● A cena abre com
D. Madalena a dar instruções a Mirada no sentido de o criador ir esperar o
bergantim, para a avisar da sua chegada e, consequentemente, do marido.
● De seguida,
à semelhança do que sucedera na cena II do primeiro ato faz novas referências
temporais que funcionam como indício de desgraça: “Não há vento e o dia está
lindo. (…) Mas a volta… quem sabe? O tempo muda tão depressa…”. Com estas
palavras, D. Madalena alude à instabilidade do tempo, que está calmo, mas
rapidamente pode mudar, e da própria vida (até ao momento aparentemente calma),
constituindo um indício das mudanças grandes que se aproximam. Ou seja, a
desgraça pode chegar de um momento para o outro, sem avisar, tal como o mau
tempo num dia de sol. Será isto que acontecerá com as personagens: após um
período de acalmia aparente, a sua vida desmoronar-se-á.
● Localização
temporal da ação
▪
A ação localiza-se no dia 4 de agosto de 1599:
→ dia e mês
da batalha de Alcácer Quibir (1578)
→ D. João foi
procurado durante 7 anos;
→ D. Madalena
e Manuel de Sousa estão casados há 14 anos;
→ logo,
passaram 21 anos.
● O dia fatal
Todas
as personagens desnecessárias para o imediato desenrolar dos acontecimentos são
afastadas para Lisboa com razões plausíveis e óbvias: Manuel de Sousa, por “negócio
de importância no Sacramento” (II, 4); Maria, para “ver a tia Joana de Castro
(ibidem); Telmo, para acompanhar Maria e por ordem expressa de D. Madalena: “Telmo
que vá com ela; não o quero cá” (II, 6). D. Madalena fica, portanto, só,
naquela casa assombrada, com os fantasmas de sempre:
→ “Sexta-feira!
(aterrada). Ai que é sexta-feira!” (II, 5);
→ “Logo
hoje!... Este dia de hoje é o pior… se fosse amanhã, se fosse passado hoje!...”
(II, 5);
→ “(abraçada
com a filha) Oh, Maria, Maria… também tu me queres deixar! Também tu me
desamparas… e hoje!” (II, 5);
→ “E tua mãe, deixa-la
aqui só, a morrer de tristeza (à parte) e de medo?”.
É, todavia, mais adiante, já depois
da partida dos familiares para Lisboa, que se explicita, com mais clareza, a
natureza e as razões dos terrores de D. Madalena (II, 10): “Hoje… hoje! Pois
hoje é o dia da minha vida que não acabe sem muito grande desgraça… É um dia
fatal para mim…”.
As suas razões baseiam-se nas inquietantes
coincidências acumuladas naquela sexta-feira, um dia já de si aziago, na superstição
popular. Assim, D. Madalena aponta os motivos que a levam a considerar aquela “sexta-feira”
um “dia fatal”:
▪
é sexta-feira;
▪ casou pela primeira vez (com D. João de Portugal);
▪ ocorreu a batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto
de 1578, por hipótese também uma sexta-feira), da qual se celebra o 21.º
aniversário;
▪ desapareceram D. Sebastião e D. João de Portugal
(igualmente há 21 anos);
▪ viu pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho,
por quem se apaixonou (o amor paixão, amor à primeira vista, ainda em vida de D.
João, é considerado crime e pecado por ela própria;
▪ é o 14.º aniversário do seu casamento com Manuel
de Sousa.
Assim se compreende o estado de
espírito de D. Madalena e a obsessão com aquele dia em concreto, que a leva a repetir
oito vezes o advérbio de tempo “hoje”. De facto, e pelo exposto,
ela sente-se culpada por se ter apaixonado por Manuel de Sousa assim que o viu,
ainda casada com D. João, tendo, portanto, pecado em pensamento. Além disso,
vive atormentada e aterrorizada pela dúvida que a persegue desde o início da
peça, ou seja, que o primeiro marido ainda está vivo e que, por tudo isso, Deus
a castigue. Deste modo, D. Madalena atribui um caráter fatídico àquele dua e
pressente uma desgraça iminente.
● Deste modo, a cena dá-nos a visão
completa da hybris de D. Madalena, que é anterior à ação.
Na
cena II do segundo ato, D. Madalena abriu o coração perante Frei Jorge, numa
espécie de confissão, na qual evoca o que se passou no íntimo da sua
alma, desde que viu pela primeira vez Manuel de Sousa, ainda em vida de D. João
de Portugal:
→ amor à
primeira vista, ao modo romântico;
→ paixão súbita,
fatal, considerada um «crime».
E acrescenta:
→ esse “pecado” estava-lhe no coração;
→ dentro da
alma já não tinha “outra imagem senão a do amante”;
→ guarda a D.
João, bom, generoso marido, apenas “a grosseira fidelidade” física.
Porque é que essa paixão, nascida no
coração de D. Madalena, é por ela própria considerada “crime”? A paixão surge
espontaneamente e é independente da vontade da personagem. A própria D.
Madalena reconhece noutro passo (I, 2) que o amor “não está em nossa mão dá-lo,
nem quitá-lo”. Não tem ela consciência de que essa paixão, instintiva e
avassaladora, não obedece à razão, nem se submete ao poder da vontade? Por que
razão diz, logo a seguir, que o “pecado” lhe estava no coração, que dentro da
alma já não tinha “outra imagem senão a doa amante?” E que já não guardava a seu
marido “senão a grosseira fidelidade “ física?
Por outras palavras, se nesse
momento o adultério ainda não estava consumado, por que motivo é que D. Madalena
fala de “crime” e de “pecado”?
Dentro dos limites da tragédia
grega, espelho de uma sociedade pagã, a hybris manifestava-se pela escolha
voluntária da alternativa delituosa. O momento decisivo da escolha de atos
contra a ordenação das leis dos deuses, das leis naturais, das leis da cidade,
constituída a crise. E só
depois, pela consumação de tais atos, se verificaria o crime (crise e crime são, aliás,
palavras da mesma família etimológica).
Numa tragédia, como Frei Luís de
Sousa, em que há uma mundividência e uma vivência cristãs, em que as
personagens estão submetidas a um código moral assente no Evangelho, e em que a
ação é predominantemente psicológica, há que ir mais longe e mais atrás,
penetrar mais fundo na alma humana.
Pecado, na ordem
da Graça, é a infração da Lei de Deus, expressa no Decálogo, Lei que aponta
para o Amor de Deus e para o Amor do próximo, que condena os atos físicos (6.º
Mandamento), mas igualmente os atos interiores da vontade (9.º Mandamento). São
Marcos explicita-o claramente: “É do interior do coração dos homens, que saem
os maus pensamentos, prostituições, roubos, assassínios, adultérios…”.
Nesta fase, que vai do momento em
que pela primeira vez viu Manuel de Sousa, até à data da batalha de
Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578), D. Madalena vive em pecado de adultério: “O
pecado estava-me no coração” (II, 10). É um adultério consentido, vivido
escondidamente, no segredo da sua consciência, na profundidade do seu foro
íntimo, a que só ela e Deus têm acesso.
Presa por laços indissociáveis do
matrimónio cristão, que só a morte poderia quebrar, enleada na paixão e cega
pela imagem do homem que completamente a empolga, consome-se intensamente entre
a razão e o dever, por um lado, e o sonho impossível, por outro, talvez sem um
remorso, sem um rebate de consciência, sem um anseio de libertação. Guarda, é certo,
a “grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quási mais deve a sai do que
ao esposo”, quer dizer, conserva as aparências, mas está mais atenta às
reservas pessoais do pudor e às conveniências sociais, do que aos ditames da
razão, às exigências do código moral da religião cristã, à piedade familiar no
cumprimento dos seus deveres de estado.
É nesta situação moral e passional
que a vem surpreender a noticiada batalha de Alcácer Quibir funesta para D.
Sebastião, para a flor da gente portuguesa e para D. João de Portugal.
Até este momento, D. Madalena vivia
duas vidas, confrontadas conflituosamente na penumbra misteriosa da
consciência: por um lado, as vivências do amor-paixão, dominadas pela imagem de
Manuel de Sousa, o «amante», como ela lhe chama na presente cena; por outro, o
desejo de exteriormente salvaguardar as aparências de “respeito, devoção e
lealdade” para com D. João, na frase de Telmo (I, 2). Por isso, até que ponto a
presumível, mas não provada morte de D. João teria mesmo sido uma tentação,
para pôr aprova o caráter de D. Madalena?
Um intervalo inicia-se com essa data
crucial do desastre de Alcácer Quibir: com 17 anos apenas (I, 2), D. Madalena
fica viúva. Jovem, bela, nobre, alvo das simpatias de todos, aureolada pelo clarão
crepuscular do sacrifício de quem lhe era caro, ela chora a perda do
marido, respeita a “sua memória”, durante sete anos o “faz procurar” por toda a
parte, gasta “grossas quantias”, assegura valimentos de “embaixadores de
Portugal e de Castela”, influências e serviços de padres da Redenção,
empenhados em reunir cativos, informações de religiosos e de mercadores (I, 2):
D. João de Portugal não aparecia, nem vivo, nem morto. Gastos de dinheiro,
diligências concertadas ou avulsas, oficiais ou particulares, não levaram a
outra conclusão, senão a de que o primeiro marido desaparecera, e para sempre.
Passados esses sete anos, acontece o
inevitável, consumando-se a vontade de D. Madalena, até então ainda não
manifestada: “Eu resolvi-me a casar com Manuel de Sousa; foi do aprazimento
geral das nossas famílias, da própria família do meu primeiro marido, que bem
sabeis quanto me estima, vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos”
(I, 2).
De facto, aparentemente, tudo está
em ordem: D. João desaparecido para sempre, morto para a esposa, para a
família, para os amigos (exceto Telmo), apodrece nos areais no Norte de África;
a viúva, depois das lágrimas protocolares e do respeito cerimonioso dos
primeiros tempos, refeita e remoçada a olhos vistos, aparece agora, como flor
desabrochada, no viço dos seus vinte e quatro anos, na esperança, ou até na
certeza, de em breve satisfazer a paixão que a domina. De resto, quem poderia
legitimamente opor-se a que uma viúva jovem, bela, nobre, rica, voltasse a
casar, e desta vez com o homem a quem sempre mais quis sobre todos, nas
palavras de Telmo (I, 2)? Resolve-se, por fim, D. Madalena a casar com Manuel
de Sousa, um casamento de amor, fruto da paixão tão reclamada pelos românticos.
Mas será um casamento “santificado e bendito no céu”, na expressão de D.
Madalena? Por outras palavras, será um casamento lícito e válido, sem mancha de
pecado? Com este matrimónio, celebrado junto dos altares, perante Deus e
perante os homens, afinal tornados cúmplices ou, pelo menos, comparsas, D.
Madalena viola a Lei divina e as leis humanas, consuma, portanto, a hybris,
pela acumulação de atos culposos:
→ mentira consciente (perjúrio);
→ profanação de um sacramento (sacrilégio);
→ bigamia;
→ impiedade.
Por isso, restam imensas dúvidas
sobre esta segurança de consciência, sobre esta paz de espírito e
sobre esta felicidade de vida, nesses catorze anos de matrimónio. D.
Madalena ter-se-ia esquecido do que em voz alta pensara e dissera, quando
estava só, a contar consigo própria e com Deus? Recordemos a cena inicial da
obra: “Oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que vivo…
este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só
momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh! que amor, que
felicidade… que desgraça a minha!”. Daqui nascem todos os seus conflitos
de D. Madalena: consigo própria com Telmo Pais, com Manuel de Sousa, com a
filha, com o romeiro – D. João de Portugal.
● O longo
desabafo-confissão de D. Madalena a Frei Jorge (confidente privilegiado
na dupla perspetiva de irmão de Manuel e sacerdote) que constitui esta cena é
desencadeado pelas palavras aparentemente despretensiosas do frade, em resposta
aos receios de D. Madalena: “Não, hoje não tem perigo”.
Ora, estas palavras são ambíguas: na boca de Frei
Jorge, referem-se ao presumível bom tempo que fará para o regresso de Manuel de
Lisboa; mas D. Madalena interpreta-as em sentido oculto, claro do seu ponto de
vista: Hoje era o dia de maior perigo para ela.
Repare-se,
ainda, que a palavra hoje se repete 9 vezes só nesta cena, com uma
insistência mórbida e inquietante, durante toda a confissão de D. Madalena. E é
no preciso momento em que, por fim, esta evoca a sombra e o nome de D. João que
Miranda interrompe a confissão para lhe trazer um “estranho recado” de um
estranho romeiro.
● O discurso de D. Madalena, à semelhança do que sucede desde o monólogo
inicial da peça, reflete o seu estado de espírito. Assim, sempre que fala no
seu passado, ela revela os seus medos e terrores ao recordar o tempo
relacionado com D. João de Portugal e com o momento em que, estando ainda
casada com ele, se apaixonou por Manuel de Sousa, com quem viria a casar vários
anos depois. Na esteira do Romantismo, o estado de alma de D. Madalena
reflete-se no seu discurso em frequentes interrupções e hesitações, daí a
presença das reticências e de frases inacabadas. Outros recursos presentes no
discurso da personagem são as repetições (“Hoje… hoje!”), as exclamações e as
interrogações.