sendo a responsável pela inspiração dos poetas.

            A terceira estrofe coloca-nos perante uma nova figura: a mosca Albertina. Quem ou o que é ela? A mosca Albertina é um “inseto-insulto” (v. 13), isto é, algo que o atormenta, que compromete a já fraca inspiração do poeta. Antes, este tinha-a domesticada, ou seja, a inspiração surgia-lhe habitual e facilmente, porém, no presente, surge por sua iniciativa, “como um inseto-insulto, / Mas fingindo que o poeta a esperava…” (vv. 13-14). Recordemos que o nome Albertina, feminino de Alberto, deriva do vocábulo germânico “Adalbert”, resultado da junção de “adal” (nobre” e “berth” (ilustre, brilhante),que significava, portanto, “nobre ilustre, brilhante”.

            Por outro lado, Albertina possui uma dupla faceta: é inseto – mosca – e (quase) mulher. Na qualidade de mosca, ela incomoda o poeta, como os insetos incomodam os humanos, perturba-o, compromete a sua inspiração. “Albertina quer o poeta para si, / Quer sem versos o poeta.” (vv. 16-17). Enquanto mulher, ela sedu-lo, o que quer dizer que, em simultâneo, Albertina o afronta e seduz. E, apesar do apelo do sujeito poético para que ela o deixe em paz e, assim, permita que ele se inspire e escreva, mesmo que de forma imperfeita (“Que eu falhe neste papel” – v. 20), no “papel tão branco e insolente” – personificação, onde o poeta sabe que existe um verso belo que está, porém e de momento, ausente, pois falta-lhe a inspiração. O papel está “tão branco” (atente-se na intensificação sugerida pelo advérbio «tão»), porque a criatividade e a inspiração não surgem, logo o «eu» não cria, não escreve, e é “insolente” (personificação), ou seja, o papel é atrevido e desafia-o a escrever.

            O apelo intensifica-se no monóstico correspondente ao verso 22: “ – Albertina! eu quero um verso que não há!...”. No entanto, o inseto fica-lhe indiferente e, em vez de o inspirar, “Conjugal, provocante, moreno e azulado”, levanta voo, esvoaça por ali e aterra insultuosamente na folha de papel em branco. Atente-se na expressividade da quádrupla adjetivação do verso 23, que acentua a atitude provocatória de Albertina e sugere a existência de uma relação entre ambos marcada pela conjugalidade.

            Como consequência dessa atitude, que o leva a abstrair-se ainda mais da criação poética, o poeta “sai de chofre” (v. 27), isto é, repentinamente, e sente-se “desalmado”, ou seja, desinspirado, “por uns tempos” (v. 27).

            À semelhança do que sucede com vários outros poetas contemporâneos, Alexandre O’Neill reflete, neste poema, sobre a arte poética, só que neste caso estamos na presença de uma arte poética invulgar, dado que o ato de criação poética é aparentemente banalizado e vulgarizado, através do recurso a um tom humorístico que percorre todo o poema, da atitude do poeta e da forma como encara a inspiração.

            Deste modo, Alexandre O’Neill desconstrói humoristicamente, a imagem do poeta inspirado, desprovido das suas faculdades de criação poética e nega, em simultâneo, a ideia do poeta como um ser eleito, inspirado por natureza e produtor infindável e incansável de poesia.

            O processo é descrito num poema que podemos dividir em três momentos. O primeiro situa-se entre os versos 1 e 11, no qual o «eu» lírico retrata o poeta que reflete sobre o que escrever, esperando a inspiração, que tarda. O segundo abrange os versos 12 a 26 e neles é apresentada e caracterizada a mosca Albertina, que perturba o poeta, que a tenta repelir, em vão. O terceiro momento diz respeito ao último verso e retrata a “desistência” temporária do poeta, que abandona o espaço em que se encontra, desmotivado.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "O amor é o amor", de Alexandre O'Neill


             Este poema aborda a temática o amor, como o título indicia, em métrica irregular (que vai do verso dissílabo até ao decassílabo) e rima emparelhada e cruzada, com um verso branco ou solto (o oitavo).

            O amor é apresentado como algo intrínseco à natureza humana, algo absoluto e imaginativo, que oscila entre o mundo real e o onírico: “O amor é o amor – e depois?” – v. 1). Atente-sena repetição e interrogação presentes no verso 1, que mostram que o amor é algo natural na existência humana. Por seu turno, a repetição, no verso 3, da expressão «a imaginar» reforça a noção de que o amor é movido pela vertente emocional do ser humano.

            O «eu» poético está apaixonado e deseja o contacto físico com a pessoa amada (“O meu peito contra o teu peito, / Cortando o mar, cortando o ar”) por e com alguém que o faz sentir completo (“somos um? somos dois?”). Observe-se a expressividade da construção paralelística do verso 5, que realça o facto de o amor, para o sujeito poético, não possuir barreiras e ter uma força invencível, que é capaz de superar qualquer obstáculo, desafiando a própria natureza (representada, no verso, pelos elementos «mar» e «ar»).

            Por outro lado, o sujeito poético exalta o poder que o amor tem sobre si, distinguindo que, apesar de, fisicamente, haver dois corpos (“Na nossa carne estamos”), os seus espíritos unem-se num só (“somos um? somos dois?”). Para que este sentimento seja realizado, os amantes têm de ser livres e são-no(“Num leito / Há todo o espaço para amar.”). Atente-se na enumeração do verso 9, que realça a liberdade que existe entre o «eu» e o «tu» do poema.

            A fusão metafísica de ambos os espíritos apaixonados, depois da união física dos corpos, é perspetivada como o auge do relacionamento amoroso entre amos (“E trocamos – somos um? somos dois? / espírito e calor!” – vv. 10-11).

            Obedecendo a uma estrutura circular, o poema encerra com a repetição do verso que o inicia.
 

sábado, 11 de setembro de 2021

Análise de "Perfilados de medo"

             Este poema de Alexandre O’Neill está escrito na primeira pessoa do poema, remetendo assim para um universo alargado que inclui o sujeito poético, mas que está para além de si.

            Este «nós» vive num estado permanente de medo, desorientação e passividade, pois conformou-se com a situação, incapaz de reagir. Esse estado de espírito justifica-se pelo facto de haver forças que instilam o medo, o oprimem (“dentes oprimidos”) e perseguem (“pelo medo perseguido”).

            A primeira estrofe assenta na antítese entre medo e coragem. O «nós» apresenta-se «perfilado» de medo, contudo, ironicamente, agradece esse mesmo medo. Porquê? Esse sentimento pode ter um lado positivo, pois impedirá que se cometam atos corajosos de revolta, de insubordinação («loucura»), que poderiam acarretar consequências graves. Só deste modo se pode compreender o agradecimento pela existência do medo. Assim sendo, face ao medo, a coragem tem muito pouca valia.

            O oxímoro e a ironia do verso 4 são muito significativos: “e a vida sem viver é mais segura”. Estes recursos, por um lado, sugerem que a existência do «nós» é uma vida em que não lhe é permitido viver e ser livre; por outro lado, indiciam que uma existência sem decisões, sem riscos é mais segura para esse coletivo.

            A segunda estrofe veicula uma visão temporal tripartida: passado, presente e futuro. No presente, o nós, “Aventureiros já sem aventura”, combate fantasmas. Neste ato, procura recuperar um estado passado (“Aventureiros”, “do que fomos”) em que não vivia imerso no medo e pretende preparar um futuro em que viverá sem receio e com confiança e livre. Os “fantasmas” referidos no verso 7 simbolizam o medo sentido pelo «nós», mas, no verso 11, são o próprio «nós», ou seja, são as pessoas, pois não vivem a sua vida: o medo transformou-os em espectros que não têm existência consoante com o ser humano e os seus atos não têm consequências.

            Na terceira estrofe, o medo em silêncio, com angústia, transforma o «nós» em loucos, em fantasmas. Ele encontra-se “sem mais voz” e com o “coração nos dentes oprimido”. Ora, o coração é o espaço dos sentimentos e das emoções (a revolta, o desejo de liberdade, a coragem, etc.); estando «oprimido», tal significa que as pessoas estão silenciadas, não têm liberdade de expressão, não podem dizer o que sentem; assim sendo, de facto, não têm voz.

            A última estrofe apresenta o nós como um rebanho perseguido pelo medo, indiciando que se trata de um conjunto que perdeu a individualidade. Por outro lado, essas pessoas perderam o sentido da vida e, apesar de viverem em comunidade (“já vivemos tão juntos e tão sós”) cada um sente-se isolado.

            Outro recurso destacado no poema é a anáfora presente nos versos 1, 6 e 9 (“Perfilados de medo”), que reforça a ideia de que o «nós» vive «sem viver», devido ao medo; vive de forma mecânica, devido ao medo; vive-se a vida em silêncio, sem questionar a realidade que se «vive», devido ao medo. Em suma, as pessoas não vivem plenamente, devido (sempre) ao medo.

            A compreensão da mensagem do poema não pode ser desconectada do contexto em que foi produzido. Com efeito, ele surgiu pela primeira vez na obra Poemas com Endereço, publicada em 1962, isto é, em pleno regime ditatorial de Salazar – o Estado Novo, caracterizado por um ambiente de medo, perseguição e opressão que se abateu sobre o povo português, que viveu décadas sem liberdade, em constante medo e oprimido pelo tal regime.

            Em suma, o texto revela a oposição do poeta a uma forma de estar medrosa por parte dos portugueses, por isso podemos considerar que se trata de um panfleto contra o espírito conformado dos portugueses, que O’Neill abomina.

            Formalmente, o poema é um soneto constituído por 2 quadras e 2 tercetos, num total de 14 versos, todos decassilábicos. A rima é cruzada e emparelhada (de acordo com o esquema abab / baba / cdc / dcd), consoante (“loucura”/”segura”), pobre (“combatemos”/”seremos”) e rica (“voz”/”nós”).

domingo, 19 de abril de 2020

Análise de "Um adeus português"

Contextualização do poema

“Um adeus português” foi publicado originalmente em 1958, na obra No Reino da Dinamarca, e constitui uma crítica ao regime do Estado Novo r ao ambiente persecutório e controlador do Portugal dessa época.
A origem do poema foi explicada pelo próprio poeta. Assim, O’Neill ter-se-ia apaixonado por uma mulher francesa chamada Nora Mitrani e desejava ir a Paris encontrar-se com ela, porém elementos da sua família opunham-se à sua ida e meteram uma «cunha» junto da PIDE no sentido de lhe negarem o passaporte.
Deste modo, o poeta foi chamado à sede da polícia, onde o questionaram a propósito da razão da sua viagem a França e se conhecia a senhora Mitrani. O’Neill respondeu afirmativamente, tendo o inspetor que o interrogava retorquido o seguinte: “Se calhar V. quer ir, porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola.”. O poeta respondeu que Nora não era uma gaja e que não tinha cachola. Na sequência deste episódio, não conseguiu obter passaporte durante vários anos.
Quando Alexandre O’Neill pode, finalmente, ir ao seu encontro em Paris, já ela tinha falecido, vitimada pelo cancro, mas ficou a saber que Nora tinha lido o seu poema e ficado muito comovida com o mesmo.


Título

No título do poema, destacam-se duas palavras:
• o nome «adeus»: a despedida;
• o adjetivo «português»: o sentimento nacional.
O título anuncia o final de um amor e, em simultâneo, aponta para uma crítica ao modo de ser português.
De facto, não é a falta de amor que leva à separação dos apaixonados, mas a condição e a vivência no país.


Tema

O tema do poema é a inevitável despedida de dois amantes, de um amor que desde o início estava condenado à impossibilidade [é o tema do amor impossível ou impossibilitado], dado que os apaixonados pertencem a mundos diferentes e opostos – enquanto ela parte para longe, para a “cidade aventureira”, ele permanece limitado à pequenez burocrática e à “dorzinha quase vegetal” em que entretém a passagem do tempo.
Além do sofrimento motivado pela separação dos amantes, destaca-se o diagnóstico sobre Portugal e a maneira portuguesa de viver, resignada ao lento apodrecimento dos afetos, sob o efeito de um mal-estar quase nauseante que contagia, aliás, toda a visão que esta poesia tem do país.

Jornal Público

Além deste tema central, outros estão presentes na composição poética:
▪ o tema da separação e do adeus;
▪ o tema (da imagem) de Portugal;
▪ o tema da revolta e da denúncia;
▪ o tema de um país outro.


Estrutura interna

1.ª parte (vv. 1-4): O sujeito poético interpela o «tu» (a mulher amada), indiciando já a despedida e a separação iminentes entre ambos.

▪ O sujeito poético interpela, ao longo da composição, um «tu», como se pode comprovar pela ocorrência de formas de segunda pessoa:
» pronomes: «tu» (v. 5), «te» (v. 52), «ti» (v. 55);
» determinantes: «teus» (v. 1), «teu» (v. 51);
» formas verbais: «podias» (v. 5), «mereces» (v. 35), «és» (v. 41), etc.

▪ Apresentação do «tu» / da mulher:
» possui «olhos altamente perigosos»: olhar muito sedutor, daí perigoso;
» tem uma relação de amor com o sujeito poético (“vigora ainda o mais rigoroso amor”);
» esse amor e a mulher são puros, ainda que marcados pela sensualidade da «cama»;
» uma sombra ameaça esse amor, a de uma «angústia já purificada».
Esta mulher, o «tu» a quem os sujeito poético se dirige, é aquela que ele ama, mas vai partir de Portugal para outro país, pois não se enquadra no ambiente que se vive cá, marcado pela opressão e podridão, pela repressão policial, pela hipocrisia, pela mesquinhez. É alguém que não se identifica com a monotonia e a ausência de liberdade que asfixia.

▪ A primeira estrofe constitui, pois, a abertura do diálogo (simulado) entre o sujeito poético e o «tu», do qual sabemos muito pouco, além do atrás referido.

▪ A relação entre os dois é muito próxima, proximidade essa que é pontuada pelo uso recorrente de formas de segunda pessoa do singular. Sabemos também que é uma história de amor (“nos teus olhos (…) vigora ainda o mais rigoroso amor”) e que esse sentimento parece condenado à partida: o advérbio «assim» possui um valor temporal e aspetual que antecipa o fim da relação (na medida em que se institui a oposição entre «ainda» e «já não»). Por outro lado, a relação é intensa, mas acaba, inevitavelmente, com o afastamento e a despedida dos dois.

▪ No poema, está presente também um «nós», marcado pelas formas de 1.ª pessoa do plural («apodrecemos», «giramos», «nossa»). No entanto, o «nós» que surge no poema não é sempre o mesmo. Num caso, é o resultado do «eu» + o «tu»; no outro, é o resultado da junção do «eu» com ?.


2.ª parte (vv. 5-49): O sujeito poético apresenta as razões que impedem o amor entre si e a sua amada.

▪ As seis estrofes seguintes (2.ª à 7.ª) constituem um bloco único, ligado pela anáfora («Não») que inicia cada uma delas. O advérbio de negação contribui para a simulação do diálogo, nomeadamente nas segunda e sexta estrofes, em que se estabelece um jogo de polifonia: a ocorrência do advérbio faz ouvir a voz do «tu» simulado, como interrogação total a que responde(ria) o advérbio (em posição inicial), ou apenas como hipótese, quando a ocorrência do advérbio marca a asserção negativa (“tu não podias ficar presa comigo” e “tu não mereces esta cidade”). Esquematicamente:

[eu podia ficar contigo?]                 [tu podias ficar comigo]
                                                    
Não                                tu não podias ficar comigo

▪ A segunda estrofe clarifica que o «tu» é efetivamente uma mulher, a partir da forma feminina do adjetivo («presa»). Ela não se enquadra no conjunto de situações elencadas e, por isso, tem de partir. A anáfora (iniciada pelo advérbio de negação «Não») mostra precisamente os motivos que tornam impossível o amor entre o sujeito poético e a mulher representada por «tu».

▪ A primeira dessas situações surge precisamente na segunda estrofe: ela não poderia ficar presa como ele (mas ele fica). A quê?
» À roda em que ele apodrece: a roda equivale a um círculo fechado e surge associada à forma verbal «apodreço».
» À pata ensanguentada:
. a pata e outros elementos evocam as touradas: o animal avança pelo túnel, ferido («vacila»): a pata ensanguentada (o touro), mugindo (a vaca), sugerindo dor.

▪ A anteposição do adjetivo ao nome em “uma velha dor” sugere a transição da dor (motivada pelo ferimento) para a dor (simbólica) de uma tourada (simbólica) [numa arena que é o mundo, a vida?].

▪ Assim, a roda em que o sujeito apodrece pode ser interpretada como a arena de uma tourada (real e simbólica). Note-se que a forma verbal «apodrecemos» se encontra num plural, isto é, a podridão afeta um coletivo e não apenas o eu.

▪ Os primeiros versos da terceira estrofe indiciam uma vida rotineira e monótona, feita de burocracia.

▪ Os versos seguintes desnudam a miséria, uma “miséria que sobe aos olhos”, indiciando um movimento (ou sensação) de vómito sugerido(a) pelo movimento ascendente denunciado pelos predicados verbais (“sobe aos olhos”, “vem às mãos”).

▪ A enumeração dos elementos repulsivos, culminando com “o modo funcionário de viver”, evoca a tradição poética neorrealista, de que serão expoentes a figura ou a relação com o “patrão Vasques”, de Bernardo Soares, o Coro dos Empregados da Câmara e Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca.

▪ Esta enumeração gradativa evolui dos aspetos positivos para os negativos, realçando o caráter opressivo da cidade.

▪ Na quarta estrofe, a «cama» simboliza o amor, um amor sensual, erótico, mas também marcado pela perspetiva de fim ou morte (“trânsito mortal”).

▪ O dia é “sórdido / canino / policial” (tripla adjetivação): estes adjetivos, juntamente com «mortal», denunciam o clima de perseguição política e policial e de repressão vivido na cidade. Por sua vez, o adjetivo «puríssima» sugere o caráter positivo da mudança que é necessária.

▪ Por outro lado, o dia, que nasce da madrugada, simboliza, ordinariamente, a abertura, o nascimento, e estaria associado à promessa e à pureza, porém, neste caso, corresponde à noite, isto é, ao fecho, à morte.

▪ A quinta estrofe denuncia os brandos costumes que caracterizam a sociedade portuguesa da época, aos quais a mulher não poderia ficar presa.

▪ A imagem da dor trazida pela mão é bastante significativa e está associada à imagem de trazer pela tela, como um cão. Esta passagem possui um valor irónico-caricatural: trazer a dor docemente pela mão, dor à portuguesa (os brandos costumes).

▪ Outra das razões pelas quais o amor é impossível surge na sexta estrofe e tem a ver com o facto de a mulher não merecer aquela cidade, caracterizada pela náusea, pela idiotia, pela morte e pelo absurdo.

▪ A sétima estrofe apresenta duas imagens diferentes de cidade. A mulher «pertence» a uma cidade (quase) ideal, caracterizada pela aventura, pelo amor, pelo comércio puro, uma cidade, em suma, onde existe liberdade e modos de vida alternativos.

▪ Já o sujeito poético vive numa cidade que asfixia, que prende, que oprime, uma cidade onde existe “a moeda falsa do bem e do mal”. Esta representa, metonimicamente, Portugal, que contrasta com a imagem da cidade ideal apresentada anteriormente.

▪ Nesta estrofe, estão presentes temas surrealistas, como o encontro, o acaso, o amor louco.

▪ Em suma, deste bloco de seis estrofes, as cinco primeiras apresentam uma imagem não poética de Portugal, enquanto a sexta (no conjunto do poema, a sétima) retrata um outro lugar alternativo. Esta imagem remete para dois espaços que correspondem a duas identidades nacionais e/ou dois espaços simbólicos (política e culturalmente):

Lisboa                                                        Paris
                                                             
Portugal                                                    França
                                                             
ditadura                                                    liberdade
                                                             
brandos costumes                                     alternativa

▪ Não esqueçamos a origem do poema: Nora Mitrani, francesa surrealista que O’Neill conhecera e Lisboa e por quem se apaixonara, parte da França; o poeta é impedido de se lhe juntar, pois a PIDE confisca-lhe o passaporte e ele, impossibilitado de sair do país, nunca mais a volta a ver, pois, entretanto, ela falece de cancro. No entanto, o que é significativo no poema não é propriamente uma leitura biográfica, antes passa pelo saborear a sua mensagem: de amor, de dor, de revolta e de utopia.


3.ª parte (vv. 50-55): Na última estrofe, assistimos à despedida e separação entre o sujeito e a sua amada.

▪ O sujeito poético despede-se da mulher amada (“digo-te adeus”), que vai partir (“o teu desaparecimento”), despedida essa que é marcada, simultaneamente, pela ternura e pela dor (“Nesta curva [símbolo da mudança de direção da relação entre os dois, isto é, da sua separação] tão terna e lancinante”).

▪ A separação [e a dor que lhe está associada], embora não tenha sido ainda concretizada, é sentida já como tal: “que vai ser que já é” (v. 53).

▪ É o momento do desaparecimento irremediável do amor – marcado pela partida da mulher – para além da curva da vida, um momento de dor e de frustração, comparado a um tropeço de ternura de um adolescente.

▪ Há uma certa circularidade no poema, com marcas de narratividade, dado que a separação é anunciada na 1.ª estrofe e retomada na última.


Crítica

Em suma, o poeta critica, ao longo deste poema, o ambiente vivido na época em Portugal:
▪ compara-o a uma tourada, um espetáculo sangrento, de dor e morte;
▪ critica o povo português por se conformar com a vida que tem (vv. 31-35 e 38-40) – conformismo;
▪ critica a repressão política do Estado Novo, bem evidente na referência ao medo, nos versos 23 a 29;
▪ critica a miséria e a burocracia (vv. 12-21);
▪ critica a podridão e a sordidez;
▪ critica o medo, o desespero e o policiamento.


Análise de "Autorretrato", de Alexandre O'Neill

Tema: o autorretrato do sujeito poético.


Estrutura interna

1.ª parte (vv. 1-4): Retrato físico do sujeito poético.

• Características físicas:
» moreno;
» cabelo negro (“cabelo asa de corvo”: metáfora);
» nariz mal feito (“nariguete”) acima de uma ferida;
» olhar triste;
» testa “iluminada”.

• A descrição física do sujeito poético insinua, desde logo, diversas características psicológicas:
» a cara revela angústia;
» a ferida denota desdém – é uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país – que não cessa;
» o olhar mostra tristeza.

• A ferida na cara, referida no verso 4, sugere uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país –, por parte do sujeito poético, que não cura. De facto, o facto de não estar cicatrizada pode querer dizer que essa atitude desdenhosa não cessa.


2.ª parte (vv. 5-8): Retrato psicológico-moral.

• Neste momento do poema, há uma tentativa de esboço de um retrato «moral»: “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).

• O verso 7 insinua que a sua vida não é exemplar, mas não chega a concretizar a que se refere e nada revela sobre si.

• O verso 8 pode ter um duplo entendimento [“(aqui, uma pequena frase censurada…)”]:
» autocensura por parte do poeta ou
» antecipação da censura por parte de outros (não podemos esquecer que o poema foi publicado em 1962, em plena vigência do Estado Novo): insinua que o que ia ser dito seria cortado pela censura salazarista.

• O retrato moral é breve, enigmático e pouco revelador sobre o “eu” poético, pois este apenas insinua que a sua vida não é exemplar: “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7). E, quando se preparava para revelar algo sobre si, autocensura-se ou antecipa a censura dos outros.

3.ª parte (vv. 9-4): Retrato ideológico-afetivo.

• O sujeito poético acredita no amor e envolve-se empenhadamente nele.

• A «ternura» que sente fá-lo sofrer (“Mas sofre de ternura” – antítese), ou seja, ele mostra ter uma grande sensibilidade e ser afetuoso com os outros, no entanto essa «ternura» e esse afeto trazem-lhe sofrimento.

• O sujeito poético bebe em demasia.

• Ri-se do autorretrato, riso esse que pode ter duas justificações:
» o autorretrato não corresponde totalmente à verdade e sugere, assim, ao leitor que não deve confiar completamente no que diz sobre si mesmo;
ou
» o autorretrato leva-o a rir-se de si próprio, o que configuraria uma autocrítica.


Tom caricatural do poema

Alexandre O’Neill ter-se-á “inspirado” num poema de Bocage (“Magro, de olhos azuis, carão moreno”) para a composição do seu autorretrato.
Por outro lado, diversas expressões da composição aproximam-ma da caricatura, dado o seu caráter humorístico e jocoso: “nariguete que sobrepuja de través / a ferida desdenhosa e não cicatrizada” (vv. 3-4); “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).


Relação do poema com o soneto “Magro, de olhos azuis, carão moreno”

▪ Os dois poemas constituem um autorretrato dos respetivos autores.

▪ Os autorretratos apresentam três dimensões: a física, a psicológico-moral e a amorosa.

▪ Ambos os textos se referem aos mesmos órgãos do corpo: a cara, o nariz, a tez.

▪ Ambos afirmam que valorizam o amor e que se entregam a ele.

▪ Ambos os textos adotam uma atitude de crítica benevolente e autoirónica, não receando rir-se de si próprios.


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